sexta-feira, 27 de março de 2020

ACERCA DO PÃO E DO AMOR, SUPREMA TATUAGEM DA VIDA

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Picasso, The bread carrier
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Após manhã retemperadora em contacto com a horta, qual cuidador  mil vezes cuidado, reservo a tarde para abrir janela para o exterior. 
Sento-me, compenetrado, frente ao computador. Começo a teclar ao sabor da corrente, descuidado nas ideias, qual navegante em busca do melhor rumo. Após uma vintena de palavras, ainda sem terra à vista (Vivemos tempos agitados, esbracejando, a custo, para lobrigar novos paradigmas, enquanto as supostas certezas se esvaem, com grande estrondo, como edifícios de areia.), teimam em assomar à tona, como se de coisa natural se tratasse, esboços de saramagais ensaios, mesclados de cegueira e lucidez. Parei. Depois, ainda hesitante, reservei as palavras deambulatórias, voltei atrás e encetei nova tentativa de preâmbulo. Do descrito fica apenas a leve referência, com ressalvo parentesado,  para relembrar e maturar mais tarde, ultrapassando o risco de, nas linhas consequentes, me perder na teia linkada do emaranhado percurso da espécie humana, pejada de cíclicos recomeços. Por ora, para lá do livro de longo fôlego, fica apenas reservado espaço para o jornal do dia.
Por aqui, neste recanto onde a passarada se sente em casa,  procurando, da melhor forma, dar corpo à  mensagem resguardadora que a todos envolve, decidiu-se fazer pão.
Preparado o cenário, o acto é encarado com cerimonial ênfase. Trabalha-se a massa, sem pressas, qual diálogo ternurento em busca do melhor que ela encerra.  A meio, embalado na delicada carícia da textura, recordo, com satisfação, o texto doutras andanças, mas sempre actual, a carecer apenas de levíssimo retoque:
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Envolvo-me com a farinha, a água, o fermento e o sal. O acto de amassar é cerimonioso, muito longe da aparente simplicidade, herdeiro que é de memórias profundas, plenas de significado: o esforço da sementeira, da ceifa, da moenda, etapas de um ciclo transportador de todas as esperanças, com risos, temores e cautelas. 
O acto de amassar não dispensa o fato das memórias. A pouco e pouco a massa rende-se à cadência cerimonial dos gestos, abrindo portas ao cimentar da dedicação e da perseverança. Cada gesto transporta a herança de mil gestos anteriores, ancestralidade feita sabedoria nas voltas do tempo.
Levedar é dar lugar à manifestação de alegria das carícias. E a massa, crente nas intenções, deixa-se moldar antes de entrar no forno, decisiva viagem com retorno anunciado.
O amor, o sempiterno amor, carece das voltas do pão. Precisa ser feito, constantemente refeito, por vezes reinventado, mas sempre com delicada cerimónia.
O amor e o pão, feitos com entrega, serão sempre eterna bênção.
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Eternamente ligadas, muitas são as voltas da vida, muitas são as do pão. Mas sempre com um fio condutor, que as eleva: o amor.
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sábado, 21 de março de 2020

ACERCA DA EMERSÃO DO QUE DE MELHOR HÁ EM NÓS

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AC, Alho francês e cebolas
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Os deuses, desesperados, parecem ter enlouquecido. Cansados da ambição desenfreada dos homens,  alimentada na incapacidade de percepção dos limites, lançaram invisíveis chispas que tudo tolhem, tudo paralisam, pondo à prova a capacidade de sobrevivência da espécie humana. Seremos, socorrendo-nos daquilo que de melhor existe em nós, capazes de vencer este desafio?
Aproveitando uma pausa da chuva, saio de casa  para uma rápida surtida pelo espaço da horta, qual piparote em cinzentas cogitações que me vão toldando o espírito. As cebolas, o alho francês, as alfaces, as cenouras, as curgetes e os tomateiros, recém inquilinos da terra, parecem-me bem instalados, agradados com as últimas chuvas. Ao lado, num verde mais volumoso,  em completa maturação, também as couves galegas e os repolhos parecem ter ganho uma nova vida, começando a piscar o olho para a colheita. Mais além, numa singular elegância, as ervilhas começam a pavonear-se medalhadas de belas e abundantes vagens. Espalhadas estrategicamente pelo terreno, também as novas árvores começam a dar sinal de si, a esboçar os primeiros sorrisos. Só as duas nogueiras parecem querer continuar no aconchego do saco umbilical, teimando em não dar sinal de vida. 
Um raio de sol começa a espreitar, timidamente, por entre as nuvens, enquanto a pardalada, em eterna omnipresença, se mostra incansável na procura de alimento. Duas andorinhas, chilreando, saem do telheiro da lenha, adaptado a condomínio privado há já vários anos. Lá em cima, num voo planante, quase majestoso, uma cegonha cruza os ares, talvez em busca de novos materiais para retocar o ninho. E, sem me dar conta, começo a abrir os braços, como que a querer abranger toda aquela grandiosidade, delicadamente tecida em simplicidade.
A chuva volta a mostrar-se. Regresso a casa, sem pressa, convicto do essencial: aquilo que de melhor há em nós vai continuar a emergir, qual força avassaladora que tudo reconverte, tudo redime. Sim, vamos vencer este desafio.
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sábado, 14 de março de 2020

E COMO AS VERDADES SÃO O QUE SÃO, PELO SIM, PELO NÃO, SAIA UMA TEORIA DA CONSPIRAÇÃO

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Ferdinand Barth, Goetthe's Werke (1882)
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Havia um vale, restrito, em que cada um sabia quem era quem.
Agora há um vale, global, em que cada um cogita para saber quem é quem, ficando sempre muito aquém. E, neste espaço imenso, fértil, propenso à cogitação, uma minoria manobra, porque sim, semeando falsos deuses de perlimpimpim, os outros são apenas o que são -  manobrável multidão -  limitando-se a beber a água que lhes dão.
Por detrás da cortina, devidamente mandatados e submersos na escuridão, aprendizes de feiticeiro ensaiam caldos químicos em profusão, à procura do melhor grau de combustão. Mas no fundo são humanos, coitados, e, distraídos, serviram ontem, à mesa, um bichinho que lhes "fugiu" da mão, provocando a maior agitação.
Hoje, é bom de ver, o mundo é uma enorme confusão. Ou será apenas, bem vistas as coisas, mera teoria da conspiração?
Em jeito de remate, e tentando aproveitar a lição, o bichinho concedeu, pelo menos, um condão: o de olharmos, com outra atenção, para quem temos mais à mão. E o que se descortina, para lá da rima, é que de todos nós se poderá gerar a vacina.
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domingo, 8 de março de 2020

A PROMESSA

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Imagem retirada daqui
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A auto-estrada há muito ficara para trás. Após desenvencilhar-se da estrada municipal, com passagem por meia dúzia de aldeias, começou a ladear a montanha por uma estrada estreita, em mau estado, pejada de curvas. Os incêndios tinham deixado marca, era notório, mas ainda se via, aqui e ali, um ou outro pinheiro, além um carvalho, ilhas isoladas no mar de urze e giestas que entretanto tinham desabrochado, sobreviventes duma tragédia há muito anunciada.  
Continuou a viagem, tentando redescobrir traços da paisagem doutros tempos à medida que vencia cada curva. No Braceiro, onde as courelas, outrora, alimentadas pela água das nascentes, eram cultivadas com esmero por um rancho de pessoal cantante, tinham soçobrado à invasão das silvas. A vegetação, indiferente à pegada humana, nem de caminhos ou veredas deixara rasto.  Digeriu a mágoa, meteu nova mudança e galgou mais algumas curvas. Às tantas, ultrapassada a Fraga da Moura, viu-se na Portela das Almas, ponto de encontro nocturno, segundo estórias de antanho, das almas do outro mundo. Não conseguiu evitar um sorriso com a lembrança, como se regressasse ao tempo em que a avó maravilhava com gestos e palavras nos serões invernais. Encostou o carro, saiu e aproximou-se do enorme tronco do velho castanheiro, centenária sentinela de tudo quanto a vista abrangia. Pôs a mão direita por cima dos olhos, à laia de pala, e divisou, lá ao fundo, sobranceiro ao serpentear da ribeira, o Vale da Ponte, ancestral ninho onde tudo começara. Olhou, demoradamente, para o conjunto de casas. À medida que as ia identificando, sem pressas, o pincel da memória ia dando colorido a cada uma delas, pintalgando-as de mil e uma recordações bordadas com algumas travessuras. Sentiu o coração palpitar, sentia-se de regresso à eterna casa.
Olhou para o relógio. O tio e o alemão já deviam estar na loja da Belmira, um misto de mercearia, taberna e posto público, epicentro das poucas novidades do lugar, aguardando a hora para a consumação do acto que ali o trouxera. Estava tudo tratado e falado, a internet facilitava muito estas coisas. O alemão, saturado da vida urbana, procurava reencontrar a autenticidade da vida no contacto com a natureza. Ele, por sua vez, incapaz de se libertar das teias com que a vida o foi tecendo, viu naquele estrangeiro a oportunidade de cumprir a promessa que fizera à mãe: as terras herdadas da família em Vale da Ponte nunca seriam abandonadas.
Reentrou no carro e encetou a descida. O contrato, por sua exigência, não contemplava a venda dos terrenos. O alemão instalava-se, cultivava, podia introduzir todas as ideias que lhe povoavam a mente, dar livre curso à sua utopia. No entanto, após o consumar da sua vida, as terras voltavam à posse da família. Talvez os filhos, ou os netos, quem sabe...
- Frank Bauer?
O sorriso desenhado e a mão estendida diziam tudo.
Almoçaram em casa do tio, conversaram sobre as gentes e o lugar e depressa ultimaram as pontas soltas daquele inusual contrato. Após mais um aperto de mão, de olhos nos olhos, faltava a parte mais solene, aquilo que verdadeiramente ali o trouxera. Dirigiu-se para o cemitério, empurrou o velho portão de ferro e procurou a campa familiar. Depois, em acto solene, justificou-se:
- Ouve-me bem, mãe. Prometi que um dia voltaríamos para este lugar, a terra que sempre amaste, que corre nas nossa veias, mas as minhas batalhas foram mais que muitas e os teus netos andam distraídos com outras lides, correndo em busca não se sabe bem do quê. Mas renovo a promessa: um dia havemos de voltar, como tu sempre quiseste, mas parece-me que, por ora, as nossas terras ficam bem entregues. Sabes, tu havias de gostar do Frank. Os olhos brilham-lhe quando fala da terra, está prenhe de planos, até já fala em construir uma mini-hídrica. Bem sei que não era isto que sonhavas, mas podes ficar descansada, mãe, ele vai saber cuidar da terra como ninguém. Adeus, mãe. Tal como o poeta,  já podes ir com as aves.
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domingo, 1 de março de 2020

TRABALHAR DESCANSANDO, OU DESCANSAR TRABALHANDO?

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AC, Vista parcial do "grande" ginásio
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A opção já tem alguns anos, mas a convicção renova-se a cada instante: estar em contacto com a Natureza, longe da galinha da minha vizinha, que é maior do que a minha, é lição de vida permanente.
Nos últimos tempos, no "meu pequeno paraíso", a prioridade tem incidido na preparação dos terrenos para a horta de verão. Este ano o projecto é alargar a diversidade de espécies, de modo a que a horta, para além de abastecer a casa, possa ser centro de partilha com familiares, amigos e vizinhos, daí a necessidade do terreno disponível aumentar proporcionalmente. Em suma, é preciso cavar terra. 
Em prol do bom desiderato do plano, o sítio transformou-se num grande ginásio, com exercícios bem cadenciados no manuseio da enxada, marcados pelo arfar do corpo. É então tempo de, mentalmente, improvisar lengalengas, obedecendo, sabe-se lá como, a um qualquer ancestral artifício: 
Um, dois, três,
Vamos lá outra vez
Quatro, cinco, seis,
Lá se foram os reis
Sete, oito, nove
Qual a força que me move
Dez, onze, doze,
Não é frete, mas é dose
...
A empreitada vai-se cumprindo, sem pressas, embalada na cantilena e na omnipresença da passarada. As pausas, oh, as imprescindíveis pausas, têm sempre lugar marcado. É então que o olhar aproveita para se distender, de forma circundante, absorvendo o tecer duma vida em constante laboração: nas aves, nos insectos, nas plantas, enquanto renovo, sem me dar conta, os laços naturais com o que me envolve.
Acabada a pausa, de bem com o mundo, volta a mental cantilena:
Um, dois, três,
Vamos lá outra vez...
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