quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

LÍMPIDAS ÁGUAS, ETERNOS LABIRINTOS

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Hélio Cunha, Quantum
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Navegas no rio, sorris, pareces querer abraçar as margens.
No apear, como quem pressente a sombra, dissertas, de súbito, sobre a brevidade, o tempo que se esvai, a areia que se some por entre os dedos.
Noto o teu desassossego, uma quase tristeza, um esboço de baixar os ombros. E sinto que, por mais que tentamos, nunca entenderemos as linhas com que se tece um labirinto.
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terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

O VALE

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Xana Morais, Acrílico sobre tela
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O enorme vale, sulcado por duas ribeiras que se procuravam, em suave confronto, na extremidade, estava cercado de serranias. Quem quisesse horizontes, por ali, tinha que trepar as encostas, pejadas de pinheiros, com um ou outro carvalho, aqui e ali um castanheiro, a irromperem ao de leve a monotonia do verde carregado. Mas não queriam. Viviam ali por opção, tomada há muito, selada geração após geração.
No vale coabitavam algumas centenas de pessoas. Dizia-se que eram descendentes de todas as raças da terra, mas apenas o encanto da lenda o atestava. Rezava ela que, noutros tempos, representantes de todos os povos se tinham juntado para iniciar uma nova era, e aquele tinha sido o sítio escolhido. Viviam da terra, artesanavam e filosofavam, assim foram forjando o seu caminhar. O andamento do mundo, aparentemente, ultrapassara-os, mas a harmonia alcançada fortalecia-lhes a convicção. E prosseguiam.
As crianças eram instruídas na sua crença, mas ao chegar a maioridade era-lhes dada a oportunidade de a renegar. Atingidos os dezoito anos, numa espécie de rito iniciático, rapazes e raparigas saíam do vale para enfrentar o mundo dos outros. O regresso, se houvesse vontade disso, só era permitido ao fim de dois invernos, tempo mínimo considerado suficiente para se porem à prova. Mas muitos demoravam quatro, seis, dez anos, havia mesmo quem nunca regressasse. Era preciso cimentar a convicção para o fazer, e nem todos atingiam essa maturação. Deixavam-se cativar pelos aromas doutros lugares, pelos seus labirintos, mas o legado que transportavam era tão forte que, aqui e ali, iam deixando sementes, por mínimas que fossem.
Os que regressavam traziam palavras novas, diferentes olhares, a discussão era encorajada e cultivada. Com um ou outro ajuste, a harmonia acabava por se impor.
Dizia-se que eram descendentes de todas as raças da terra. E eles acreditavam.
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domingo, 10 de fevereiro de 2013

À DESCOBERTA DO FUTURO

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Imagem: ShutterStock
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Desmontaram, uma a uma, as peças do gigantesco puzzle, baseado em jogos de luz e sombra, accionado por marionetas dos mais variados semblantes. Riram-se das formas, dos trejeitos, mas depressa perceberam que continuavam no labirinto. As raízes eram fundas, envolventes, estavam arreigadas a pilares tecidos em ideologias de subserviência, sustentadas em pergaminhos do mais bolorento pó.
Um, mais afoito, mergulhou na sombra. Outro se seguiu. E outro. Desses gestos não se ouviu eco, apenas um leve murmurar propício a lendas e cautelas. Os predadores tinham raízes bem sólidas, o seu poder aliara-se a medos e temores.
Um dia, em plena acção de descoberta, uma criança acendeu uma fogueira. Outra se acendeu, duas, três. A luz afastou os fantasmas, começaram a ver mais longe, despertaram os acordes dum novo ciclo desfossilizador de vontades e convicções. E começaram a desmontar, uma a uma, as peças do gigantesco puzzle...
Desta vez não mergulhou um, mergulharam todos. A construção do futuro esperava por eles.


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domingo, 3 de fevereiro de 2013

A MARGEM

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Fim de tarde. A margem do rio, moldada desde sempre por partidas e chegadas, enverga coçado vestido, mas a luz, única, teima em conferir-lhe um toque de dignidade. 
O movimento é forjado em pressas de pão, contas por pagar, mas também em olhares em contra mão, rabiscos poéticos alicerçados em mil e uma histórias que se confundem com o tempo. Os vendedores de miudezas e de ilusões apenas ajudam a compor a paisagem de pressas várias, pintalgada, aqui e ali, com as leves impressões digitais dos turistas.
Os golfinhos partiram há muito, mas as gaivotas, adaptadas a qualquer circunstância, teimam em descobrir o alimento que tende a tornar-se mito para outras espécies, mais imunes a viscosas realidades. 
A canoa já não sulca, mas os saudosos continuam a pintá-la nas telas, desmentidos pelo vaivém dos cacilheiros. Os rostos, espelho da agrura diária, tendem a tornar-se mais contraídos. Só a noite, liberta do afã da sobrevivência, acode ao desespero apressado da margem. É então que as ninfas ressurgem, borboletas efémeras onde despertam, a prazo, os sonhos adormecidos.
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