quinta-feira, 25 de maio de 2023

AVIEIRANDO

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Imagem retirada da Net
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Tudo começou na praia da Vieira, que me recebeu, e bem, há uns tempos atrás, onde o cerne do seu povoamento tem como personagens pessoas de labuta dura, em luta titânica com as vagas oceânicas, em busca de peixe para tentar estancar a fome das famílias que lhes sustentavam o pé, qual eterna antecâmara do existencialismo que se satisfazia, tão só, com comida na mesa. Era o solarengo, mas pobre, país que tínhamos, e todos, em mar ou em terra, exceptuando uma centena de famílias que estendiam a sua garra a tudo o que fosse apetecível, tinham que esgadanhar fosse no que fosse para assegurar, minimamente, a sua sobrevivência.
Seguindo as pegadas da história local, agora em busca de reabilitação, os pescadores desta zona, na impossibilidade de exercerem o mester da pesca durante a estação invernosa, perante a necessidade de aconchegar o estômago todos os dias, com família sem qualquer planeamento, que a ignorância de modernos meios era coisa do futuro, deslocavam-se para sul, para a acalmia do Tejo, onde pescavam, essencialmente, o sável, que depois as mulheres vendiam nas aldeias vizinhas. 
Desta faina fluvial, feita nos finais do século XIX até à década de trinta do século XX, os avieiros estabeleceram poiso desde Vila Velha de Ródão até à Póvoa de Santo Adrião. Alves Redol, com espírito observador e inquieto para a época, imortalizou as andanças destes nómadas do rio no livro "Avieiros", que ainda hoje é a grande referência de que dispomos para melhor entendermos esta forma de vida, em que os protagonistas, quase de ventre ao sol e à neblina, navegavam, para cima e para baixo, sujeitos às benesses que o antigo Tagus lhes concedia. 
Ainda restam, nas duas margens, vestígios desta forma de vida. E foi em busca dela que, seguindo  pequenas pistas dos Avieiros, rumámos até Escaroupim, no concelho de Salvaterra de Magos, um lugar onde se procura preservar o rasto que os nómadas fluviais, que faziam do barco casa, por aqui deixaram. E por lá se preservam memórias num museu alegórico, coabitando com antigas casas, tentando resgatar o essencial do impacto destes "intrusos" numa zona que, na origem, não era a sua.
À nossa espera, bem imbuída do espírito do antigo Tagus, estava a equipa do "Rio-a-dentro", documentada, e de que maneira, ao nível histórico e ambiental - até às Memórias Paroquiais, referência obrigatória para qualquer historiador que se preze, foram beber - e que, na manobra dos barcos, vai instruindo os visitantes dos amores e humores do rio. Na deambulação das palavras, sempre bem medidas, a acompanhar, da melhor forma, os rituais do homem do leme, ficámos a saber como se formaram, e susceptíveis de continuar a formar, as ilhas no rio. E assim surgiu a ilha das garças (na foto), que milhares de aves escolheram para nidificar; a ilha dos cavalos, que os quadrúpedes frequentam em busca de erva fresca, atravessando o rio aquando da maré baixa; e a ilha dos amores que, pela sua configuração, suscitou a imaginação dos barqueiros. Entretanto, na margem direita, lá estava a Palhota, outra aldeia avieira - onde Alves Redol chegou a viver, para melhor documentar a sua obra - com habitações palafitas muito bem preservadas e, um pouco mais a montante, deparamos com Valada do Ribatejo, que é normalmente notícia aquando das cheias na estação invernosa.
No Tejo, a sua segunda casa, os avieiros procuravam enganar a fome, com a sua cultura muito própria, mas sempre sujeitos ao olhar desconfiado dos habitantes locais, que nunca entenderam aquela forma de vida. Eram nómadas, diferentes, não se encaixavam na cultura local. E foi necessário decorrer um século para que, finalmente, em terra de cavalos, touros e toureiros, os nómadas do rio tivessem algum esboço de compreensão.
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Não levei máquina fotográfica, porque sim, mas hoje talvez o fizesse. Em suma, não vale a pena tentar entender. :)
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domingo, 23 de abril de 2023

FOREVER YOUNG

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Margarida Cepêda, O rei e o cavalo
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Ele costuma chegar, confiante, distribuindo abraços como se fosse a coisa mais natural do mundo. 
Ainda não fez três anos- faltam três meses - mas apodera-se da casa como se fosse sua, qual governante a quem apenas a boa disposição e a alegria sejam coisas a ter em conta. E, por entre brincadeiras sem fim, não se coíbe de beijar, ou abraçar, quando sente que é caso para isso.
- Avô, anda escondê! - solicita ele, na sua linguagem muito própria.
E eu lá vou, de coração cheio, brincando ao faz de conta com mantas a servir de tenda, com o sorriso dele a comunicar, de tão cúmplice, como se me desse a mão. Os outros, entrando no jogo, vão pintalgando o ar de expectativas, com muito açúcar, soltando a cada passo:
- Onde está o Miguel?
- Está aqui! - grita ele, esfuziante, ao fim dum certo tempo (pouco, mas para ele é muito) como se da novidade mais importante se tratasse.
O Miguel cresce a olhos vistos, rodeado de amor em todos os quadrantes, e ele retribui, retribui sempre, olhos nos olhos, confiante em tudo o que o rodeia.
- Avô, anda, vamos lá fora!
O avô, transbordando duma ternura que tem sempre retorno, até de mais, dá a mão ao novel habitante da tribo, encaminhando-o para os primeiros voos do contacto com a natureza.
- O que é isto?! - exclama ele, perante o cantarolar de um pássaro.
O Miguel, ao contrário do avô, vive num apartamento, na segurança da proximidade dos outros, mas longe dos sons naturais que enriquecem qualquer ser. Pacientemente, com muita ternura à mistura, lá lhe vou explicando o som dos pássaros, o voo de cada um deles, a azáfama das abelhas, o voo silencioso das borboletas...
O Miguel, a pouco e pouco, vai absorvendo uma nova linguagem, que não a sua, mas que tende a interiorizar. E, por mais informação que se lhe faculte, uma coisa me orgulha, profundamente: ele continua a abraçar, incondicionalmente, tudo aquilo que passe no seu filtro de gostar, tudo aquilo que o faz sentir feliz.
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quarta-feira, 19 de abril de 2023

QUER OUTRO PASTEL?

Imagem retirada da net
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O meu pequeno paraíso, ladeado por excelsas damas, a Gardunha e a Estrela - tão diferentes e, em simultâneo, tão irrigadoras do meu olhar - por mais inspirador, não basta para me apaziguar por completo. E, por uns dias, rumei para o litoral atlântico, sem artefactos tecnológicos, qual necessidade catártica na tentativa de abraçar o mar, o grande caldeirão químico onde tudo começou. 
Praia deserta, como convinha, toda a atenção para a reconhecida grandiosidade do oceano. E ele, qual eterno matusalém, parecia divertir-se a mostrar diversas facetas, com o conluio dos elementos. Enquanto arremetia contra o indefeso areal, desenhando nuvens efémeras de espuma, afastava qualquer curioso, por mais agasalhado, com a cumplicidade da neblina e do vento. Quando o intrometido se afastava, escorraçado, com uns pingos de chuva a completar o leque, o sol, inesperadamente, dava entrada em cena, primeiro timidamente, mas depressa dardejando com algum ímpeto, a ponto de o invasor sentir necessidade de despir o casaco e, quase sem se dar conta, começar a sorrir. Mas era sol de pouca dura, que o mar tem via privilegiada para invocar os elementos. E o casaco lá servia novamente de aconchego, até o visitante percorrer o que faltava para um bar com sala envidraçada, com vista privilegiada para o gigante em constante movimento, mas ao abrigo dos seus maus humores.
Ainda não eram nove horas. Na sala viam-se algumas pessoas, que pouco ou nada conversavam, pois a presença do mar, apesar da protecção da vidraça, continuava omnipresente. Escolhi o melhor lugar disponível, tendo em conta a vista, e sentei-me, deixando-me absorver, lentamente, pela paisagem marítima, com o pensamento a embalar numa deriva  de considerações, sem leme e sem âncora.
- Deseja alguma coisa?
Emergi da quase inconsciência. À minha frente estava um homem na casa dos sessenta, com alvos retoques na barba rala, devidamente aparada. Recuperei a presença de espírito e, num meio sorriso, limitei-me a dizer:
- Um café e um pastel de nata.
O homem regressou, serviu-me e, por uns instantes, deixou-se ficar a observar o mar. Aproveitei para meter conversa:
- Para quem gosta de ver o mar, e sentir o seu aroma, hoje está um dia ventoso.
Olhou-me e, após uma breve pausa, deve ter sentido que o novel interlocutor merecia alguma confiança. E ousou, num ditame quase cúmplice:
- Sabe, meu amigo, passei a vida atrás do vento, mas nunca o consegui apanhar. Mas, com tantas andanças, umas contra e outras de feição, acabei por encontrar o equilíbrio, conseguindo desenhar alguma paz. 
Olhou-me, serenamente, medindo a minha reacção. Depois, parecendo satisfeito com o que via, adoptou uma postura mais profissional, com um leve sorriso a denunciá-lo, e inquiriu:
- Quer outro pastel?
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domingo, 9 de abril de 2023

BREVETA PRIMAVERIL

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AC, Flor de cerejeira
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Quando as andorinhas voltavam, ela ia, bem cedo, pelo caminho das cerejeiras, procurando absorver tudo como se fosse a primeira vez. O tempo parava, para a contemplar, enquanto piscava o olho às abelhas. Depois, qual eterna menina, imitava o gorjear dos pintassilgos, insinuava o voo das borboletas, acariciava esta ou aquela flor...
Quando regressava, de alma plena, ainda trazia, no brilho dos olhos, os vestígios da alquimia primaveril.
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terça-feira, 4 de abril de 2023

DESÍGNIO

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Margarida Cepêda, Ela, o violoncelo e as vagas
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Ela já era, mas não sabia.
Inquieta com os outros, fruto da sua opção de vida, procurava, o melhor que sabia, pejada de dúvidas, saber das nuvens que lhes cobriam os horizontes, do seu respirar sem convicção, dos parcos momentos em que, qual milagre da vida, a rara espontaneidade se concretizava num sorriso, por mais ténue. E, sempre atenta, registava o pormenor, depois da consulta, procurando dar cor aos nomes que, lentamente, parecia que se iam sumindo na paisagem, cada vez mais desertificada.
Ela era um anjo, mas não sabia. Contudo, os velhos que lhe adornavam a consulta, mal habituados à dignidade do trato e do olhar, sabiam-no desde a primeira vez.
Ela é como é e, perante o olhar melado dos velhos, e o respeito dos outros, começa a perceber, lobrigando perante as dificuldades de saber ser quando pouco ou nada se tem. Só ainda não entendeu, por mais que lhe digam, por que é que, em todo o lado, não é sempre assim, com a dignidade a não conseguir ganhar lastro.
Apesar do ruidoso silêncio dos hostis gestos dos conformados, prossegue na sua convicção, qual  percurso sem fim à vista. E persiste. Ela respira o equilíbrio do mundo em modo de vida e não se imagina de outra forma, pois cresceu a pensar que a proximidade e o calor de um gesto podem fazer toda a diferença. 
Ela é assim, a nossa doutora, qual joana sem pestana a tremelicar, mas de olho sempre a brilhar. Apesar de lamentar os falsos ais e uis de quem decide, ela continua a remar, contra ventos e marés, alimentando a alma com o que a preenche, qual miríade dum futuro por desenhar.
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terça-feira, 28 de março de 2023

CURTA LETRAGEM

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AC, ninho de melro
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Antes havia uma árvore, um ninho, uma abelha e o desejo de ver o mar.
Agora há uma antena, um telemóvel, um drone e um especialista em comunicação.
Antes, olhando o horizonte, faltava algo. Agora, perante tanto movimento, falta muito mais.
Antes eu queria o movimento, de preferência com mar à vista. Agora, que conheço melhor os bípedes falantes, continuo a querer ver o mar. Mas, para além disso, apenas procuro entender a arquitectura dos ninhos, com a cumplicidade de quem possa abraçar. Sempre.
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terça-feira, 21 de março de 2023

ONTEM, HOJE, SEMPRE...

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Imagem retirada da net
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Eles, os observadores, não navegavam, preferiam a margem segura, mas admiravam quem ousasse profanar as águas, fronteira limite dum mundo, assaz aventureiro, que nada augurava de bom para o recanto onde cada um, aparentemente, sabia o que tinha a fazer.
Outros foram, com a alma adocicada, contrariando os oráculos, mas poucos regressavam. E, entre traumas e venturas dos sobreviventes, logo se alongaram os cais, não fosse o diabo tecê-las, apesar da negação das ancestrais professias: cada um no seu lugar, sem necessidade de abespinhar o urso.
Mais partiram, procurando a aurora noutras latitudes, poucos continuaram a chegar. Os jovens, fervilhando, não viam a hora de sentir o porvir, tal o seu ensejo; os homens feitos, apesar do aconchego do conceito de honra, embebido nas origens, começavam a meditar, nos intervalos da suposta epopeia, nos filhos que deixavam, nos campos que ficavam por lavrar; as noivas, arrasadas por uma realidade sem paralelo, para além dos ais, reinventavam um tempo sem tempo, em que apenas elas existiam, ácidas de tanto esperar, sem filhos por nascer; as velhas, envoltas em pesados trajes, nada diziam, apenas lamentavam, pois sentiam o drama. E, às escondidas, limitavam-se a carpir, não fosse a vizinha notar.
Quando um barco chegou, carregado de riquezas doutros mundos, toda a aldeia festejou. E o efeito multiplicou-se por outras, por muitas outras, quando novas velas se fizeram anunciar num porto, em dois, em muitos... E, por um tempo, perante a limitação do olhar humano, a efemeridade insinuou-se como deusa suprema, não fosse qualquer precavido, por mais sensato, perder o próximo barco.
Hoje, passados muitos anos, se alguém festeja a chegada de um barco, é apenas para descompressão dos solitários dias, mas sempre com a esperança, eterna filha em dias melhores, sempre no horizonte. Os hemisférios deslocaram-se, artificialmente, para outras paragens, a conversão da vida em possível festa tornou-se, irremediavelmente, uma questão por reinventar. Segundo alguns, ad aeternum, apesar de continuarem, por hábito, a fazer o sinal da cruz, à espera dum qualquer sinal, seja ele qual for.
Por aqui, num espaço aparentemente imune às questiúnculas dum amanhecer cavernículo, teima-se em deixar espaço às diferentes espécies de vida, cada qual com a sua importância: as ervas, após alguma chuva - não a suficiente - continuam a crescer, florindo; as árvores, num ritmo primaveril comandado pelos raios solares, desabrocham a cada dia que passa, fazendo sorrir quem as sente e observa; as andorinhas fazem-se anunciar, reivindicando, quase que por magia, os ninhos ocupados de antanho; os pardais, sempre omnipresentes, continuam a fazer sentir a sua arruada, como se fossem donos e senhores do espaço; os pintassilgos, muito mais discretos e imunes à presença humana, teimam em debicar sementes e insectos, sempre num voo elegante; os melros, definição perfeita do que é ser esquivo e ladino, poisam aqui, debicam ali, procurando nunca denunciar onde habitam; as pegas-rabilongas, as malfeitoras do lugar, pois devoram qualquer couve jovem, denotam confiança e desfaçatez, mas afastam-se ao mínimo ruído; mais acima, as cegonhas, com ninho nas proximidades, passam ao fim da tarde, num voo ergonómico, com as patas a projectar-se para trás, em consonância com a cabeça, que se projecta para a frente, desafiando, ou evitando, qualquer obstáculo que se lhes depare; as aves de rapina, mais altaneiras, dominam a estratégia do olhar, procurando, socorrendo-se da emanação das correntes de ar, definir qual a melhor forma de apanhar este rato, ou aquele coelho, deitar as garras àquela serpente...
Por mais que, no exterior, os quadros se pintalguem de cores funestas, por aqui o vento continua a soprar, instalam-se os primaveris raios solares, começam a lavrar-se as terras, com as abelhas e as borboletas, qual benfazejo sinal, a dar sinal da sua presença. E eu, apesar dos anunciadores da desgraça, continuo a acreditar.
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sábado, 11 de março de 2023

LAUROS, MELROS E EQUILÍBRIOS

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AC
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Foi na manhã deste sábado, mas poderia ser a qualquer hora dum dia qualquer. Aproveitando a folga dada pela chuva - deveria chover mais, era bom para todos, penso para mim, apesar de, incoerente com o pensamento,  me animar com o sol que espreita - fui lá para fora podar a sebe de lauros que contracena com os dois portões da entrada, com a noção de que já era mais que tempo, pois  estas plantas, se houver qualquer descuido, tendem a crescer desmesuradamente. Até aos 12 metros, informa-me o Google.
O trabalho, ou melhor, o prazer de andar ao ar livre, sem restrições, absorvendo as múltiplas formas de vida, de forma natural e com isenção de formatações - a cada dia que passa, e num agradável aviso pré-primaveril, o chilreio da passarada, com novas espécies migradoras à compita, está mais diversificada, as abelhas e as borboletas, numa azáfama constante, estão cada vez mais presentes, as árvores começam a dar sinais de despertar, num perpétuo ciclo em constante equilíbrio - prosseguia em bom ritmo, de alma lavada, sem questões existenciais, numa progressão de baixo para cima. Às tantas, e chegado a um patamar em que a altura dos lauros já aconselhava um corte radical, não fossem eles escarnecer do estado de crescimento dos seus pares, já devidamente podados, deparo-me com um ninho de melro. A situação não me era desconhecida e, a fim de contrariar o acontecido há dois anos, interrompo de imediato a faina, com o prazer a esfumar-se, ou antes, a ter que ser reformulado. E, apesar da sensação de templo profanado a pairar no ar, ousei ir a casa em busca da máquina fotográfica para registar o momento. Com cuidado, muito cuidado, subi três degraus do escadote e preparei-me para o registo da imagem. Mas o sentimento de culpa, essa herança judaico-cristã que nos acompanha de braço dado, com garras profundas, não me permitiu captar o momento com a atenção desejável. E, quase a medo, lá despachei o clique, com receio de que a casa alheia, sabiamente tecida, fosse rejeitada pelos seus habitantes, atendendo à sua vulnerabilidade, apesar de, desta vez, ela continuar bem camuflada.
Com a preocupação de nada, ou pouco, incomodar, e só com uma apressada tentativa, pouco de acordo com os cânones, a fotografia ficou má, é um facto, e quase me regozijo por isso, qual acto de penitência pelo meu descuido no afã da arte de bem podar. Talvez, e fico a torcer muito por isso, o casal de melros continue a sentir-se em segurança, apesar da intrusão do podador. Era sinal de que, a pouco e pouco, e apesar dos meus percalços, vou conseguindo equilibrar-me com o que me rodeia, no mundo natural, com o menor impacto possível. 
Regresso a casa, devagar, com o escadote numa mão e a tesoura e o serrote na outra, num agridoce debate de sentimentos. De repente, como se os deuses me escolhessem para diversão, oiço à distância  o delicado canto do casal de pintassilgos que, de há uns tempos a esta parte, por aqui aportou. Estaco e, quase sem me dar conta, esboço um sorriso perante tal dádiva. É o suficiente para o meu sol interior começar a brilhar, sem restrições.
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sábado, 25 de fevereiro de 2023

NÃO CHORA, NÃO?!

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Margarida Cepêda, Transparente
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Após uma actividade qualquer, algures a meio da cidade, os pais do Miguel, o meu neto, e os da Diana, uma amiga de creche, resolveram ir até ao Parque Verde. Aí chegados, o escorrega foi o divertimento de eleição para as duas crianças, ambas com cerca de dois anos e meio.
A brincadeira começou, os risos soltaram-se e, para eles, parecia não haver fim à vista, com os adultos, por perto, agradados com o desenrolar. 
O tempo foi passando e, às tantas, os pais da Diana começaram a olhar para o relógio, pois tinham outro compromisso. Com todo o jeito possível, abeiraram-se da menina e disseram-lhe que tinham que ir embora. A pequena, contudo, estava a adorar a brincadeira e, vai não vai, resolveu socorrer-se do argumento mais eficaz que conhecia para a poder perpetuar: começou a chorar. Nestas alturas, já se sabe, os adultos tentam tudo para acalmar a criança, cada um tentando ser mais convincente que o outro. 
Por entre a agitação, quase ninguém reparou no Miguel que, compenetrado, olhava para o chão em busca de qualquer coisa. Às tantas pareceu satisfeito, apanhou o que queria e aproximou-se da amiga, que continuava a chorar. Depois, com ar quase solene, mas pejado de carinho, estendeu a mão, abriu-a, deixando ver uma uma pequeníssima pedra brilhante, e disse-lhe, com o encanto que só as crianças sabem ter:
- Toma, Diana. Não chora, não?!
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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

PARA LÁ DOS CARNAVAIS

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AC
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O dia decorre cinzento, pouco apelativo, como que a ilustrar as notícias que chegam do mundo.
Contudo, quem está minimamente atento sabe que para o emissor a desgraça é que se propaga, qual fogo em terreno seco, em detrimento do gesto benigno, fazendo subir audiências. E a multidão, refém duma lógica pastoral, manipuladora do rebanho, devora a mensagem sem qualquer sentido crítico.
Como que a querer contrariar maus presságios, vislumbro lá fora, através da vidraça, um casal de pintassilgos a debicar aqui, a debicar ali, com toda a delicadeza, fora do raio de acção doutro casal, mas de melros, cuja envergadura, muito mais desenvolvida, aconselha afastamento aos pesos pluma. Os pardais, como sempre, são omnipresentes, como se fossem donos do território, e nem os gatos que por aqui deambulam os conseguem incomodar. Uma aproximação, um voo lesto, cada um sabendo ocupar o seu lugar, com os pequenos felinos a desenvolver, agora e sempre, o culto da resignação.
Saio de casa. Os pintassilgos e os melros esgueiram-se num ápice, mas os pardais, confiantes, ficam por perto. Em volta a vizinhança anda muito ocupada na lavra dos terrenos, prenúncio das sementeiras primaveris que se aproximam. À medida que lavram, num sempiterno ritual, a passarada acompanha o compasso, sempre à retaguarda, atenta a toda e qualquer lagarta colocada a descoberto, banqueteando-se sem qualquer sentimento de culpa. Isso é para os bípedes falantes.
Cinjo-me ao meu pequeno paraíso, repleto de ervas silvestres, onde as margaridas são rainhas. Reparo nas amendoeiras, cada vez mais adornadas de flores, enquanto o damasqueiro, mais dorminhoco, começa a insinuar um tom róseo, procurando imitar os marmeleiros japoneses que, mais junto da casa, há muito alegram o local. Com maior avanço seguem as nespereiras, com o fruto já na infância, aguardando por dias de mais sol para melhor se desenvolver. As outras árvores - macieiras, pereiras, cerejeiras... - sem pressa no parto, reservam-se, pacientemente, para o seu tempo de esplendor, enquanto uma ou outra ave lhes vai enfeitando, por breves momentos, os ramos nus.
Lá no alto, planando sem pressa, as aves de rapina - um ou outro milhafre, quiçá um açor, ou um bufo, talvez uma águia - aguardam pela melhor oportunidade para deitar as garras à cobiçada presa, reservando o uso do bico para quando estiverem instaladas no ninho.
Caminho, olho, absorvo. Quando, por fim, e já de alma saciada, retomo o caminho de casa, ouvir uma boa música apenas serve para complementar o efeito. Ligar a televisão é, naturalmente, a última das minhas prioridades.
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