quarta-feira, 27 de outubro de 2021

BUCÓLICA OUTONAL

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AC
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O dia está sorridente, com o sol, maroto, piscando o olho à minha pré-reforma, como que a dizer-me que está tudo bem, tudo irá continuar bem. É um mentiroso, mas sorrio para o presságio, tal como se uma cigana de feira me lesse a sina. E aconchego-me aos seus raios, com chapéu a prevenir, não vá o diabo tecê-las.
Lá fora já não se dá pela presença de muita passarada, entretanto emigrada. Os pardais, contudo, inquilinos de tudo o que é habitável, continuam a palrar, a debicar, a chapinhar numa ou outra poça de água de ocasião. 
As moscas tendem a esvair-se, hurrah!, as formigas começam a aninhar-se, mas as borboletas, persistentes, continuam num contínuo esvoaçar, obedecendo à melodia da luz do dia, num eterno bailado em busca do melhor local para depositarem os seus ovos. O mundo, no que lhes diz respeito, jamais findará. 
Os gatos, na ausência do cão, voltaram a instalar-se no terreno, quais donos e senhores dum território que lhes é prazenteiro. E, para dar crédito às minhas palavras, uma gata prenhe, que pelo volume do ventre deve estar prestes a fazer jus à harmonia da criação, pavoneia-se, lentamente, na calçada que circunda a casa, como se tudo estivesse no seu lugar.
Renuncio, por momentos, à minha postura de observador, tento reconciliar-me com a prática do afã do bípede supostamente inteligente. Munido duma enxada que, segundo Jorge Luís Borges, é um instrumento que prolonga o braço do ser humano, acabo de tirar da terra o último quinhão de batata-doce. Lavo-a, ponho-a ao sol para secar, mais tarde irá para a despensa. A maioria, está mais que decidido, para assar no forno.
Olho para o céu. Ainda é cedo para as aves de rapina, mas uma ou outra já cavalga o céu, à espreita da sua oportunidade. Devem estar inquietas com o preguiçar duma ou outra cria, que tarda na emancipação. E eu, perante a grandiosidade daquilo que me rodeia, renegando a condição de mais sofisticado predador, retiro-me, humildemente, para o meu abrigo.
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sábado, 23 de outubro de 2021

A SEMENTE

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Cavalgamos, às vezes sem aparente rumo, os desafios ímpares da vida, por demais complexos. Irrompemos, cambaleamos, às vezes caímos, para logo a seguir nos levantarmos, entoando, desejavelmente, hinos de confiança na ressaca. Continuamos a desbravar, inoculamo-nos contra as tentações do abismo, sempre sedutor, e, por entre a neblina, por vezes conseguimos divisar um vale fértil, propício a sonhos e a utopias. E voltamos a irromper, agora num investimento mais abrangente, mais tolerante. E semeamos. Porque, entretanto, algo aprendemos no caminho. 
O meu neto, o Miguel, nasceu em plena pandemia, numa altura em que, para lá das indefinições de sempre, tudo era colocado em causa. Sentindo, bem atento, a ansiedade dos pais, adquiri a convicção de que, por mais ameaçadores que sejam os cenários, a confiança e a esperança renovam-se sempre com o aparecimento dum novo ser. E, o que é reconfortante, o sorriso brota, naturalmente, fruto da força emanada duma convicção ancestral.
O Miguel, nós sabemos, irá enfrentar um mundo em contínua mudança, pleno de desafios, em que nada é garantido. Mas cá estaremos para amar, para educar, para serenar, para ajudar a apaziguar qualquer fantasma que se insinue no seu percurso. Com a premissa, condição sine qua non, da liberdade, do livre arbítrio e do bem fazer, questões que, em última instância, no momento da decisão, só a ele dizem respeito. Como se fosse uma semente em perpétuo movimento, com raízes cultoras do abraço, sempre em busca da cumplicidade, da perseverança, da justiça, da abrangência, de ser feliz com os outros... 
Vai ter um percurso fácil? Não, não é o que se divisa. Mas vai, no que depender de nós, encerrar dentro de si uma vontade intrínseca de ser uma pessoa boa, melhor a cada passo, com a certeza de que, para além da determinação, nada poderá ser alcançado sem a cumplicidade dos outros. Assim transporte ele, e os da sua geração, apesar do árduo trabalho que os aguarda, a semente mais adequada. 
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terça-feira, 19 de outubro de 2021

PEQUENAS (GRANDES) COISAS QUE FAZEM A DIFERENÇA

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Foto (desfocada) de AC
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Manhã de sábado. O sol, ao contrário dos dias anteriores, mostrava-se arredio, revestido de manto cinzento, com um berloque, aqui e ali, duma tímida luminosidade. Ainda bem, tendo em vista a tarefa que nos aguardava.
O meu vizinho do lado poente, contrariando o individualismo dos tempos, teima em cultivar formas ancestrais de cooperação, recorrendo aos amigos sempre que surge alguma tarefa mais volumosa. Foi assim com a vindima, há algumas semanas atrás, foi agora com a colheita de azeitona para conserva que, como todos sabem, é apanhada mais cedo. E, à hora convencionada, lá estava um rancho de gente para o que desse e viesse. As instruções eram simples: só se apanhava a azeitona mais grossa, a restante ficava para mais tarde, para a produção de azeite. E assim foi. 
A colheita começou cautelosa, quase em silêncio, com a preocupação do calibre do fruto. Depois, já confiantes, a tagarelice começou a instalar-se. Fazia-se uma ou outra pergunta para maior conhecimento pessoal, surgia uma graçola e, com o passar do tempo, ganhava-se a confiança necessária para se falar dos filhos, de gostos pessoais, de política, com um ou outro dito mais filosófico. Num sector mais restrito até se falava, imagine-se, da importância exacerbada, para alguns maléfica, que alguns gigantes, como o Facebook e a Amazon, estão a ter no nosso destino. Mas a azeitona, o pretexto para aquela reunião, ia-se acumulando nos baldes e nos cestos, resignada à vontade daquele rancho, travestido com roupagens de formiga e cigarra. Eram humanos, pois é claro. Até os pardais, sempre omnipresentes, acharam por bem dar espaço àquela tribo.
No final, como é da praxe, o anfitrião serviu refeição farta e saborosa, certificando-se de que tudo estava a contento. E o convívio, bem embalado pelo bem-estar do estômago, prolongou-se pela tarde fora, cimentando a comunhão entre gente com uma certa forma de estar na vida, que cultivava de forma natural. 
Entretanto, e dando sempre lugar aos imprevistos, fez-se convidada uma chuva miudinha. À memória, tipo aconchego, e para lá do sentir das coisas feitas no tempo certo, insinua-se a emblemática canção dos Beatles, Whit a little help from my friends, na magistral interpretação de Joe Cocker. Por mais que chovesse, a vida, para aquela gente, seguia o rumo certo.
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quinta-feira, 14 de outubro de 2021

VISLUMBRE DO ACENAR COM UM SORRISO NOS LÁBIOS

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AC
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Muito trabalho, pouco descanso, contas sempre a acenar, demasiadas regras a cumprir...
Andava descrente da face clara da vida. E logo ela que, desde que se lembra, sempre se preocupara em activar o ânimo dos outros. Pelos vistos, pensou, em cada esquina, para lá do amigo cantado pelo Zeca, também espreitava a penumbra. 
Inês pegou no copo de Papa Figos e foi até lá fora. Levantou o olhar para poente, em busca de luz e, de forma inesperada, sentiu um forte impacto, mas em modo suave, apaziguador, qual indelével manto tecido em harmonia. O dia despedia-se em modo festivo, sóbrio na quantidade de cores, é verdade, mas todas elas intensas, congregadoras das mil e uma formas com que se desenhara a tela, qual convite à criação dum poema, duma canção, do mergulho regenerador ao interior da zona de conflito.
Ficou por ali, deslumbrada, enquanto a tela se transformava, em movimentos lentos, obedecendo ao desígnio do sol, das nuvens, talvez dos deuses, enquanto a ligeira brisa lhe acariciava, suavemente, a face. E, pela primeira vez nos últimos dias, deu-se conta de que estava a sorrir.
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terça-feira, 5 de outubro de 2021

OURIÇANDO PELA GARDUNHA

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AC, Pormenor da Serra da Gardunha
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Já se despediu o odor a fruta madura, com sabor tardio a uvas, pêras e a maçãs bravo esmofo. Pela frente, para além das amêndoas, das nozes e das avelãs, frutos secos de adoçar serões, com a maioria já na despensa, chega-se à frente o eclodir das castanhas, revestidas de camisas cacheirentas, espinhosas, o que muito tem que se lhe diga.
A meio da encosta, em socalco privilegiado, mais plano que os restantes, ressaltam, para além da alameda de castanheiros, pormenores que escapam a um visitante apressado. Ressalve-se o aparecimento súbito de dois cavaleiros, faina pouco dada, habitualmente, a esta altitude, que surgiram para surpreender, agradavelmente, dois hóspedes do dumping das proximidades, instalado no arremedo de planalto que ladeia a antiga Casa do Guarda (florestal, diga-se). Eles deleitaram-se, como era suposto, eu preferi outras latitudes. E, entre andanças e poucas araganças, certos pormenores, por mais ínfimos, foram coçando a minha atenção. Detive-me, por fim, num aglomerado de ervas secas, embaladas pelo vento, que enquadravam, à distância, as nuvens que se iam formando para os lados da Estrela, como que avisando que tudo se movimenta, que tudo, quando menos se espera, pode acontecer. E o pensamento divaga, galga fronteiras...
Interiorizo a mensagem, fotografo a irreverência (condicionada) das ervas e regresso à alameda dos castanheiros. Os ouriços lá estão no alto, plenos de picos e, de forma espontânea, assola-me o comum dito, já muito repisado: o fruto proibido é o mais desejado. Para não desdizer tal coisa, em tarde tão amena, rebusquei um varapau nas redondezas e, qual criança em pleno deleite, derrubei meia dúzia dos ditos, já semi-abertos, e rapinei o seu conteúdo que, lestamente, como se de coisa preciosa se tratasse, coloquei num saco, alicerçado no vislumbre dum copo de generosa jeropiga.
Percorri, sorridente, o resto da alameda, fiz um esboço de festa aos cavalos e, de bem com a vida, como se tivesse resolvido o enigma do pecado original (está bem, está!), entrei no carro para encetar a descida da serra, enquanto trauteava Strawberry Fields Forever.
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sexta-feira, 1 de outubro de 2021

ELOGIO DAS COISAS SIMPLES

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Quando o neto chegou, qual momento crucial, deixou que as emoções se soltassem e, num despertar dum outro menino,  sentiu que o corpo, de forma espontânea, se embalava numa dança de sapateado quase sem nexo, mas que, pelos vistos, para o seu inconsciente à flor da pele, a respirar liberdade, fazia todo o sentido.
O Miguel, no colo do pai, deixou que os olhos se iluminassem. E, quando o progenitor o colocou no chão, encetou, também ele, o sapateado que o encantara. Para deslumbre geral.
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