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Margarida Cepêda, Tríptico (Painel 1: A queda; Painel 2: Esquecimento e nostalgia; Painel 3: Ascensão)
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O Bento ajustou a cápsula de café na máquina, apreciando a forma, interrompido pela voz da Lilinha, sempre omnipresente:
- Ainda não tiraste o café?
O Bento, desajustado perante o ajuste, não respondeu verbalmente, limitou-se a carregar no botão da máquina, que deu origem ao processo, e deixou que o ronronar maquinal falasse por ele.
- Açúcar? - inquiriu ele.
- Muito pouco. - respondeu ela.
Já recostada, e enquanto se concentrava no café, na televisão falava-se, pela enésima vez, da guerra na Ucrânia. Lilinha, recostando-se ainda mais, parecia alheia ao tema. E, de voz dengosa, inquiriu:
- Não há por aí um bombom?
O Bento, contudo, já não a ouvia. A essa hora, medida em segundos sonolentos, ou em minutos mal contados, de tal a pressa, e aproveitando o mergulho no dolce far niente da Lilinha, montara-se na velha bicicleta e seguira pelo caminho velho que ladeava os cedros. E deleitava-se, pedalando, imerso na paisagem e no canto da passarada, sem conservantes nem aditivos.
Quando o cão surgiu na curva, com ar espantado, o Bento pouco podia fazer. E, depois da guinada instintiva, deixou-se ir para o lameiro, enquanto gritava:
- Lilinhaaaaa!!!!
Quando se levantou, meio trôpego, o Bento estava a precisar, nitidamente, de um pouco de açúcar.
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