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Ela não andava bem. Ainda se tocou a rebate, mas as raízes do tumor mamário já eram demasiado fortes. E a Pretinha acabou por se
apagar.
Hoje, logo pela manhã, a enxada exercia o seu mister, compassada, activando memórias que, por
si, se auto-seleccionavam na complexa combustão da razão com a emoção. A cova
ia-se aprofundando, mas a facilidade inicial fora sol de pouca dura. O terreno,
fiel à filosofia dum Inverno nada pluvioso, recusava-se à ideia de fundo, e estoicava-se numa coriácea resistência. É que os equilíbrios não se manuseiam de acordo com a vontade do esforçado aprendiz, são matéria sensível avessa a qualquer
atalho de circunstância. Mas a causa era forte, e insistir era necessário. Por
mais que doesse.
O tempo decorria, indiferente ao drama da relação da enxada
com o terreno duro, e apenas uns baldes de água iam apaziguando a
convivência da (im)possibilidade das coisas. As memórias, ainda em carne viva,
alimentavam a convicção, e a tarefa lá se ia cumprindo. O tempo deixara de existir
no desfilar de imagens da Pretinha, incondicional companheira de tantas horas.
E foram tantas! Não usava turbante, aquela louca schnauzer gigante, mas era
certeira na leitura de alegrias e tristezas, e para qualquer delas
disponibilizava uma ternura única. Sabia seduzir, a Pretinha, socorrendo-se
apenas da naturalidade das coisas. Estou aqui, conta comigo. E estava sempre.
O tocar do telemóvel desvaneceu imagens e emoções. Era da clínica,
onde ela tinha passado a sua última noite de vida, e só nessa altura a ditadura
do tempo se impôs. Desde que a enxada iniciara o seu ritual, o sol já tinha
galgado três horas no seu galopar. Estava na hora de ir buscar a Pretinha. A
terra aguardava-a.
Enquanto a enterrava – não interessa o porquê, mas tinha que
ser eu, mas é duro, muito duro – alguns pensamentos, daqueles que não pedem
autorização para assomar, chegavam-se à frente. Para lá do choro, momento único
de expurgação, a morte, para o observador atento, é
sempre uma tentativa de reconciliação com a vida. Não é ela, em si, uma forma única?
No final, flores silvestres para a Pretinha. Ela gostaria.
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