quinta-feira, 25 de abril de 2013

SEIVAS DE ABRIL

.
Aguarela de Ana Pintura
.
.

Os cuidados com as árvores começaram mais cedo. Fizera uma ou outra enxertia, cavara, estrumara, podara.
Entretanto, cansada de jogar às escondidas, a primavera assomara, começara a sorrir, abrindo portas à grande azáfama na horta. Com a compostagem no ponto, feita com as plantas da época anterior, em estágio invernio, delineava-se o melhor local para as diversas plantações. Na terra já havia couves, alhos, morangueiros, favas e ervilhas, mas o grosso da horta estava por fazer. E, com o tempo, isso tornara-se um ritual. As passadas sucediam-se, de cá para lá, de lá para cá, mas a dúvida era companheira frequente.  Aqui as cebolas, depois as alfaces, os tomateiros, os feijoeiros. Talvez a seguir as plantas aromáticas, pensou, são inibidoras das pragas, depois as beringelas, os pepinos e os pimentos. Mas ainda faltavam as abóboras, os melões, as beterrabas...
Os desenhos sucediam-se, queria conciliar a harmonia das plantas com a fluidez da colheita, mas muitas voltas havia por entender. A horta era uma descoberta constante, cada espécie requeria um especial cuidado, adequado à sua sensibilidade. Aconselhara-se com este e aquele, mas depressa intuíra que a cada cabeça, sua sentença. Parecia haver um princípio geral, é certo, mas quanto à essência de cada planta, só tentando, só sentindo. Se fórmulas houvesse, talvez a formada nas memórias do avô, atento observador dos astros e amigo da passarada, fosse a mais adequada: a horta gosta de pequenas delicadezas, de namorar, de ver o hortelão todos os dias.
Hoje, bem cedo, a horta viu-o chegar de rubro cravo na mão. Se tinha que conhecer a sua essência, também ela teria que conhecer a sua.
.
.

terça-feira, 16 de abril de 2013

ESTRANHA MELODIA

.
Hélio Cunha, Estranha melodia
.
.
.
Partira bem cedo, mas a ascensão não fora fácil.
Quando chegou, após curta pausa, escolheu quatro pedras e colocou-as à laia duma rosa-dos-ventos. Sentou-se no meio, orientado para o sol, e olhou em volta, demoradamente, como que a absorver o que o rodeava. 
Cerrou os olhos. O silêncio, a pouco e pouco, foi ganhando asas, abrindo portas a melodias até então alheias ao ouvido. A princípio, ainda imbuído do pó da planície, não encontrava o copo com que beber as notas da estranha pauta. Demasiada física, pouca química. Depois, já alheio à ditadura do tempo, começou a perceber a linguagem da brisa na pele, nas pedras, nas ervas, bem distinta da discreta presença do melro-das-rochas.
Partira bem agasalhado, mas começava a sentir-se nu. Tudo se conjugava, tudo se envolvia. Mergulhara, finalmente, nos acordes da profunda melodia.
.
.

terça-feira, 9 de abril de 2013

AROMAS DE PERTO E DE LONGE

.
Margarida Cepêda, Diálogo
.
.
.
Quando éramos jovens potros, lembras-te?, olhavas, distante, a beleza das tulipas. Dizias que eram demasiado intensas na cor, no rigor das linhas, efémeras em demasia.
Nas luas que foste bebendo, entre o cá e o lá, ousaste abrir a tua caixa negra. A princípio gritaste de pânico, não existia linha de separação entre o anjo e o diabo, mas foste aprendendo, em banho de humildade, a apaziguar a insegurança da tua nudez.
As tulipas nunca serão as flores do teu jardim - preferes as violetas, eu sei - mas já não as renegas. Aprendeste que qualquer pingo de beleza, por mais ínfimo, é melodia que ecoa no jardim das palavras primitivas.
.
.
.

terça-feira, 2 de abril de 2013

RABISCOS DA PERPÉTUA CEGUEIRA

.
Salvador Dali, Contador Antropomórfico
.
.
.
Olhava, do alto da falésia, os barcos que partiam.
Dentro dela conviviam, em constante agitação, laivos despoletados por múltiplos cenários. Uns asfixiavam, outros tendiam a esboçar movimentos do abrir e fechar de portas. Da complexa amálgama, em constante fermentação, ia arquivando ficheiros, sabedoria acumulada que, de tão ciosamente guardada, apenas o pó tolerava por perto.
.
.
.