domingo, 29 de janeiro de 2017

ENSAIOS DE RESPIRAR

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(Sandra Louçano: como tudo tem uma sequência, este vídeo foi colocado aqui para repor alguma justiça. Foi esta música que se ouviu, preferencialmente, no enquadramento do post anterior)
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As portas abrem-se, num eterno cerimonial, como se tudo acontecesse pela primeira vez. 
Um olhar, dez, mil, numa multiplicidade em constante deslumbramento. Tudo cativa, tudo parece perto e longe, a vontade de desbravar conjuga-se, em paralelo, com a de albergar. As coisas parecem ali, à mão, qual visão meteórica, criando a ilusão de que o tempo é domável, que a vida pode esperar por nós. 
Às tantas, após maratonas de inconscientes piruetas, regadas com risos de montanha russa, aceitamos a farda da normalidade, pregada por quem nos abraça, por quem nos quer bem. É preciso, incutem-nos, lutar pela zona de conforto.
Vestimos a farda, muitas vezes desconfortável, em conflito com a pele. Começamos, então, a questionar o que é a vida. Queremos agarrá-la, senti-la, descodificar-lhe o segredo, mas ela teima em esquivar-se, sorrindo e mofando, desafiando a persistência do mais abnegado. 
Há quem desista, resignado, há quem opte por não olhar, satisfeito com aquilo que tem. Deles, suprema descriminação, é feito o reino dos céus, apregoam os pastores. Mas, para aqueles para quem o sentido das coisas é tudo, pecar, não aceitando, é eterno desígnio. Descobriram, à custa de muito pó na pele, que a liberdade e a dignidade, mesmo que, aqui e ali, sorriam, não são concessão, são apenas apeadeiro de conquista permanente, sem fim à vista. Os afectos, energia imprescindível, são o verdadeiro sustentáculo de tão grande fé.
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sábado, 21 de janeiro de 2017

NO CALOR DO POUSIO

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Fotografia de AC
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A vida, em eterno jogo de escondidas, teima em acenar-nos, como que a lembrar que há sempre mais para lá daquilo que vemos, daquilo que conhecemos, daquilo que somos. 
Por vezes, aquando duma qualquer perda, não pareces convencida. E, sem te dares conta, alisas o terreno para a comoção se instalar. Eu sei, tu sabes: nada floresce, a não ser a sombra, com tal húmus.
Ontem, enquanto folheavas um livro, saí e sentei-me no alpendre. Estava frio, apesar do sol se esforçar por estender os seus braços, e ajeitei melhor a gola do casaco. Os gatos, por perto, indiferentes ao meu desagrado, teimavam em considerar como seus os terrenos recentemente plantados com ervilhas, favas e alhos, deixando rastos na terra mole. Levantei-me, esbracejando, qual proprietário de coisa nenhuma, e eles condescenderam em fazer o óbvio: levantaram-se, indolentemente, deslocando-se como reis e senhores do espaço, relativizando a importância do que quer que fosse. Acabei por sorrir.
O sol, entretanto, despedia-se num breve aceno, como que a relembrar evidências. Agradeci, mentalmente, e enchi o cesto da lenha para reforço da lareira. Faltava, apenas, escolher a música certa.
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domingo, 15 de janeiro de 2017

A ETERNA TRAVESSIA

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Fotografia de Júlia Tigeleiro
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Nas noites frias, quando os elementos, em cerco ancestral, teimam em legar-nos sinais, confrontando-nos com os limites, há algo que nos habita que tende a simplificar, a abrir fissuras que conduzam ao mais profundo de nós. Mas há portais que, por maior que seja a vontade, apenas reagem ao calor dos afectos. 
Mesmo nas tardes quentes, quando a brisa parece apaziguar, em discreto afago, o esgrimir das pontas soltas, há sempre algo adormecido na sombra, em paciente espera, em conluio com o pousio. 
Por mais que se debata, por mais que se legisle, não há horas, não há dias. O tempo, velho conhecedor do desassossego, insinua-se fora das normas dos homens, escarnecendo deles, como que a recordar-lhes que, para entenderem a vida, muito terão que trilhar para lá da sua exígua zona de conforto.
A vida, para lá dos tratados convencionais, é um enorme rio em que qualquer um se poderá perder, ou encontrar, num qualquer sucedâneo de afluente.
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sábado, 7 de janeiro de 2017

GOLIAS MULTIFACETADO, DAVID RENOVADO

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Ira Moskowitz, David e Golias
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David hesitava, na antecâmara da sala, dando livre curso aos medos. Por fim, arremetendo, cegamente, contra as amarras que lhe toldavam a razão, abriu a porta e entrou. 
O burburinho da sala, plena de sorrisos de etiqueta, atingiu-o como um raio. Ainda pensou em dar meia volta, mas algo o impelia a ficar, a olhar em frente. Avançou, combatendo o medo, esforçando-se por parecer imune às circunstâncias. Ignorou dois ou três cães rosnadores, contornou quatro ou cinco víboras, sorriu perante o papagaio de serviço, igual a tantos outros.
Quando chegou junto da mesa principal, colocada, estrategicamente, para ser vista por todos, o vice-rei fez-lhe sinal para se abeirar. Saudou-o, respeitosamente, e aguardou que o anfitrião se manifestasse.
- Sabes, David, o mundo está a transfigurar-se, prestes a viver novos paradigmas.
David ouvia, atento, esquecendo tudo o que o constrangia. Sentia que as palavras, prestes a brotar, continham algo de superlativo, fosse qual fosse o ângulo de análise. O vice-rei continuou:
- O mundo, tal como ele se nos apresenta, é como uma barca à deriva, onde todos se querem abrigar, mas poucos têm lugar. Levando esta ideia à letra, o rei, recorrendo às mais modernas tecnologias, mandou construir uma nave, à qual apenas terá acesso o que de melhor fervilha na nossa espécie em áreas essenciais: físicos, químicos, filósofos, médicos, antropólogos, agrónomos, biólogos, engenheiros, professores... 
O vice-rei fez uma pequena pausa, deixando que as palavras produzissem o seu efeito. Depois, fazendo sinal a David para se aproximar mais, segredou-lhe, quase em sussurro:
- Para além dos políticos certos, é claro - condescendeu o anfitrião, sorrindo. E continuou:
- O rei, ciente da importância desta empreitada, encarregou-me de seleccionar algumas pessoas que complementassem o saber de cada especialista. Quando alguém lhe levantou a questão das fissuras provocadas pela insatisfação da maré de candidatos, o teu nome, David, surgiu com toda a naturalidade. A nave, para que saibas, chama-se Golias. 
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