quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

O CEMITÉRIO DE ELEFANTES

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A Cova da Beira, fértil vale entre a Gardunha e a Estrela, é um dos sítios de Portugal mais aprazíveis para se viver. Tem água em abundância, terrenos férteis, paisagens de comover poetas, bons ares, referências históricas, gente de boa índole... A Espanha está mesmo aqui ao lado e o acesso a Lisboa, todo em auto-estrada, faz-se num ápice.
À partida deveria ser uma zona apetecível para um poder político que se preocupasse com a qualidade de vida das populações. Mas não é. Infelizmente. Num ritmo assustador, a Beira tem assistido à partida, ano após ano, de gerações inteiras dos seus melhores filhos em busca de oportunidades, no litoral ou no estrangeiro, que dêem resposta aos anseios profissionais que a região de origem, desgraçadamente, não lhes pode oferecer. Não havendo vontade política nem investimento, não há empregos. E a esta lógica ninguém consegue fugir, transformando a região, aos poucos, numa zona de gente envelhecida. A Universidade da Beira Interior, com alguma pujança, e os Politécnicos de Castelo Branco e da Guarda, têm atenuado um pouco este cenário, mas os seus efeitos não são suficientes para cimentar uma lógica de desenvolvimento equilibrado. Formam pessoas que vão trabalhar, na sua maioria, longe daqui.
Curiosamente, ou talvez não, nos últimos tempos ouve-se falar em diversos projectos para a construção, na região, de bem apetrechadas unidades com vocação para acolher idosos endinheirados. E assim, fazendo um simples exercício de projecção no futuro, não é difícil imaginar, daqui a alguns - não muitos - anos, a Cova da Beira: um enorme cemitério de elefantes, dividido em escalões sociais. A par de uma população activa com tendência para o envelhecimento, vão proliferar, por um lado, os apertados e apinhados lares das instituições de solidariedade social, reservados aos mais desfavorecidos e remediados; por outro, os empreendimentos luxuosos para quem tem a carteira bem recheada, com acesso a todo o tipo de cuidados. Até no fim a dignidade tem um preço.
Que os políticos e os diversos agentes locais - e há por aí gente muito capaz - lobriguem a inspiração necessária para contrariar a tendência, devolvendo a esta terra a esperança no futuro, são os meus votos.
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terça-feira, 29 de dezembro de 2009

PRIMAVERA

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Éramos jovens potros
Imunes ao receio
E a Primavera de Vivaldi
Em harmonia vibrante
Era o primoroso retrato
Do nosso entusiasmo
No galopar sem freio.
A seara ondulava, sensual
E viajávamos no sonho
Embalados no rumor da aragem
Que escrevia
Nas folhas dos freixos
Sinfonias à nossa passagem.
A paixão das cigarras
Morava dentro de nós
E a linha do horizonte
Meta por conquistar
Era a tela
Dos planos traçados
Dum mundo por desbravar.
Adormecia nos teus braços
Em nocturno de Chopin
Terna e doce vassalagem
E só o romper da aurora
Rebate do mundo lá fora
Quebrava o feitiço da viagem.
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domingo, 27 de dezembro de 2009

AURORA

.Quadro de Costa Pinheiro - O Chapéu do Poeta
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No anúncio dos dias
A aurora era a promessa
Do sonho por realizar
Tantas vezes burilado
No vazio decantado
Das pepitas por achar.
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quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

SINAL

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Aproximou-se e, com ar de quem sabe o que está a fazer, levantou a frágil tampa. Lá dentro, no meio dos detritos da abundância, uma ideia desprezada debatia-se, inconformada com a inevitabilidade dos tempos. Pegou numa velha vassoura e varreu a zona contígua ao contentor, tornando-o a estrela do beco. Então pegou numa placa, virou-a e escreveu algo no verso. Depois de a colocar de modo a nela incidir a luz do candeeiro, afastou-se do local.
Quando os almeidas saltaram do camião para recolher o lixo, depararam com uma placa onde, em letras gravadas a fogo, se podia ler: "AQUI AGONIZA O ESPÍRITO DE NATAL".
Naquela noite, no desconcertante beco, o lixo ficou por recolher.
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sábado, 19 de dezembro de 2009

VERDADE

.Van Gogh, Noite Estrelada
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Nasceste em humilde palha
Extraordinária lição
Acto sublime
Revolucionário
De total contestação
Em que tudo pode mudar
Com um simples dar a mão.
Desfizeste teorias
Emaranhados
Teias de eruditos
Entendidos
Fazedores de opinião
Incapazes de abafar
Em confronto directo
O perfume
Da tua ilação.
Em grupos circunscritos
Anteciparam Maquiavel
E em tenebroso papel
Pegaram na Palavra
Podaram o essencial
Colaram o acessório
E cavalgaram a onda
Em apoteose total.
E eis como a verdade
Ficou do interesse geral.
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quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

(DES)OLHAR

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Olhavas para ti
E vias
Em pânico
O tempo a escoar
Qual ampulheta
Meteórica
Sem vontade de parar
E não sabias
Desesperada
Que tecla tocar
Para refrear
A angústia premente
Que minava
Continuamente
A verdade instalada.
Se ponderasses
Para além do ego
Talvez notasses
Sem desatino
O fio de água
Cristalino
Que corria
Galgando a frágua
Para abraçar
Por inteiro
A razão do seu destino.
Então talvez pudesses serenar.
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sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

HISTÓRIA DE NATAL

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A década de sessenta iniciara-se há pouco.
Na aldeia, inclinada à inclemência dos gelos da Estrela, não se poupava na lenha. Em casa do Luís Pereira o lume crepitava desde muito cedo, inundando a cozinha com um calor só visto nas grandes azáfamas.
Da horta, logo de manhã, tinham chegado as mais lindas e apetecíveis couves, que iriam fazer companhia, na Consoada, ao bacalhau já demolhado, comprado na mercearia da menina Amélia. Mas havia ainda muito que fazer: só de doces ainda faltavam as filhós, que seriam fritas a meio da tarde, as rabanadas, o arroz doce...
O João, seis anitos de gente, cirandava pela casa tentando não perder pitada de todo aquele movimento, que só se via naquela altura do ano. Enquanto a mãe e as irmãs davam voltas à massa para as filhós, o pequeno não arredava pé, como se toda aquela lida desse asas ao encantamento com que vivia a época.
- Oh João, vai brincar lá para fora!
É o vais! O João empolgava-se a respirar todos aqueles preparativos para "a noite mais longa do ano", como dizia o pai, e só quando era preciso reforçar o lume é que ele condescendia em ir ao quintal para trazer mais uns cavacos. Era preciso aquecer bem a casa para receber o Menino Jesus!
Durante a fritura das filhós, toda a casa se via envolvida em cantos. Enquanto lhes davam forma e as colocavam no azeite quente, as mulheres da casa cantavam em louvor do Menino:
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........
Ó meu Menino Jesus
........Ó meu menino tão belo
........Só Vós pudestes nascer
........Na noite do caramelo.
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À Consoada, após a oração dirigida pelo chefe da casa, as atenções centraram-se no bacalhau e nas couves que, a pouco e pouco, iam desaparecendo de duas grandes travessas. Aos dois filhos mais velhos, já homens feitos, foi-lhes permitido acompanhar o pai e o avô num copo de vinho, que a ocasião era de festa. A noite ia decorrendo, animada, como seria de esperar numa mesa com dez pessoas irmanadas pelos mesmos sentimentos. As filhós e as rabanadas iam temperando a conversa, que alternava aqui e ali com as canções que as mulheres tentavam impor e a que todos aderiam...
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........Da vara nasceu a vara
........Da vara nasceu a flor
........Da flor nasceu Maria
........De Maria o Redentor.
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Ainda a mesa da Consoada não estava apanhada e já o João, afoito, corria para a cozinha, na ânsia de colocar os sapatos para a prenda do Menino Jesus. Ainda esboçou um gesto para levar também as botas feitas no Zé Brás, o sapateiro da terra, para ver se o leque das prendas aumentava, mas os olhos da mãe disseram-lhe que não valia a pena. Pouco depois recebeu ordem para ir para a cama, enquanto os mais velhos, com outro estatuto, saíam para a missa do Galo, a que se seguiria uma ida ao madeiro, que combatia o ar gelado da noite no adro da igreja.
No dia de Natal, bem cedinho, ainda antes do galo cantar, o João foi o primeiro a levantar-se. Com o coração aos pulos, correu para a cozinha e galgou a distância em dois tempos. Pegou no embrulho que estava junto dos seus sapatos, atado com um grosseiro cordel, e desembrulhou-o logo ali. Então, deslumbrado, pegou na camisola e nas calças novas e levou-as, instintivamente, ao seu corpito de menino. Que bem que lhe ficariam na missa de Natal!
A manhã custou a passar, pois nunca mais chegava a hora de vestir a roupa nova. Ansiava pelo momento de subir a igreja, de peito inchado, exibindo a roupa para os amigos. Quando, finalmente, chegou a autorização da mãe, ele e os irmãos partiram para a igreja, onde os aguardava o encantamento das enormes figuras do presépio que o padre Nicolau tinha mandado vir do Porto.
Enquanto faziam o caminho o João continha-se para não correr. Queria chegar à igreja o mais rapidamente possível para ver o presépio, mas com a roupa direitinha. Contudo, os cânticos que se ouviam ao longe ainda acirravam mais a vontade de chegar depressa. Os irmãos, que lhe notavam a ansiedade, sorriam uns para os outros. Apesar das partidas que ele lhes pregava, gostavam muito da vivacidade do irmão mais novo, e sabiam o que ele estava a sofrer para dominar a sua vontade. Às tantas, já com a igreja à vista, o pequeno não se conteve mais e começou a correr. Os irmãos ainda tentaram segurá-lo, mas quem o conseguiu foi uma pedra solta no meio do caminho, que o fez estatelar no meio do chão.
Teve que voltar para trás e, quando chegou a casa, ainda não parara de soluçar, tal a decepção que sentia ao ver a sua roupa nova toda enlameada.
Com muito jeitinho e uma paciência que só as mães têm, a Maria José lá o convenceu a vestir outra roupa. E o João, que sonhara com uma entrada triunfal na igreja, subiu a coxia de cabeça baixa, só estacando em frente do presépio. Então, à vista daquelas maravilhosas figuras, o miúdo começou a esquecer-se da roupa que vestia. Deitou os olhos para o Menino e, qual milagre de Natal, teve a certeza que Ele também olhava para si. E sorria-lhe.
Durante o almoço toda a gente estranhou o silêncio do João. Não que ele estivesse triste, longe disso, mas mostrava-se tão ausente do que tinha no prato que parecia longe dali, absorto em mil pensamentos. Mas o que passava na sua cabeça devia ser coisa boa, pois de vez em quando esboçava um sorriso. E só mais tarde, quando lhe puseram uma taça de arroz doce à frente e o viram desenhar um menino com a canela, é que perceberam o encantamento que ia na alma do pequeno.
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terça-feira, 8 de dezembro de 2009

BRUMAS

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Chegaste de mansinho
Quando a bruma
Asfixiante
Inundava o fundo do vale
E trazias contigo
Sem nada o prever
O aroma das madrugadas
Com o dia por resolver.
O verde das faias refulgia
Com a claridade instalada
E a cotovia
Prenúncio de sinfonia
Galgava as alturas
Em ânsia ilimitada.
Gostaste do teu papel
Forjado em conto de fadas
E a sorrir adormeceste
Mas esqueceste
A função primordial
(Deixaram de bater as asas).
Então o lume
Exigente na atenção
Lentamente esmoreceu
E a bruma
Expectante
Inundou de rompante
A razão do coração.
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sábado, 5 de dezembro de 2009

LUZ E SOMBRA

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As suas palavras desenhavam fantásticos arco-íris, como se o fabuloso pote das moedas estivesse à distância de um gesto. O seu sorriso, enorme e credível, reforçava a impressão favorável, suscitando imediatos portos de abrigo em qualquer interlocutor. Mas, quando tinha que se haver com a dura e cruel realidade, o papel representado passava para segundo plano. E um diabinho inquietante, com tridentes de fogo, insinuava-se na imagem criada, provocando o toque a recolher na horda assustada.
Duas imagens antagónicas, inquietantes, à distância de um estalar de dedos.
A horda, avessa à reflexão, esconjurou-o de imediato, sem saber que se estava a afastar do mais fundo de si mesma.
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terça-feira, 1 de dezembro de 2009

SOLIDÃO

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Caminhar em comum incomodava-o, nem ele sabia bem porquê, e, lentamente, foi procurando o refúgio das veredas. Mas até estas, às tantas, lhe pareciam movimentadas auto-estradas.
Começou a traçar mapas do seu percurso, rumos inventados que apenas existiam dentro de si. No princípio gozou a liberdade, o prazer de percorrer uma estrada incólume, original, em que apenas prestava contas a si próprio. Navegava com a lua, viajava com o vento que embalava os pinhais, fez-se regato a observar as nascentes...
Um dia quis partilhar o seu mundo. Olhou em volta, mas tinha sido eficaz na escolha do caminho: não havia ninguém por perto. Então, a pouco e pouco, uma sensação de frio começou a apoderar-se da sua alma, tolhendo-lhe qualquer espécie de harmonia com o cenário inventado. Ainda esbracejou, mas tinha viajado para muito, muito longe, e apenas encontrou o aperto do vazio.
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sábado, 28 de novembro de 2009

SABEDORIA

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Para a D. Lucinda, mestre na arte de viver
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Brotaste num meio
Muralhado
Na ancestral verdade
Preconceito angular
Petrificado
No deixar arrastar
A máscula vontade.
As voltas que deste
Ao ícone cinzelado!
Com riso gaiato
Cordato
Bordado com muito tacto
Apanhaste a linha solta
Avessa à reviravolta
E contrariaste
O fado traçado.
Forjaste o teu destino
Amparada na visão
Indestrutível
Do equilíbrio da vida
(Na chegada e na partida)
Só perecível
Na prática da omissão
Inadmissível
A quem pede a mão
Em busca de solução
(Solidária desmedida).
Esculpiste as crias
Acto inventor
Tela de projecção
Permanente
Do afecto partilhado
Em respeito definido
E com risos temperado
Futuro bem delineado
Do fruto amadurecido.
Olhas para o mundo
Eterna paixão de viver
Todos os dias sentida
Equilíbrio permanente
Nos eleitos residente
Vontade nunca contida
Menina para toda a vida!
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quarta-feira, 25 de novembro de 2009

ESTRELA CADENTE

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Olhavas de frente
Confiante,
Pose estudada,
Imagem de néon,
Flamante,
De marca afamada.
Cavalgavas a noite
Trepidante,
Contínua aceleração,
Ar seguro,
Insinuante,
Predadora escaldante,
Sempre na contra mão.
Rias da sina
Trinada
Em dó sustenido,
(Oráculo pungente!)
Revelador,
De pranto e de dor,
Prontamente esquecido.
Passaste na vida,
Cadente,
Em decapitado pavio,
Enquanto sumias,
Desesperada,
Fogacho em simulacro,
Nas garras do vazio.
Sonhavas um lugar
Cimeiro
Nos anais da História,
Mas o teu soprar,
Efémero,
Apenas abraçou
O vazio da memória.
Mas o editor,
Guionista,
Necrófago oportunista,
Do previsto imprevisto,
Com as cinzas no chão
Desenhou
Com o que restou
O que não fora visto.
Reprimida, a alma
Soltou-se mágoa
E o brilho da estrela
Flamejou
Já sem agonia,
(Qual estrela cadente!),
Num cintilante
Sol de vitrina,
Céu de livraria.
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sábado, 21 de novembro de 2009

A COR DO SONHO

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Falavas convicta
Da cor do teu sonho
Como se a alma
Movimento profundo
Fosse tela manipulável
Adaptável
Em pano de fundo
Pegavas na paleta
Objecto comum
Circunspecto
E tentavas
Num impulso inocente
Pintar o sonho
Em rosa envolvente
Como tom predominante
Duma vida deslumbrante
Mas na intimidade
Sabia-te a pouco
E rebuscavas mais cores
Para misturar odores
No equilíbrio
Da tela desejada
Tentaste com verde
Dourado e turquesa
Mas ficava a incerteza
Da falta de leveza
Do sonho sem asa
Insististe com azul
Siena, borgonha
Branco floral
Mas não descobrias
A mágica proveta
Crucial e discreta
Para almejar
O tom essencial
Ficaste sozinha
Coração na mão
E então percebeste
Que a essência do sonho
Antes da cor
Carece de alma
Na sua dimensão.
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terça-feira, 17 de novembro de 2009

ASAS

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Quando chegava o Verão
Sentavas-te
À tardinha
Debaixo da figueira
Onde a brisa
Suave
Anunciava
O rumor das cotovias
Então pegavas
Delicada
Na minha mão
E contavas
Baixinho
Era uma vez um potrinho
Que adormecia
Feliz
A ouvir
As histórias do vento...

Sentia-te perto
E o tempo
Adormecido
No cantar do ribeiro
Parava
Enlevado
Para nos ver
Assim eram os dias
No tranquilo Paraíso
Em que desenhavas
Minuciosa
O crescer das minhas asas
E eu sentia
Maravilhado
O vigor do teu voar.
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sexta-feira, 13 de novembro de 2009

VITÓRIA ANUNCIADA

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Para as minhas colegas Maria João Ramos e Fernanda Soares 
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Trazias o entusiasmo 
Dos sonhos por concretizar 
Alimentado 
Em berço protegido 
Mostravas o teu querer 
Indomável 
Na firmeza do olhar 
Com que fitavas 
Desafiadora 
A areia da engrenagem 
Cuidavas das crias 
Espaço crucial 
Com o saber dos argutos 
Condimentado Em taças de ternura 
Lidavas com os amigos 
Espaço de partilha 
Como porto de abrigo Apaziguador 
Imune à amargura 
Olhavas para a vida 
Espaço realizador 
Como terreno a conquistar
 Com ardor 
Em luta sempre dura 
Enfrentas o infortúnio 
Espaço regenerador 
De descoberta 
Duma tela descomunal 
Onde os amigos 
De mão dada 
Semeiam os acordes 
Indestrutíveis 
Duma vitória anunciada. 
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terça-feira, 10 de novembro de 2009

MUSA

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Estavas tão concentrada
No papel de Margot
Que não vias
No canto da sala
Os olhos suspensos
No teu respirar
Eram mais uns
Na plateia domada
Enquanto dançavas
Como ninguém
E as pétalas das rosas
Rendidas
Vertiam perfume
No teu rodopiar
A carruagem partiu
Na meia-noite temida
Deixando no ar
Da sala hipnotizada
O aroma envolvente
A promessa de vida
Da Cinderela alada
Desci a avenida
Nureyev a dançar
Enquanto desenhava
Com a pétala que restava
A musa encantada
Saída do sonho
Do teu esvoaçar.
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sábado, 7 de novembro de 2009

NARCISO

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A seara ondulava
Sensual
E as papoilas
Efémeras
Adornavam o bailado
Que embalava
A paixão das cigarras
Assim eras tu
Em Maio
Na frescura dos caminhos
Radiante
Com o mundo a teus pés
Gostavas do teu brilho
E embriagavas-te
Na imagem do espelho
Que enfeitavas
Com as cores
Duma Primavera duradoura
Esqueceste os aromas da terra
E não vias que os deuses
Despreocupados
Em olímpico tédio
Jogavam o teu destino
Em jogo de dados
Dedilhando-o
Em acordes chorados
O espelho fragmentou-se
E não percebeste
A sensação de frio
Nos caminhos que te levaram
À solidão
Dum palco vazio.
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terça-feira, 3 de novembro de 2009

A VALSA LENTA

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O Outono entrou de mansinho, mas a sua sinfonia colorida, em tons nostálgicos, já se faz notar.
As árvores da escola, correspondendo a um ciclo imemorial, começam a libertar as folhas que, numa dança suave, se encaminham para o novo anfitrião, a terra batida do recinto do recreio. Quando o tapete começa a ganhar forma, a Teresa, a auxiliar da escola, não está pelos ajustes: mal arranja um tempito nos seus afazeres, pega na vassoura e vai juntando as folhas invasoras em montinhos, destinando-lhes o contentor como morada. Só que às vezes chega a hora do recreio antes de ela acabar o serviço, e aqueles montinhos, ali mesmo à mão, são verdadeira cobiça para as brincadeiras, principalmente dos mais novos. E então é vê-los, radiantes, atirando as folhas ao ar, como que dizendo:
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..........Eu gosto de apanhar folhas
..........Ouvir o vento a soprar
..........Correr pela estrada fora
..........Como se fosse a voar
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Quando os pequenotes entram para a sala, um mar de folhas coloridas cobre todo o recinto, extenuadas das brincadeiras daquelas mãos afoitas e entusiastas. Então a Teresa, pacientemente, junta-as de novo, mete-as num saco e leva-as para o contentor.
Indiferentes a tudo, e seguindo uma lei do princípio do tempo, das árvores, em ritmo de valsa lenta, outras folhas vão caindo...
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sábado, 31 de outubro de 2009

TEMPO

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Lutavas contra o tempo
Em sobressalto
Vendo as folhas cair
E não reparavas
Que a cor outonal
Era a satisfação
Dum desígnio cumprido
E que a queda
Suave
Era a chave
Do conhecimento do segredo
Debatias-te
Angustiada
Na visão do espelho
E esquecias
O passo a dar
Para entender
A arquitectura do ciclo
Programada
Com a palavra primitiva
Sentia-te a inquietude
Mas nada podia fazer
Para apaziguar o medo
De sentires
O vazio do grande abraço.
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terça-feira, 27 de outubro de 2009

O REFÚGIO

.Desmontou da bicicleta no cruzamento que dá acesso à Pedra d'Hera, no caminho rural que liga o Souto da Casa a Alcongosta, e prendeu-a com o cadeado no tronco carcomido dum velho castanheiro. Olhou em volta e, por momentos, deixou que a vista se espraiasse na tonalidade outonal dos cerejais que se espalhavam pelo vale do Alcambar, verdadeira sinfonia pinturesca em tons cambiados de verde, amarelo, castanho, laranja... Resistiu à tentação de se perder naquela beleza e iniciou a marcha que a levaria ao Picoto, local privilegiado onde costumava sentir uma serenidade que estava longe de encontrar na cidade.
À medida que subia apercebeu-se que as surribas feitas pelos plantadores de cerejeiras continuavam a trepar a serra com uma avidez feroz, pondo a nu as fragilidades da política ambiental para aquela zona, se é que realmente havia alguma. Aquilo doía-lhe profundamente, pois a mancha de castanheiros e de carvalhos, que caracterizavam a Gardunha, estava a desaparecer a olhos vistos, com o silêncio cúmplice duma opinião pública que nunca se assumiu como tal.
Tentou alhear-se do problema, pois estava ali com outros intuitos, e alargou o olhar. Em volta, para seu deleite, e impregnando a paisagem de uma dignidade nostálgica, os castinçais começavam a mudar de cor, com uma policromia que tocaria a mais indiferente das criaturas. Inês começou a sentir o efeito da atmosfera envolvente e, a pouco e pouco, foi apaziguando os seus pequenos demónios interiores. Nem a carcaça duma velha máquina de lavar, a cinco metros do caminho, lhe conseguiu desfazer aquela sensação reconfortante. Os diabinhos do seu descontentamento ainda deitaram a cabeça de fora, tentando explorar a pouca fé que lhe restava na espécie humana, lembrando-lhe a notícia sobre os detritos perigosos que alguém, com certeza com as mãos muito bem untadas, andava a depositar na Serra dos Candeeiros. Mas Inês estava a entrar no seu território, e ali era-lhe relativamente fácil resistir a negativismos. Continuou a subir, sentindo-se cada vez mais ligada à paisagem.
Quando chegou ao Picoto, o seu refúgio de eleição, trepou os rochedos e instalou-se no cume. À sua frente tinha a majestosa Estrela, o enorme gigante adormecido, e entre as duas serras espalhavam-se os promissores campos da Cova da Beira, iludidos durante décadas com a promessa de um regadio que já usava bengala carunchosa. Assomando dos lados de Belmonte, vindo duma Estrela generosa em recursos hídricos, o Zêzere era um arremedo do rio cheio de vida de há uma trintena. Vítima de uma mistura explosiva - ignorância, incompetência e ganância - em poucos anos transformara-se num rio moribundo, suscitando nas populações ribeirinhas a nostalgia dos refrescantes banhos estivais e de frutuosas pescarias que patrocinavam animadas tertúlias. Reparou, sem surpresa, que o casario entre o Fundão e a Covilhã era cada vez mais intenso, trazendo à liça da memória as previsões daqueles que auguram, a médio prazo, a formação de uma pequena metrópole.
Inês recostou-se sobre um grande bloco de granito e deixou-se invadir pela quietude do local. Quando ali estava os pequenos dramas da sua vida relativizavam-se, como se tudo fosse ínfimo perante a transcendência da vida. Acabara há pouco tempo a relação com o Fernando, e precisava de oxigenar o cérebro. O antigo companheiro, que tanto prometera nos tempos de enamoramento, fora uma desilusão. No final, quando tudo se resumia a nada, Fernando refugiara-se no sofá da sala, base da sua central de zapping. Pôr-lhe as malas à porta, mais que o corolário de uma relação falhada, fora o sinal de que continuava a lutar contra a resignação, que não desistia de encontrar o seu lugar no mundo.
O espírito do local invadia agora Inês na sua plenitude. Deixou que a alma absorvesse aquela amálgama de tranquilidade, sentindo um equilíbrio interior que a fazia estar de bem com o mundo, e deixou que a noção de tempo se fosse esvaindo, a pouco e pouco, até desaparecer por completo.
Enquanto descia, liberta dos seus diabinhos, foi enchendo a pequena mochila de castanhas. Juntamente com uma boa jeropiga, seriam um excelente pretexto para, ao serão, juntar meia dúzia de amigos. A felicidade, estava cada vez mais convicta disso, também passa pelo usufruto dos pequenos prazeres da vida.
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quinta-feira, 22 de outubro de 2009

NUDEZ

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Procurei-te
No mais fundo de mim
Desenhei-te
Nos contornos do viajar intranquilo
Adivinhei-te
No vulto que dobrava a esquina
Ah, quanta cegueira
Quanta insistência na receita errada
Por uma quimera mil vezes desejada
Ah, quanta solidão
Quanto rebuscar no vazio
Em constantes vagas de frio...
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Então chegaste
Vinda do nada
E desmontaste
Com risos despreocupados
A construção do labirinto
Mil vezes tecido
Em adornos florais
Só então
No desespero da nudez
Vislumbrei
A génese da promessa
E percebi
Como tudo começou.
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domingo, 18 de outubro de 2009

GOOOOLO!!!

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Intervalo na escola. Os miúdos mais velhos, após tragarem o lanche em três tempos, assumem o papel cimeiro da hierarquia do recreio e ocupam o terreno de jogo. São eles quem mais ordena, e aos mais novos nada mais resta que aguardar, ansiosos, com os olhos implorantes a mendigar um convite. Desta vez o Duarte teve sorte. A bola começa a saltitar. O Duarte, sete anitos vivos e escorregadios, corre que se farta para chegar junto da cobiçada redondinha, mas os mais velhos são mais rápidos e chegam sempre primeiro. Ele bem se esforça, mas a bola foge, parece que está zangada com ele. De repente, qual presente inesperado dos deuses, a bola insinua-se à sua frente. Parece que lhe está mesmo a dizer "chuta-me, depressa!". O Duarte não se faz rogado a tão inesperado ensejo e, quase sem saber como, levanta o pé direito e remata com toda a força. A bola, impulsionada pelo desejo de mil glórias, dirige-se para a baliza. O João Franco, o guarda-redes, bem tenta segurá-la, mas nada pode deter a força de tamanha convicção. 
- Goooolo!!! 
O contentamento vem-lhe do mais fundo de si mesmo. Aquele momento é só dele, e manifesta-o de forma exuberante. Até os mais velhos o olham de outra forma, a caminho do respeito. Mas não lhe dizem nada.
No fim do intervalo o Duarte entra na sala, todo transpirado, ainda a gozar o seu momento de glória. Feliz como só uma criança pode ser.
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terça-feira, 13 de outubro de 2009

O BILHETE

.Joaquim olhava pela janela. Em frente, na Pastelaria Arco-Íris, algumas pessoas tomavam a bica ao balcão a olhar para o relógio. Lá fora, na esplanada, indiferente à pressa geral, um casalinho gozava os raios de sol de um Verão tardio, enquanto deitava uns grãos de trigo a meia dúzia de pombos. Mais à direita, no jardim, viam-se alguns velhos, de sorriso apagado, a olhar para nenhures, como se as pessoas que por ali passavam, qual enxame de abelhas apressadas, nada lhes dissesse. Andavam quase todos na casa dos setenta e tais, oitenta, e já pouco mais faziam que olhar para o escoar do tempo.
Às vezes Joaquim abeirava-se deles e, com a sua presença, o pulsar do grupo alterava-se. Contava uma história engraçada de outros tempos, dizia duas ou três larachas, e o efeito era garantido: os sorrisos voltavam, por momentos, a introduzir-se naquela solidão mortiça.
Joana, a filha, fora visitá-lo um dia destes à hora do almoço, cinco minutos roubados ao seu correrio diário, antes de ir preparar a comida que ela e o marido iriam engolir num ápice. Perguntou-lhe como é que se sentia, se tinha tomado os medicamentos, se precisava de alguma coisa. Depois, a propósito de nada, começou a falar do Sousa, amigo de sempre do pai, que estava há uns tempos no lar.
- Sabe com quem estive? Com a Dora, a filha do seu amigo Sousa. Está a viver no lar, e parece que o tratam lá muito bem.
Nem ele sabia outra coisa! Há dias, em conversa de banco de jardim, o João Pires falara-lhe do destino do Sousa. A notícia tocara-o profundamente e, sem dizer nada a ninguém, fora visitar o seu velho amigo ao lar. Quando o viu, arrependeu-se logo de lá ter ido. Estava sentado na varanda, sozinho, completamente alheado de tudo o que o rodeava. Ainda lhe puxou pelo sorriso com uma ou outra graçola, mas o Sousa, que nos seus tempos de homem activo distribuíra entusiasmo a rodos, mostrava-se indiferente a tudo. Parecia que apenas aguardava que chegasse a sua hora.
Joana estava, nitidamente, pouco à vontade a aflorar o assunto, e tentou dissimulá-lo começando a lavar a pouca loiça do pequeno-almoço. Nem reparou que o pai já a tinha lavado, deixando-a apenas a escorrer no lava-loiças. Então disse-lhe que estava preocupada com ele, que não gostava de o ver sozinho. E se lhe acontecesse alguma coisa, quem o socorria? Gostaria muito de o levar para o andar onde vivia, mas as três assoalhadas já eram acanhadas para ela, o marido e os filhos. Na semana passada fora tirar umas informações da Casa de Repouso do Pinheiro, e gostara do que tinha apurado. Era um lugar onde tratavam as pessoas com toda a dignidade, o sítio ideal para ele.
Joaquim não disse nada, apenas balbuciou um "está bem" quando a filha, à saída, o lembrou do almoço de domingo em casa dela. A conversa de Joana, no fundo, não o surpreendia, pois sabia que ela não tinha condições para o receber. Ela e o marido matavam-se a trabalhar, com um horário cada vez mais exigente, e o que recebiam mal dava para pagarem a prestação da casa. Houve uma altura em que pensou que talvez lhe arranjassem um cantito na sala para dormir, mas era ele a iludir-se com a possibilidade de acompanhar o crescimento dos netos, de os sentar nos joelhos enquanto os maravilhava com as aventuras do João Pequeno, história que o seu avô lhe contara vezes sem conta na sua meninice. Mas os tempos tinham mudado. Ao que sabia, os pequenos passavam o dia fechados no infantário, no meio de dezenas de outros reclusos, e só lhes concediam uma precária quando os pais os iam buscar no fim do trabalho. Mas pouco aproveitavam do seu quinhão de liberdade. Quando chegavam a casa, os pais colocavam-nos em frente da televisão enquanto faziam o jantar. Depois comiam e, passado pouco tempo, toca a deitar, que amanhã é preciso levantar cedo. E no dia seguinte, num ritual sempre igual, lá iam todos para o mesmo ramerrame. Tinha pena deles, mas que poderia fazer? Raio de tempos, estes!
Depois da filha sair Joaquim ficou mergulhado num turbilhão de pensamentos inconsequentes. As suas palavras, embora não o apanhassem desprevenido, tocaram-no como nunca pensara. Começou a dar voltas à casa, tentando ordenar ideias, mas a sensação de aperto não saía do seu peito.
Foi então que tomou uma decisão. Ainda pegou numas roupas para colocar na mala que guardava no roupeiro, mas abandonou a ideia. Dirigiu-se para a cómoda e, com todo o cuidado, retirou um estojo do fundo de uma das gavetas. Abriu-o, delicadamente, e olhou para o colar que em tempos tinha comprado para Maria, a sua mulher, pequeno luxo a que se permitira para presentear a companheira de muitas vicissitudes e alegrias. Mas ela morrera, em penoso sofrimento, uns dias antes do aniversário, vítima de um cancro de mama tardiamente diagnosticado, e o colar para ali ficara guardado como uma relíquia.
Tomou banho, perfumou-se e vestiu o seu melhor fato. Depois, delicadamente, pegou no estojo, guardou-o no bolso interior do casaco e saiu de casa.
Desceu a avenida muito direito e compenetrado, como se estivesse a escolher os movimentos certos para não engelhar o fato. Mas, ao chegar junto da estação ferroviária, algo o fez vacilar. Parou, por instantes, e ensaiou um olhar para trás. Mas foi coisa de poucos segundos. Recompôs-se rapidamente e, de forma resoluta, abeirou-se da bilheteira:
- Um bilhete para longe, para muito longe!
Quando entrou na carruagem tirou o casaco e sentou-se. Enquanto o ajeitava, cuidadosamente, sobre as pernas, levou a mão mais uma vez ao estojo, como se para se certificar que continuava no mesmo lugar. Maria aguardava-o, e não queria fazê-la esperar mais.
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domingo, 11 de outubro de 2009

PROCURA

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Não somos ilhas, somos interacção permanente.

Ao escrever o meu último texto, "Às vezes", assumi-o como prosa poética. Isabel Fidalgo, uma poetisa por quem tenho a maior admiração, ao lê-lo sugeriu para ele outra configuração, argumentando que é poesia pura. Aqui fica a sua sugestão, com os meus agradecimentos. Entretanto, alterei-lhe também o título.
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Às vezes
Quando o cansaço ganha contornos
Apetece
Procurar o sol
A claridade
Dos dias prometidos.
No calcorrear da velha calçada
Um letreiro gasto, mas sempre novo
Sinaliza
Nas subtilezas do tempo
O graal de todas as demandas.
Insinua-se um vislumbre de promessa
A centelha do golpe de asa
Mas os olhos carecem de rumo
Porque temperados
Com a visão de mil profetas.
Às vezes
Com a luz na mão
Apenas olhamos
Para o mistério da sombra.
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sábado, 10 de outubro de 2009

ÀS VEZES

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Às vezes, quando o cansaço ganha contornos, apetece procurar o sol, a claridade dos dias prometidos.
No calcorrear da velha calçada, um letreiro gasto, mas sempre novo, sinaliza, nas subtilezas do tempo, o graal de todas as demandas. Insinua-se um vislumbre de promessa, a centelha do golpe de asa, mas os olhos carecem de rumo, porque temperados com a visão de mil profetas.
Às vezes, com a luz na mão, apenas olhamos para o mistério da sombra.
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terça-feira, 6 de outubro de 2009

COM A MÃE NO BOLSO

.Para a Graça
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Todos os anos se repete o ritual. À escola chega uma vintena de novos alunos, passaritos de asas curtas em busca da carta de alforria no voo. A professora, ao recebê-los, tem como preocupação que façam daquele o seu espaço, que criem laços afectivos e cumplicidades, ao mesmo tempo que lhes vai incutindo regras e formas de estar, fundamento básico para lhes começar a introduzir, paulatinamente, os rudimentos da interpretação dos diversos códigos que lhes proporcionem a melhor ligação possível com o mundo que os espera lá fora: na língua materna, na matemática, no conhecimento do meio envolvente, ao mesmo tempo que lhes vai estimulando a solidariedade, a civilidade, a amizade e outras ade.
Os olhos da maioria não escondem o entusiasmo. Parecem potrinhos sem freio, ávidos de galopes intermináveis por territórios bem delineados no sonho, apenas apaziguados por sono retemperador.
Mas há sempre um ou dois que não trazem as defesas necessárias para conviver harmoniosamente num grupo com tanta energia à solta, ávido de se manifestar e de deixar marca de si. Sentem demasiado a mudança de território, e o desconforto fá-los recordar, constantemente, a segurança das mãos da mãe, o seu cheiro, a sua protecção...
O Tiago é um desses casos. A vivacidade dos colegas não o tranquiliza, e cada gesto mais exuberante é uma ameaça para o precário equilíbrio do seu pequeno mundo. A professora, percebendo-lhe a insegurança, tenta apaziguar-lhe as angústias e, após ouvir-lhe a invocação da progenitora pela enésima vez, sugere-lhe que traga para a sala a fotografia da mãe.
No dia seguinte, com um esboço de sorriso nos lábios, o Tiago apareceu na escola com uma moldura com a fotografia da mãe, e mostrou-a à professora. Esta, com a cumplicidade estampada no olhar, elogiou-lhe a beleza, e encorajou-o a colocá-la em cima da mesa de trabalho.
Embora recorrendo a frequentes olhares para a fotografia, o Tiago começou a encarar a escola de forma mais tranquila. As tarefas deixaram de ser penosas, as caras dos colegas começaram a ter contorno de amigos, ousou aventurar-se nas movimentações do recreio...
O pior era quando chegava a hora do almoço. O miúdo, que até aí continuava a trepar degraus na sua integração, quando chegava o meio-dia não conseguia evitar o aparecimento dos seus fantasmas. Apavorava-o o ambiente do refeitório, sem a presença da professora, não conseguindo lidar com a exuberância dos colegas mais velhos, com outro traquejo na arte de lidar com os outros.
Quando a angústia da hora do almoço ameaçava tornar-se um hábito, foi o próprio Tiago a encontrar a solução. Um dia destes, ao chegar a temida hora, aproximou-se da professora e pediu-lhe, baixinho:
- Professora, posso levar a minha mãe comigo?
Perante o acenar positivo, o pequenote pegou na moldura, meteu-a no bolso com todo o cuidado e lá partiu, mais confiante, em direcção ao refeitório.
Nesse dia, na reconfortante companhia da mãe, o Tiago comeu a sopa toda.
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sexta-feira, 2 de outubro de 2009

O REENCONTRO

.Há anos que não se viam. A última vez tinha sido num almoço comemorativo do curso, já lá iam uns bons dez anos. O Pedro parecera-lhe bem mas, ao contrário do que acontecia frequentemente nos tempos em que eram dois estudantes ávidos de abraçar a vida, não conseguiram criar o clima propício a grandes conversas. Ele falara-lhe vagamente da filha, da escola onde trabalhava, e pouco mais. Nem sequer falara de pintura, a sua menina dos olhos de outros tempos. A vida tinha-os afastado, era notório. Longe iam os tempos em que se julgavam únicos e confidenciavam projectos, anseios, sonhos.
Quando o sistema de colocação de professores os separou, rasgaram uma nota de quinhentos escudos ao meio e cada um ficou com metade, para gastarem quando se reencontrassem. Porém, apesar desta espécie de promessa de amizade eterna, a pouco e pouco foram perdendo o contacto. Ainda se cruzaram algumas vezes, sempre disponíveis e confiantes, mas as novas pessoas e geografias com que se foram deparando acabaram por afastá-los irremediavelmente.
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Carlos costumava passar, quase todos os anos, uns dias numa praia lá bem a sul, onde as elevadas temperaturas e a luz dourada convidavam à moleza e ao desprendimento. Era o perfeito dolce fare niente, depois de um intenso ano de trabalho. Começara a ir para ali quando os filhos ensaiavam os primeiros passos, e eles deram-se bem com a suavidade daquelas ondas e a macieza do extenso areal. Entretanto cresceram, começaram a cortar os primeiros assomos de barba, mas ficou sempre o hábito de ir para aquele local protegido e afável. De vez em quando viajavam para saciar o desejo de conhecer novos lugares e novas gentes, mas a ida para a luz do sul era sagrada.
No último Verão, sentado numa esplanada, ao deleitar-se com uma fresquinha enquanto passava os olhos pelo jornal, Carlos foi surpreendido por uma voz que lhe parecera familiar: era o Pedro. Engordara um pouco e os cabelos começavam a ficar grisalhos, que as marcas do tempo não esquecem ninguém, mas conservava o mesmo sorriso franco e aberto.
Que fazes aqui, como é que estás, senta-te...
O Pedro continuava a viver nas imediações da serra de Montejunto, onde constituíra família. Enquanto os pais foram vivos ainda foi mantendo alguns laços com o torrão natal, mas depois da sua morte esses contactos esbateram-se por completo. Mas continuava a ter a Beira no sangue. Via à distância, com tristeza e desânimo, o esvaziamento cada vez maior do interior, e não entendia como é que, numa região tão depauperada e esquecida pelo poder político, as pessoas teimavam em não se unir num objectivo comum, preferindo dar guarida às vaidadezinhas e aos egos balofos. Às vezes sentia vontade de regressar, de respirar os cheiros dos lugares onde se fizera homem, de pagar a dívida ancestral, mas...
Continuaram a falar pela tarde fora, enquanto iam deglutindo os sabores de Verão em pratinhos bem guarnecidos. Lentamente a tampa do baú começou a abrir-se e, de forma natural, as memórias de acontecimentos, pessoas e paisagens começaram a esgueirar-se. A gargalhada tornou-se fácil, espontânea, e a cumplicidade de outrora insinuou-se.
No final, quando pediram a conta, puxaram da carteira e, com um sorriso estampado no rosto, cada um colocou, em cima da mesa, metade da velha nota de quinhentos.
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segunda-feira, 28 de setembro de 2009

A DANÇA

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Mal saem para o recreio, imediatamente se posicionam na zona mais maneirinha para a função: a parte cimentada do recinto, mesmo à entrada da escola. A corda, manuseada por mãos hábeis, convida as assistentes para a dança, num apelo irrecusável, qual Fred Astaire de braço estendido para Ginger. Aceite alegremente o convite, é vê-las então pular, sozinhas ou em grupo, num ritmo cadenciado mas cheio de ginga, capaz de as transportar para outros mundos.
Quando o cansaço as vence, imediatamente entra em acção outro grupo, ávido da mesma volúpia libertadora. E por ali ficam, cavalgando os anseios, às vezes subindo, subindo no ar, até a escola se desmaterializar no tempo...
Uma voz, que parece vir de longe, começa a insinuar-se no grupo, anunciando a entrada. O despertar é brusco. As viajantes, a muito custo, acabam por aceder a sair da dimensão alcançada, e Ginger Rogers, contrafeita, tem que largar o braço do parceiro, dirigindo-se para a zona dos lavatórios.
Quando, finalmente, chegam à sala, já o equilíbrio está restabelecido.
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segunda-feira, 21 de setembro de 2009

RUA DA CALE

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Saiu do café, onde debitara dois dedos de conversa com o João, e dirigiu-se para a Rua da Cale. A mulher pedira-lhe que comprasse fruta e ainda mais qualquer coisa, que já esquecera, e aproveitou para dar um salto à mercearia do Joaquim Bocas.
Na velha artéria, longe do fulgor de outrora, quando aí se concentravam as actividades comerciais e artesanais do Fundão, apenas transitavam duas ou três pessoas, número muito longínquo das necessidades das pequenas lojas que ainda teimavam em abrir as portas. Os donos, com a resignação gravada no rosto, continuavam incapazes de conviver com uma realidade que não entendiam, e recordavam tempos passados, quando os fregueses eram muitos. Talvez ainda sonhassem com o regresso desses tempos, quem sabe!
Quando entrou na mercearia estava o Bocas, na obscuridade da loja, a limpar umas bugigangas de loiça que pareciam estar ali há décadas. Nos braços trémulos continuava a usar mangas-de-alpaca, tal como há quarenta anos atrás, quando, na sua meninice, começara a frequentar aquela loja para se abastecer de cromos de futebol, rijamente disputados com outros petizes. Cumprimentaram-se e o rosto do velho animou-se um pouco.
- Então, que vai ser hoje?
- Dois quilos de maçã bravo esmofo e um pacote de arroz agulha.
- Estas sim, têm sabor, não são como as maçãs que vêm da Espanha. São da quinta do meu cunhado. Não há melhor, meu rapaz!
Quando saiu da Rua da Cale, tal como sempre que ali ia, sentiu que estava a sair de um dos últimos resquícios das paisagens da sua infância. Os amigos não entendiam aquele capricho que o levava, de quando em vez, a fazer compras na mercearia, quando a pequena cidade estava servida por vários hipermercados, com tudo mais barato e moderno. Mas ele apenas sorria, enigmático. Apesar da decadência evidente do local e da tristeza dos olhares, sempre que podia dava ali uma saltada. Então, qual alquimia cinéfila, a atmosfera da rua transformava-se e, não raras vezes, sentia no ar os gritos de júbilo de um pequenote a quem era permitido entrar no paraíso quando, ao desembrulhar os cromos que envolviam pegajosos rebuçados de meio tostão, gritava a plenos pulmões:
- Saiu-me o Eusébio!!! Saiu-me o Eusébio!!!
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quarta-feira, 16 de setembro de 2009

A LASSIE

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De olhar vago e distante, mas com um porte digno, engana qualquer observador menos atento. Ostenta um luzidio pêlo preto e costuma vaguear por terrenos circundantes à escola, onde tem o seu território bem demarcado. Por perto só permite caninos de boa índole, não vão estes perturbar os seus protegidos, umas pequenas criaturas bípedes, de olhos brilhantes, que costumam frequentar o edifício situado no centro dos seus domínios. É a Lassie.
Os seus protegidos, os alunos da escola, são os grandes conhecedores da enorme riqueza existente no seu código genético, verdadeiramente abençoado por manipulação divina: uma ternura do tamanho do mundo! Perto da Lassie a segurança aumenta, os medos desaparecem, e ela tudo permite aos pequenos amigos, até que a cavalguem... Em troca, e é condição fundamental, a Lassie apenas exige que eles ostentem a sua condição de criança: que corram, saltem, riam...
Às vezes, quando lá fora o frio aperta, a Lassie esgueira-se para dentro da sala de aula e vai deitar-se junto da estufa. Os seus pequenos amigos, habituados à sua presença, olham, trocam um sorriso cúmplice e retomam o trabalho com a mesma concentração.
Com a Lassie, o mundo parece mais tranquilo e seguro.
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Texto publicado pela 1.ª vez em Janeiro de 2007 no blog da escola de Aldeia de Joanes
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sábado, 12 de setembro de 2009

A MULHER QUE GOSTAVA DE LIVROS

.Nunca teve muita paciência para aturar as conversas das colegas, tinha mais que fazer que estar a falar da vida alheia. Gostava de sair, ai se gostava, mas as suas debandadas cingiam-se às compras do dia a dia. Para além disso satisfazia-se com uma passagem rápida pela pastelaria, onde uma bica bem quentinha lhe reforçava o ânimo. Às vezes concedia dois dedos de conversa à D. Fátima, que lhe contava as últimas novidades, e ala para casa, que a vida não se arranja no paleio.
Dentro de paredes era Maria que fazia e desfazia, e o marido há muito se resignara a tal facto. Conhecia bem a determinação e a energia da mulher, e não adiantava lutar contra tais armas. No fundo admirava aquela força da natureza, que delineava o contorno das suas vidas de forma implacável.
Os filhos conheciam-lhe bem a voz de comando, e foi-os instruindo no caminho do trabalho e do esforço. O percurso deles foi-lhe mostrando que tinha razão.
Do dinheiro do orçamento familiar, rigorosamente gerido, apenas se lhe conhecia uma extravagância: comprar um livro de vez em quando. Lia-o à noite, depois da lida da casa, e o marido nem sempre entendia aquela bizarria. Era a única altura do dia em que a via longe dali, como se a sua realidade controlada, por momentos, não existisse.
Mas os anos já iam pesando, apesar de continuar mexida e desembaraçada. Com os filhos em casa própria, começou a ter mais tempo para si, e a dar largas ao seu gosto pelos livros. Lia, lia muito...
O neto começou a frequentar a casa, adoçando-lhe os dias, fazendo cócegas àquela capa de austeridade. O companheiro, porém, via-lhe nos olhos uma espécie de insatisfação. Bem tentava sondar, mas um seco "não se passa nada" cortava toda e qualquer inquirição.
Uma manhã o marido saiu cedo. Maria, habituada ao seu rosto tranquilo e resignado, notou-lhe uma determinação pouco habitual, mas encolheu os ombros. Retomou a leitura de "Veneza", de Jan Morris, e não pensou mais no assunto.
Depois do almoço, após arrumar a cozinha, voltou para a sua leitura. Ajeitou a almofada, sentou-se, e esboçou o gesto maquinal de pegar no livro. Só então reparou no invólucro, com o logotipo de uma agência de viagens, deixado em cima da capa do livro. O marido olhava, num misto de apreensão e ansiedade. Mas, quando lhe viu o brilho de satisfação ao ler a palavra Veneza, percebeu que tinha acertado em cheio.


sexta-feira, 28 de agosto de 2009

DE BOAS INTENÇÕES...

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As intenções são boas, mas...
Com este blog pretende-se, ao sabor da corrente, dar conta de alguns apontamentos, notas e reflexões sobre interioridades várias.
Vamos lá a ver se consigo desdizer o ditado.
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