sábado, 23 de abril de 2016

A CEREJEIRA QUE MUDOU DE RUMO

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AC, Enxertos
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Em tempo de efemérides, cada vez mais formatadas, deixei para trás, no aconchego da sala, a voz dum cavaleiro da utopia, o eterno Zeca Afonso.  O terreno, circundante à casa, esperava por mim, em rotina tecida, aparentemente, em silêncios. Nada mais enganador. Cada planta tinha a sua história, assim houvesse alma para a ouvir. A toda a hora. 
Passei pele recanto dos rosmaninhos, que cresce por ali em livre curso, para desconsolo dos meus vizinhos. Para eles todo o terreno deve ser aproveitado. Ver giestas, rosmaninhos e outras plantas silvestres, em espontânea auto-gestão, é completo desperdício. O meu sorriso apenas lhes trava as palavras, não o pensar. Para quê dizer-lhes algo? Habituados que estão a tirar o melhor proveito da terra, jamais conseguirão compreender a minha satisfação na fruição de cores e odores. E, encolhendo os ombros, acabam também por sorrir.
Perto da horta tinha crescido uma cerejeira brava. Este ano, atiçado pela ousadia, atrevi-me a fazer-lhe uns enxertos. Talvez conseguisse, naquele viço quase indomável, encontrar a harmonia adequada para ela se redescobrir com outros enfeites. Ela lá estava, à minha espera. Os enxertos parecem ter conseguido penetrar-lhe no âmago, de tal forma que, já este ano, alguns frutos se anunciam. Olho, respiro, absorvo. Tento ouvir, tento perceber. A cerejeira, outrora brava, parece-me feliz com o seu novo destino.
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sábado, 16 de abril de 2016

ESBOÇO DUM(A) POET(IS)A

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Fotografia de João Craveiro
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Ontem, quando passava no caminho das cerejeiras, em contínua procura de alimento para a alma, vi-te, de relance, a olhar para o seu florescer. Sentiste-me e, em vez de partilhares o teu encantamento, começaste a falar da lama nas botas, das incómodas abelhas que, nem com uns pingos de chuva, deixavam de incomodar.
Não sorri, podias interpretar mal. Mas, cá dentro, todo eu era contentamento. Embora não admitas, a poesia vive dentro de ti. E, quando aprenderes a olhar as coisas de frente, vais descobrir que, com ela, até o maior desassossego pode dar azo à mais bela das metáforas.
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O MEU ANÓNIMO

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Tenho um anónimo que me adora. Gosta de aparecer, como visita regular, como que a dizer que a vida é injusta. Canta-me loas? Não, não é bem o caso, é mais uma questão da sua própria existência. É por isso que se expressa em linguagem vernácula, bem pontuada, o que me leva a pensar que o meu anónimo acredita na redenção. Ele bem se esforça por agredir, fazer mossa, mas, podem crer, é apenas alguém a tentar chamar a atenção. O meu anónimo, no fundo, apenas se ressente das poucas vezes que lhe dizem que gostam dele. Pois bem, aqui fica o meu contributo para a sua emancipação: caro anónimo, qualquer pessoa, digna desse nome, não gosta de cobardes!
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domingo, 10 de abril de 2016

A HARMÓNICA

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Sergei Aparin, In memory of my grandfather
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Caminhavam. Não sabiam bem para onde, mas caminhavam. O tempo não se media por instrumentos, era o estômago que ditava leis. O estômago e, acima de tudo, os filhos, mola impulsionadora de todas as intenções, de todos os passos. 
De vez em quando, numa pequena pausa, a harmónica saía do bolso, entoando lamentos e anseios. Alheavam-se, por momentos, do mundo, num forjar de forças que não requeria explicação. Era assim, simplesmente, imitando o deambular do sol e da lua.
Quando encontravam alguém, os sentidos ficavam alerta. Andarilhos de muitas paisagens, conhecedores das grandezas e misérias do homem, procuravam, no interlocutor, sinais de abordagem: se era sensível aos outros, se era mesquinho, se olhava de frente. E agiam conforme as circunstâncias.
No regresso, passada a curiosidade das crias, a ordem instalava-se. Cada grão tinha um preço, cada gesto uma intenção. E comiam, gratos. Só quando a harmónica, em acção de graças, saía do bolso, é que os sorrisos se soltavam.
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sábado, 2 de abril de 2016

OLHARES

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Foto de AC
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Há algo, no olhar, que revela muito da essência de cada um. Não é o olhar das imagens de cinema, quando aquele actor, ou actriz, pega em nós e nos transporta para determinado contexto, determinada situação, com a qual tendemos a identificar-nos. Não, não é isso, deixemos os ícones de fora. Estou a referir-me ao olhar livre, com espontânea ligação à alma, em que, de repente, nem que seja por um só instante, conseguimos alhear-nos das amarras, das convenções, em que a roupagem é um empecilho. Nessas alturas, únicas, em que permitimos que a nudez nos inunde, fora de qualquer ideologia, a vida ganha outras cores, outra configuração. E, deixem que vos diga, é no cultivar destas pequenas conquistas que, lentamente, e por mais que o mundo se agite, a serenidade fica cada vez mais perto.
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