sábado, 30 de maio de 2020

ACERCA DA COMPLEXIDADE DO VOO PARA LÍNGUAS PERGUNTADORAS

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Fotografia da Luísa, do blogue À Esquina da Tecla
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Havia um passarinho. E um lago. E tão bem se davam que fizeram promessa de amor eterno: quando o passarinho passarinhava, o lago alagava.
E depois?
O tempo passou, o passarinho passarinhou, o lago alagou. E toda a gente protestou. 
Afinal, como é que ficou?
O passarinho assisou, o lago recuou e toda a gente se calou.
Assim, tão simples?
Achas simples conjugar o nós com os outros? Anda cá, meu potrinho, que eu ponho mais uns pozinhos. Era uma vez...
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sábado, 23 de maio de 2020

ESBOÇO DE TELA DO TEMPO PARADO

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Imagem tirada daqui
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A meio da tarde, quando a brisa era apenas leve rumor, percorrias o caminho do rio e, de livro na mão, ias sentar-te na velha sentinela granítica, ancorada à beira d'água, plataforma de mergulhos da pequenada nas longas tardes de verão. 
Abrias o livro, tentavas embarcar nas palavras, mas não por muito tempo. A quietude do lugar insinuava-se, parecia querer abraçar-te e, num diálogo silencioso, acabavas por embalar nas águas calmas, onde as libelinhas, numa velocidade estonteante, pareciam bailar por entre os juncos. Mais além, junto do velho salgueiro, um guarda-rios ousava um voo picado na mira de um peixe. Sentias-te bem, divagavas, o tempo parecia querer parar para te ver. 
Quando partias, qual secreta tentação juvenil, escolhias, com esmero, uma pedra achatada e lisa. Depois, num movimento de anca, atiravas com firmeza, na horizontal, deleitando-te enquanto a vias saltitar à superfície da água.
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terça-feira, 19 de maio de 2020

A FLOR MURCHA

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O pai partira cedo. E, desde que se recorda de ser gente, habituara-se a ver na mãe um rochedo imenso, imune às intempéries. Aquela caixa-forte, sem aparente palavra-passe, levara de vencida todos os escolhos da vida que se lhe foram deparando, construindo uma reputação de determinação e solidez.
Rita foi crescendo à sombra daquela imponência, demasiado assustada para perceber ou questionar. E a mãe, de tão ocupada que estava na sua luta, esquecera-se da matéria frágil de que é constituída uma flor.
Os anos passaram e, à medida que a lenda do rochedo se cimentava, também a fragilidade de Rita se acentuava. Quase irreversivelmente.
Um dia o tempo, inexorável, bateu à porta do rochedo. Este, vencedor de mil batalhas, sabia que o novo obstáculo era intransponível. E começou a fraquejar. Rita, que de tão frágil nunca chegara a entender a grandeza da mãe, escolheu o momento impróprio para amuar, atribuindo-lhe a sua fragilidade. E cultivou a distância.
O rochedo ficou à deriva. E só quando este se desfez em pó é que Rita percebeu que tinha perdido a oportunidade de se tornar uma flor viçosa. 
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Reedição
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sábado, 9 de maio de 2020

POR ANDANÇAS DE MAIO, À BOLEIA DE ROSMANINHOS E MARCELAS

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AC
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Todos os anos é assim. Ao chegar a erupção primaveril, socorro-me de apetrecho adequado e começo a cortar as ervas que, movidas pela sua natureza, teimam em povoar o terreno circundante. Há espaço para todos, teimo eu, enquanto vou cortando, um pouco para lá da horta, salvaguardando a zona mais próxima da casa. Elas ficam com o seu espaço, habitat de múltipla bicharada, eu fico com o meu. Contudo, quando chego à zona dos rosmaninhos e das marcelas, há sempre algo que me impele a contorná-las. O aroma, de um inebriante apaziguador, impele-me para estados de alma em que o supérfluo, espontaneamente depurado, nada conta, deixando-me à porta da simplicidade plena. Não bato, que tal estado não carece de anúncio. Limito-me a respirar, a absorver, e só depois a continuar.
No retirar de cena, após visão retemperadora do trabalho feito, o banho apenas acentua o bem-estar da alma. Bem amplo, por sinal.
A fotografia, no final, é apenas mero lembrete para o verdadeiro significado das coisas simples.
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sexta-feira, 1 de maio de 2020

ACERCA DA GENTE COM UM CONTENTAMENTO DESCONTENTE

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Dead Combo, Povo que cais descalço
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Havia sol. E mar. E montanhas. E gente. Gente com um contentamento descontente, de há muito sobrevivente.  
Mas era um lugar especial. E essa gente, trajada, desde sempre, com um contentamento descontente, mesmo na incerteza - temperada de partidas e chegadas, muitas falhadas - reinventava-se no dia-a-dia, enquanto bulia. E, por mais que lhe doesse, cantava. E chorava. E ria.
Havia sol. E mar. E montanhas. E a minha gente.
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