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AC, Enxertos
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Em tempo de efemérides, cada vez mais formatadas, deixei para trás, no aconchego da sala, a voz dum cavaleiro da utopia, o eterno Zeca Afonso. O terreno, circundante à casa, esperava por mim, em rotina tecida, aparentemente, em silêncios. Nada mais enganador. Cada planta tinha a sua história, assim houvesse alma para a ouvir. A toda a hora.
Passei pele recanto dos rosmaninhos, que cresce por ali em livre curso, para desconsolo dos meus vizinhos. Para eles todo o terreno deve ser aproveitado. Ver giestas, rosmaninhos e outras plantas silvestres, em espontânea auto-gestão, é completo desperdício. O meu sorriso apenas lhes trava as palavras, não o pensar. Para quê dizer-lhes algo? Habituados que estão a tirar o melhor proveito da terra, jamais conseguirão compreender a minha satisfação na fruição de cores e odores. E, encolhendo os ombros, acabam também por sorrir.
Perto da horta tinha crescido uma cerejeira brava. Este ano, atiçado pela ousadia, atrevi-me a fazer-lhe uns enxertos. Talvez conseguisse, naquele viço quase indomável, encontrar a harmonia adequada para ela se redescobrir com outros enfeites. Ela lá estava, à minha espera. Os enxertos parecem ter conseguido penetrar-lhe no âmago, de tal forma que, já este ano, alguns frutos se anunciam. Olho, respiro, absorvo. Tento ouvir, tento perceber. A cerejeira, outrora brava, parece-me feliz com o seu novo destino.
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