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No vale, ainda antes de alguém acordar, espalhara-se um nevoeiro que tudo envolvia, que tudo devorava.
Quando despertaram as primeiras almas, e muitas havia que acordavam cedo, já não era possível escapar às garras do intruso. E, quase sem se darem conta, o pequeno-almoço já não sabia ao mesmo: havia algo, quase indefinível, que tolhia o movimento das pupilas gustativas.
Adriana, imponente nos seus oitenta e muitos anos, rijos e de boa saúde, esgueirou-se por entre veredas, contrariando ideias feitas e maus olhados, e encaminhou os passos, ainda certeiros, para as courelas do Vale da Ponte, propriedade ancestral da família, onde as maçãs bravo esmofo e os figos pingo de mel já deveriam estar no ponto.
Colheu, avaliando a fruta, embalada pelo protesto de alguma passarada que via, de repente, ser-lhe interrompido o banquete, principalmente dos figos. Já a cesta estava cheia, com alguma humidade a escorrer dos frutos, quando se lhe deparou o inusitado: um raio de luz, irrompendo a névoa, parecia fixar-se, por entre as ervas secas, resquício dum verão inclemente, sobre um objecto metálico. Estacou, aproximou-se, olhou com atenção e... era a chave da loja onde costumava guardar o resultado das colheitas.
Não se benzeu, não agradeceu aos céus, não invocou qualquer crença sobrenatural. Limitou-se a sorrir, tranquila, enquanto pensava, de si para si, que a velhice tem as suas manhas, o que era preciso era saber aceitá-las. E continuava a sorrir, olhando de soslaio para a cesta, enquanto irrompia num passo suave, mas cadenciado, pelo pó do caminho, em direcção à sua casa de sempre.
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