sábado, 24 de junho de 2023

ESCAPADINHA SEM AÇÚCAR

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Margarida Cepêda, Tríptico (Painel 1: A queda; Painel 2: Esquecimento e nostalgia; Painel 3: Ascensão)
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O Bento ajustou a cápsula de café na máquina, apreciando a forma, interrompido pela voz da Lilinha, sempre omnipresente:
- Ainda não tiraste o café?
O Bento, desajustado perante o ajuste, não respondeu verbalmente, limitou-se a carregar no botão da máquina, que deu origem ao processo, e deixou que o ronronar maquinal falasse por ele.
- Açúcar? - inquiriu ele.
- Muito pouco. - respondeu ela.
Já recostada, e enquanto se concentrava no café,  na televisão falava-se, pela enésima vez, da guerra na Ucrânia. Lilinha, recostando-se ainda mais, parecia alheia ao tema. E, de voz dengosa, inquiriu:
- Não há por aí um bombom?
O Bento, contudo, já não a ouvia. A essa hora, medida em segundos sonolentos, ou em minutos mal contados, de tal a pressa, e aproveitando o mergulho no dolce far niente da Lilinha, montara-se na velha bicicleta e seguira pelo caminho velho que ladeava os cedros. E deleitava-se, pedalando, imerso na paisagem e no canto da passarada, sem conservantes nem aditivos.
Quando o cão surgiu na curva, com ar espantado, o Bento pouco podia fazer. E, depois da guinada instintiva, deixou-se ir para o lameiro, enquanto gritava:
- Lilinhaaaaa!!!!
Quando se levantou, meio trôpego, o Bento estava a precisar, nitidamente, de um pouco de açúcar.
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quarta-feira, 14 de junho de 2023

PINGOS DE CHUVA EM CONTRAMÃO

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Fotos de AC
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A chuva, por estes dias, não parou de cair, iludindo a caminhada, mais que provável, para a seca, confirmando, mais uma vez, que a excepção é parte integrante da reg(r)a.
A horta, mais pragmática do que eu, agradece a bênção pluviosa para se desenvolver de forma natural, mas deixando para mim a preocupação com as ervas que, à boleia de tal escorrega, crescem desmesuradamente, nada se importando com um mero aprendiz de hortelão que, por todos os meios, tenta salvaguardar o bem-estar das suas plantas de estimação. Se as ervas agora já se insinuam, a carta de alforria irá chegar, dentro de poucos dias, quando os raios solares retomarem o seu domínio. É então que se começará a conjugar o verbo mondar.
Entretanto, aproveitando a folga da chuva, tento manter-me a par do que se passa pelo mundo, vasculhando jornais e revistas. E confirma-se uma ideia muito arreigada: tanto governantes, como oposição, apenas se preocupam com a detenção do poder, deixando para as calendas a solução dos problemas. E digladiam-se, sem fim, em busca da simpatia de potenciais eleitores. Invocando um famoso título literário, a oeste nada de novo. Felizmente, para aconchego do melhor que há em nós, existe o trabalho incansável de muitas ONG´s, mas o sentido cívico dos governados deixa muito a desejar.
Regresso à horta, aproveitando uma pausa da chuva, e reparo que a sinfonia dos pássaros também está de volta. Lá em cima, em voo planado, algumas aves de rapina povoam os ares, em voo silencioso, sempre atentas às oportunidades. Contrariando a postura das suas vizinhas mais altaneiras, as cegonhas passam num voo mais rectilíneo, com as patas bem distendidas, de modo ergonómico, em consonância com  a cabeça, no outro extremo, com destino bem delineado, sabendo bem ao que vão. As pegas rabilongas, habituais frequentadoras do espaço, afastam-se perante a minha presença. Só os pardais, muito senhores de si, teimam em se manter por perto.
Em pleno distender de sentidos, e em modo tranquilo, acabo por colher o que resta dos alperces, talvez para compota, que este foi um ano de fartura. Mas as cerejeiras, coitadas, de tão tristes, apenas se queixam de tão inesperadas pingas, que as ferem, retirando-lhes o tão esperado tempo de rainhas. São muito sensíveis, estas senhoras.
E assim vamos vivendo, por entre os pingos da chuva, quando os há, com demasiadas pessoas afectadas pelo vírus do consumo. Um dia destes, se chegarem a despertar, é muito provável que já seja tarde de mais. Nesse caso, e por mais que me resguarde, mesmo fazendo a minha parte, o meu pequeno paraíso pouco sentido fará.
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P.S. - Quando me afastava da horta, reparei que uma borboleta fazia duma couve lombarda um porto de abrigo. Voltei atrás, tentei afastá-la, não fosse ela depositar ovos que dariam lugar a lagartas, que mais tarde se alimentariam das couves, mas ela não gostou nada da interrupção, esvoaçando à minha volta com uma velocidade inusitada. Que é isto?, pensei. E lá deixei a criatura em paz, sujeita aos desígnios do seu livre arbítrio. Mas que vou passar a vigiar as couves, lá isso vou! 
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