sábado, 29 de maio de 2021

CRÓNICA (I)NESPERADA

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AC, Nêspera
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Já todos sabem, é um facto, de tanto o apregoar. Adoro viver aqui, entre serras, sentindo, a cada dia que nasce, o aconchego da graciosa Gardunha e da imponente Estrela. Mas nem tudo são rosas. Numa zona onde a amplitude térmica é considerável, com estios a ostentar, como se fossem chaleiras em constante laboração, temperaturas de 40º, e invernias a pedir agasalho que combatam, da melhor forma, leituras do termómetro que rondam, frequentemente, os 0º, as árvores vindas doutras latitudes têm a vida difícil nas estações extremas. Mais sorte têm as pessoas com a mesma procedência, que beneficiam dum enorme calor, sim, mas humano, mas aí a música já é outra.
Há por aqui, neste espaço que me enfeita os dias, duas nespereiras que, todos os anos, dependem dum inverno suave para glorificarem a vida com os seus frutos. Mas a geada, senhoras e senhores, a geada...! E as flores da nobre árvore, que nascem em contramão, quando o sol mais se esquiva, todos os anos são confrontadas com a inclemência dum inimigo aparentemente hostil, quase cruel, que tudo faz para que os seus delicados frutos se vergam à sua lei e não vejam a luz do dia.
Com honrosas excepções, devidamente apreciadas - há dois anos, com um Inverno suave, as nespereiras estavam repletas, e foi "um fartar, vilanagem" - este ano foi mais do mesmo, com uma única nêspera a conseguir vencer a adversidade. E ela para ali está, quase amadurecida, contemplada e admirada quanto baste, pela sua resiliência e, porque não, pela sua delicada beleza, mas, para ser deglutida, meta final do seu percurso, há que esquecer a pompa e circunstância de tão notável desiderato, não vá ela, como admiravelmente disse Mário Viegas, servindo-se das palavras de Mário-Henrique Leiria, despertar a cobiça da Velha. :) 
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Por mim, fica desde já a promessa de que, em acto solene, lhe farei as devidas honras, como convém a tão digna sobrevivente, deglutindo-a va-ga-ro-sa-men-te, com música a condizer, tentando rebuscar o tempo que nem o tempo sabe que tem. Ela merece.
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domingo, 23 de maio de 2021

DE CARA LAVADA

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Fotografia de AC
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Foi na semana passada, com mais uns trocos. Tinha chovido com alguma moderação, embora de forma persistente, como que a querer abençoar o que já estava plantado. As plantas, de cara lavada - a olho nu mais as árvores, mas creio que eram todas, principalmente as silvestres - galgaram uma nova dimensão, plenas de dignidade, como que a querer dizer que nada é perpétuo, que tudo está em movimento. Assim haja carinho, respeito, assim hajam uns pingos de água. E eu, eterno aprendiz da vida, meti mais uma vez a viola no saco, enquanto anotava, mentalmente, o simples, mas complexo, da questão. Seria assim tão linear? Hesito perante a interrogação, mas apenas por breves momentos. A complexidade coloca-se a quem não entende, não saboreia, não comunga, a quem apenas funciona com um talão, de preferência com número de contribuinte. Adiante, que a passarada já se faz notar.
As aves podem ter amainado o canto, ainda que por momentos, mas os pardais, sempre omnipresentes, mais uns melros atrevidos, com ninho nas redondezas – eu suspeito onde, mas não vou lá, pois o acontecido, há cerca de um mês, serviu-me de lição – não se coíbem, com movimentos rápidos e elegantes, de se passearem pela terra fresca, em busca duma qualquer lagarta desprevenida, obrigada a sair do submundo, por excesso de água. Lá no alto, imperiais, as aves de rapina parecem planar alheias de tudo, mas é só aparência. Elas sabem bem ao que andam, atentas ao mínimo movimento daquilo que lhes interessa.
Cá dentro, por detrás da vidraça, as coisas ganham outra configuração. Ainda tento ir lá fora para me integrar no novo cenário, mas algo me diz que há coisas, para serem verdadeiramente autênticas, que não carecem da nossa pegada. Por mais ínfima. E eu, respeitosamente, obedeço ao apelo deste pedaço de terra que me tem enfeitado os dias, qual legado para as novas gerações. E aí, se me permitem, penso imediatamente no Miguel, o meu querido neto, e em todas as crianças da sua geração. E, para adoçar a trégua, a música discorre, a gosto, alimentando a convicção.
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sábado, 22 de maio de 2021

QUANDO O ÍNFIMO É INTEMPORAL

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Eram tempos de descoberta, em que cada gesto revelava pressa, como se abarcar o mundo fosse coisa emergente. Exaltávamos a poesia, dançávamos nos concertos, mergulhávamos em rios de águas cristalinas, andar à boleia não era coisa estranha. E cada rosto afável que encontrávamos, cada gesto genuíno, cada sabor local, cada música no rádio duma tasca deserta, eram pretexto para a festa. 
Fazíamos planos, oh se fazíamos, e tudo servia de motivo para isso: uma casa abandonada, que reconstruíamos em sonhos, um tecido diferente, que desmultiplicávamos em novas roupas, a descoberta duma cascata num ribeiro entre montes, com peixes a jusante e a montante, as notas duma guitarra numa estação deserta, à espera dum comboio sem horário... E sorríamos, sorríamos tanto, caramba!
O tempo passou, os horários eram para se cumprir, as facturas tinham que se pagar. E pagaram-se. Mas, como quem guarda um precioso tesouro num baú, há luzes que, mesmo que ínfimas, nunca se apagaram, britando muitas das pedras que foram surgindo no caminho. São só nossas, são intemporais.
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segunda-feira, 10 de maio de 2021

À TUA, AVÔ!

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Chegara de véspera, dando folga à cidade. Após um sono retemperador em casa dos tios, sempre prazenteiros e sequiosos de novidades, deixou para trás as últimas casas da aldeia e, com um suspiro profundo, como que a antecipar as dores da empreitada, meteu-se por uma vereda que, dizia-se, tinha sido utilizada pelos contrabandistas de outrora.
A pouco e pouco começou a sentir o corpo a corresponder, cada vez mais solto, enquanto ia ultrapassando o que restava dos castanheiros que, noutros tempos, eram orgulho das gentes raianas, agora a recuperarem da doença da tinta. Deles muita fome se saciou, com a castanha a servir ementas várias. 
Continuou, até entrar numa zona de estevas e giestais, com um ou outro afloramento granítico a adornar a paisagem. Zumbiam abelhas, borboletas emergiam na sua dança silenciosa, a passarada fazia-se notar. De vez em quando, à sua passagem, sentia o incómodo dum ou outro lagarto, bem manifesto no som que emitiam na sua debandada. Um besouro, qual Hércules duma outra dimensão, empurrava uma bola de argila, sabe-se lá para onde, com uma incrível facilidade. E ele, a princípio receoso, começou a sentir-se envolvido na paisagem, numa amálgama de odores, cores e quase imperceptíveis movimentos, enquanto descobria, como se tudo fosse a primeira vez, a diversidade de vida que por ali discorria, longe de qualquer holofote.
O tempo passou, com o pó a colar-se na pele, mas ele nem dava conta. E só quando, depois de galgar mais uma pequena colina, se deparou com as águas dum tranquilo e afável rio, tal como lhe tinha dito o Zé Espanhol, velho sobrevivente de outras eras, é que intuiu que tinha chegado à fronteira.
Aproximou-se da margem. Tirou a mochila, despiu-se sem qualquer pudor e, com algum receio, entrou na água. 
Duas ou três bogas, incomodadas na sua pacatez, deram às de Vila Diogo, num movimento brusco. Um melro, no seu canto assobiado, parecia rir-se da sua ousadia. E ele, com a água a acariciar-lhe o corpo, foi soltando as primeiras braçadas, enquanto meditava que, no tempo do avô, atravessar o rio a nado era uma necessidade para driblar os guardas e os carabineiros, nunca um prazer. 
Depois do banho, foi a vez do conteúdo da mochila fazer maravilhas. Limpou-se bem na toalha felpuda, vestiu roupa seca e apanhou lenha nas redondezas. Depois, com a solenidade dos momentos rituais, acendeu uma fogueira, tirou a cafeteira da mochila, encheu-a com água do rio e colocou-a ao lume, bem assente em duas pedras. Já com a água a ferver, tirou da mochila o café e, delicadamente, deitou duas colheres na cafeteira. Mexeu bem e, operação fundamental, tirou uma brasa do lume, tal como os d'antanho faziam, e meteu-a na cafeteira. A seguir, sempre sem pressas, foi à mochila buscar uma moldura com uma fotografia antiga do avô e colocou-a de frente para ele. Pegou então numa caneca, encheu-a com o escuro e aromático líquido, pôs-lhe um pouco de açúcar, como o avô gostava, e mexeu demoradamente, como que a adiar o grande momento. Finalmente, com ar compenetrado, levantou a caneca e disse, numa voz emocionada:
- À tua, avô!
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sexta-feira, 7 de maio de 2021

ROUXINOL

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Todos sabem do meu gosto pela Natureza, do quanto ela me enleva e motiva, ao ponto de a considerar fonte de aprendizagem permanente. E, se o cenário solar é de primordial cultivo, com os cuidados com a horta a enfeitarem os meus dias, ultimamente as noites têm merecido a minha atenção. Não, não tem a ver com a sedução da Lua e das estrelas, sempre belas e cativantes, desta vez o mote recai nuns belíssimos concertos nocturnos, em que o silêncio envolvente é condição exigida pelo solista. E, salvaguardadas as condições necessárias, que até os cães das redondezas cumprem, aos ouvintes, sejam eles quais forem, apenas resta fruir. E se o artista é de qualidade! 
Pois é, estou a falar dum rouxinol, grata descoberta da qual tenho beneficiado nas últimas noites, num silêncio quase venerador. Não sei o que o motiva, não sei para quem ele canta, mas... que importa? Apenas sei que é sublime, um verdadeiro encanto!
Quando me retiro para descansar, que os humanos não têm corpo de rouxinol, levo comigo, em total equilíbrio, a sensação dum evento mais-que-perfeito, que acaba por me suavizar os sonhos.
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sábado, 1 de maio de 2021

POSTAL À DERIVA

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Margarida Cepêda, Sob a ogiva
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Tinhas tudo programado. Irias circunvalar as águas, domar os ventos, orientar-te para a luz, num plano muito elevado. Faltava-te, e não era pouco, encontrar a chave da compreensão, essa coisa estranha, que dava trabalho, mas que era condição fundamental para poderes enfrentar, da melhor forma, tudo aquilo que ultrapassava o teu pequeno mundo.
Enquanto procuravas, de sono solto, encontraste refúgio nos livros. O quão eles revelavam! Mas, apesar da abertura de novos portais, continuava a haver algo que não encaixava, que não te deixava dormir tranquilamente. E desassossegavas. 
O tempo foi passando. Ainda não sabias, mas irias descobrir: faltava-te, para perceber os alicerces mais elementares da vida, tentar sentir a respiração dos outros.
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