A luz esgueirava-se, por entre as árvores, cedendo o palco às cigarras, quando tu chegaste, devagar, do lado do canteiro das alfazemas. O brilho dos teus olhos, destilando aromas de verão, era convite ao mergulho, e eu, inebriado, não sabia se era rio, se era lago, ou se era mar...
Por vezes, nas tuas deambulações, pareces querer redimensionar os muros, entregue aos teus próprios desafios. Tento encontrar-te, sentir-te, embora saiba que, nessas alturas, só tu possas definir o teu fio condutor, algures entre a luz e a sombra. Ainda, e sempre, forjado em equilíbrios, é isso que verdadeiramente te define.
Num universo tão vasto, pleno de cenários, de oportunidades, insistimos, dando voz ao medo, em querer reduzi-lo à nossa dimensão. De tanto querer medir as coisas, numa escala que não entendemos, feita à medida da nossa ignorância, quase deixámos de acreditar. Abrimos as portas aos vendilhões do templo.
Prosseguimos a nossa peregrinação, plena de pontas soltas, em busca de defesas e alguma humildade. Tarefa dura, desafiadora, num mundo em que a intolerância, eterna aliada das verdades supremas, investiu, com grosso orçamento, no ministério das fronteiras. E nós, caminhando por veredas, quase sempre à bolina, sem saber do norte, tentamos, por entre as folgas, manter viva a lucidez, aliada da dignidade e da esperança, cada vez mais cambaleantes: uma pista aqui, um gesto ali, sementes dum mundo por que todos ansiamos, mas que teima em dar sinais contrários.
Talvez, um dia, consigamos forjar o nosso destino. Talvez, quem sabe, consigamos derrubar os muros interiores, verdadeiro sustentáculo de outros muros. A vida ganhará, por certo, uma outra dimensão.
Galgadas as últimas curvas, a urbe desenha-se, inesperadamente, em cores delicadas, apelativas, numa pequena baía pintada num azul mediterrânico.
Durante o dia não se vê vivalma, mas ao entardecer, prenúncio de todas as coisas, o pátio das casas, antecâmara do palco de trocas e baldrocas, começa a ganhar vida.
Nas ruas, cenário de aprendizagens geométricas, o sol faz vénia à sombra, dando início ao desfile, enfeitado de subtilezas, em que se enaltece, mais que tudo, o gesto e o olhar, jogo de múltiplas promessas, quase todas vãs. Mas doces. Os aromas, moldados em partidas e chegadas, tendem em fixar-se em salsa e tomilho, impregnados, aqui e ali, de alecrim, mas é impossível ignorar, vinda dos lados do porto, a insinuação da canela. Os peregrinos do destino, embriagados pela envolvência do cenário, esquecem, por momentos, a delegação nos outros das suas atribuições.
Num qualquer pátio, em contra-mão, dedilhando uma guitarra, alguém teima em dissecar o caminho dos outros. Talvez, quem sabe, para reinventar-se a si próprio.
A vida, mentora de todas as artes, eterna senhora sarcástica, que se alimenta, no seu status, da vontade de quem ousa tentar entendê-la, é exercício diário, num mundo em que, cada vez mais, pouco tempo há para essa abertura. A senhora continua a sorrir, mesmo sabendo que o défice é maior que a mais negra previsão. Ela sabe bem das virtudes da esperança, capazes de iludir qualquer vidente.
Quando te questionam, em aparente leveza, dizes que não, não tens tempo a perder. Abanas a cabeça porque continuas, para lá de teres que alimentar uma família, a julgar-te único, capaz de efabular múltiplas teorias. Mas, pelo menos quando te deitas, pensa bem: quando há algo em que acreditas, em que derramas o teu sangue, se necessário, isso só te vincula a ti? Mas... e os outros? És tu que comandas a sua vontade? És tu que controlas as suas emoções? És tu que delineias os seus anseios? A vida é bem mais do que isso, acredita, embora estejas demasiado ocupado - são as metas a alcançar, não são? - para pensar nisso. A maior parte das vezes, como consequência do número que te saiu na rifa, um beco sem saída. Então, nesse caso, que fazer?, questionas.
Eu não sei, deduzo que tu não saibas, mas gostaria muito de sentir que estás interessado em tentar saber. Não do teu quintal, que cada um sabe do seu, mas do quintal de todos nós.
Sabes, vendedores de doutrinas há muitos, cada um com a sua verdade. Contudo, para lá da sua veemência, há algo transversal que nos poderá unir. Basta acreditarmos.
Quando te pressinto, quando te olho, levando-me para lá de qualquer fronteira, há uma intenção, em cada gesto, que transcende as cores com que nos trajaram, com que nos querem, continuamente, continuar a adornar.
As pontas soltas, convocadas pelo súbito despertar, esforçam-se por apreender os sinais, numa dança coreografada, toda ela, em tons serenos. E é nesta aparente tranquilidade, portal mesclado de subtis apelos, que a parte luminosa da alma se distende, com vontade de irromper, de abraçar.
Ponta a ponta, para lá da efemeridade do momento, tudo se parece soltar. É a hora dos possíveis milagres.