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Margarida Cepêda, Amizade
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Eram tempos em que a dúvida pairava, em demasia, propícios à sementeira de neblinas, com os instintos básicos, naturalmente, a irromper como cogumelos em terreno propício. Os deuses pareciam estar zangados em versão superlativa.
Ela, como era habitual nos últimos tempos, acordou sobressaltada. Naquele dia, porém, sem saber bem porquê, sentiu-se impelida a visitar o jardim, outrora colorido sob o olhar atento dos jardineiros, que eram todos, mas agora a viver na penumbra. Desceu as velhas escadas de granito, afastou algumas ervas que, entretanto, foram crescendo com carta de alforria, contornou o tanque e seguiu o caminho das árvores centenárias, que continuavam, indiferentes a tudo, com um porte digno.
A falta de luz continuava a incomodá-la, apesar de alguma tranquilidade que, contrariando o cenário, emanava das grandes árvores. Aproximou-se mais. Os grandes ramos envolviam toda a área circundante, qual eterno abrigo para qualquer tempestade. Mas a luz, que ali só costumava deixar reflexos, bordados pelo intervalo das folhas, continuava ausente, como se algo estivesse doente, em completo declínio, a carecer dos maiores cuidados. E foi então que...
Um inesperado canto irrompeu pelo jardim. Abismada, tentou descortinar a procedência daquela espécie de luz, em versão emotiva, que a deixara tão empolgada. Espreitou por entre os ramos, atenta ao mais ínfimo pormenor, mas nada descortinava. Chegou-se mais à frente, andou para o lado, recuou, percorreu todos os pontos cardeais em busca da melodia. E só quando, já cansada, se sentou no banco que ladeava a enorme tília, sentiu a melodia que de si emanava. Tinha percebido, finalmente, que o canto vinha do mais fundo de si, tal a vontade de agarrar a vida.
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