sábado, 25 de junho de 2022

ENTRETANTO

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Margarida Cepêda, As nossas teias
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Há um tempo de frenesim na vida, no nosso crescimento, como se as coisas nos escapassem por entre os dedos, fugindo à vontade de mudar o mundo a nosso jeito. Mas, plenos de energia, continuamos.
Entretanto, noutras latitudes, as pessoas apenas lutam para sobreviver.
Há um tempo duma suposta estabilidade na vida, em que, a pretexto de salvaguardarmos os nossos, começamos a ser condescendentes. Mas os bens materiais são o perfeito antídoto para anestesiar a consciência.
Entretanto, noutras latitudes, as pessoas, com alguma ajuda, apenas lutam para sobreviver.
Há um tempo em que, por mais que nos custe, começamos a envelhecer. Mas socorremo-nos de todos os artifícios para adiar o inevitável.
Entretanto, noutras latitudes, as pessoas continuam a lutar, com alguma ajuda, para sobreviver.
Há um tempo em que, por fim, nada mais há para adiar. E só nessa altura, sem nada para subornar a ceifeira, temos a plena consciência da nossa condição.
Entretanto, noutras latitudes, há muito que os contemporâneos  de nascimento foram tragados pelo inevitável. Mas, felizmente, com maior ou menor ajuda, os que restam continuam a lutar para sobreviver.
Haverá um tempo em que, para lá do tempo que foi, apenas restará a lição. Só então, por mais que doa, se evitará a contra-mão.
Entretanto...
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domingo, 19 de junho de 2022

ABISMOS E LABIRINTOS, CANDEIAS (ETERNAMENTE?) ÀS AVESSAS

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Margarida Cepêda, Tocando para o abismo
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Os tempos eram de ameaça, apesar dos dirigentes se esforçarem por vender a canção "Tudo vai bem". O mal vinha de longe, sem aparente cura, e Ruican, que vivia numa solidão assumida, própria de quem via as coisas antes do tempo, mantinha-se inflexível. Havia que dar volta às coisas, combater o fatalismo, de inaugurar uma época para lá da escravidão de todos pensarem o mesmo...
Bruma, que crescera perto de Ruican, sabia muito bem o que ele pretendia. Mas, apesar de limitada à distância que lhe era concedida, conseguia perceber que, por mais que ele tentasse, haveria sempre uma barreira entre ele e os outros. Por mais que ele porfiasse, as pessoas iriam sempre agarrar-se àquilo que sempre tiveram, em detrimento daquilo que a maioria nunca teve.
Ruican gostava de Bruma, para lá duma visão maior, pois sabia que nela habitava o segredo da simplicidade. Mas pensava, para sua desgraça, que havia uma questão superlativa a descobrir.
Bruma gostava de Ruican, por ele mesmo, contra todas as expectativas dos outros. E, sem que ele soubesse, ia todos os dias, à tardinha, remar contra a maré das coisas fáceis: abeirava-se do penhasco, munida do seu violino e, perante a fúria dos elementos, tentava tocar a profundidade das coisas mais simples, qual segredo para chegar a Ruican. Mas este, demasiado entregue ao seu ego, tardava em perceber...
O abismo, sem que Ruican se apercebesse, demasiado entregue à sua visão, começava a desenhar-se à sua frente.
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sábado, 11 de junho de 2022

PARA ALÉM DO TEJO, COM BORBA COMO PRETEXTO

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AC, Fachada do antigo Hospital do Espírito Santo, em Borba
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Por entre uma história de corrupios e arrepios, desavenças e avenças, com muita insegurança de permeio, assim se cultivou um povo sobrevivente, de parcas e tímidas posses, mas que soube encontrar, na sua resiliência, a forma de escapar a um trágico destino. Muitos emigraram, povoando os dormitórios da capital, outros ficaram, cultivando um lamento muito próprio, em tom dolente, mas sempre com um sorriso muito próprio à espreita de assomar na primeira oportunidade. E, quando se conseguem libertar da canga, bebem, cantam, confraternizam, ironizam...
Em Borba, para lá das pedreiras e do vinho, a sua maior riqueza, há todo um manancial de culturas entre-cruzadas de conquistadores e conquistados, de sobreviventes e assimilados. E, por entre as fachadas de mármore, material só acessível a quem estava de bem com Deus e o Diabo, o casario  humilde, sem pretensões, acabava por agradar a todos: a uns, porque dispunham de mão-de-obra barata e sempre disponível; a outros porque, apesar de tudo, acabavam por usfruir dum tecto para abrigar os seus. Tudo isto à sombra dum castelo, obrigatório em terras tão inseguras, e do qual já pouco resta.
Entre diferenças - sempre presentes, tal era o abismo - o engenho acabou por moldar a arte.  A escassez da maioria, herança acumulada de séculos, deu azo a criatividades várias, com o campo, fora da supervisão dos poderosos, a contribuir com coentros, orégãos, poejos, hortelã, alecrim, louro e outros que tais, dando forma, consistência e sabor, a um considerável número de pratos tradicionais que muito orgulham os residentes, apesar de pouco, ou nada, se passar da cepa torta: ontem para comer, sobrevivendo, hoje para vender, continuando a sentir, no âmago, ainda e sempre, o sentido do verbo sobreviver.
O Alentejo, por mais voltas e contra-voltas que dê, nunca deixa de me encantar. As suas gentes, moldadas na herança de mil e um povos que calcorrearam o território, com um toque q.b. das planícies solarengas, com um olhar sempre projectado, inconscientemente, no horizonte, são uma espécie única. Para melhor.
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