segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

O ETERNO CONJUGAR DO VERBO

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Presépio, em telha mourisca, de Francisco Paulo
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O homem carregou no acelerador do velho Fiat Uno, lata amolgada carcomida pela ferrugem, mas os gemidos da mulher, no banco de trás, diziam-lhe que não iriam chegar a tempo ao hospital. A hora aproximava-se, e o desespero levou-o a virar no primeiro desvio, recurso último de quem não sabe o que fazer. O velho carro, a dar o que não podia, entrou numa rua escura, esburacada, pejada de armazéns abandonados. A cadência dos gemidos acentuou-se, accionando o chiar dos travões. Era agora.
Enquanto o homem, desesperado, tentava tirar a mulher do velho Fiat, das imediações começa a irromper vida. Rostos barbudos, de cabelo em desalinho, caminham para o epicentro. Enquanto ajudam o casal, sente-se o ranger dum enorme portão a rodar. Um movimento inusitado começa a insinuar-se na zona.  
Estendem dois cobertores no chão, entre duas enormes pilhas de paletes, e acomodam a mulher. Ao lado, movido a urgência, alguém acende um fogão de campismo e põe água a aquecer. Vindos do exterior, dois bidões, prenhes de madeira seca a alimentar as chamas, começam a aconchegar o improvisado abrigo.
Quando se ouve o primeiro choro, nascem lágrimas para temperar o júbilo. De repente, qual quadro há muito esquecido, o enorme armazém torna-se pequeno para tanto rosto barbudo, de olhar intenso, como se algo novo, quase indefinível, despertasse dentro deles.
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Um Renovado Natal para todos!
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domingo, 15 de dezembro de 2013

EM BUSCA DO SUBSTANTIVO

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Hélio Cunha, Acqua
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Crescer é tentar perceber o perto e o longe, expandir horizontes, sentir a vida como se a grandiloquência nos tocasse.
Assim tu foste, doce cerejeira, mas insatisfeita com os limites do teu fruto.
Tentaste ser figueira, mas achaste o sabor muito selectivo. Talvez amendoeira, cogitaste, mas, perante o esperar e o desfrutar, esperavam-te mil e um trabalhos até chegares à sua essência. Entre o ser e o não ser, quase te perdeste, os cenários pareciam quase sempre definitivos. Não adormecias bem.
Deambulando por sabores e aromas naufragados, descobriste que cada fruto tem a sua forma, o seu aroma, o seu próprio sabor. E, finalmente, começaste a investir em algo único, no que de mais subtil e puro há em ti. Quase sem te dares conta, ao despir roupa alheia, acabaste por descobrir a tua nudez.
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domingo, 8 de dezembro de 2013

COGUMELAR EQUILÍBRIOS

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A manhã estava fria, branca de geada, a convidar para mais um tempinho na cama. Um salto, o café a escaldar, e ala, que os companheiros de evasão aguardavam.
Não havia vento, ou, como dizia o poeta, "nem uma agulha bulia, nos pinheiros do caminho", mas não era hora de neve. De frio, sim, de deitar fumo pela boca, mas não se conhece melhor aquecedor que o convívio. E o pinhal recebeu-nos de forma tranquila, afável, abrindo portas à simplicidade da procura.
A caruma, adereço indispensável ao nosso vasculhar, dificultava na justa medida, a suficiente para alimentar o júbilo da descoberta. Olha um míscaro*, é amarelo, exultava o parceiro da esquerda. O da direita olhava, de soslaio, mas depressa lhe cabia em sorte a descoberta de dois ou três, mas dos brancos.
E entre pinheiros, a cogumelar, se passou a manhã, em busca de algo bem definido. Não havia subterfúgios, o pinhal e os pesquisadores davam apenas o que tinham de si: no espaço, a disponibilidade; na ocasião, a oportunidade; no envolvimento, a comunhão de viver.
A natureza, sempre a natureza, a regular a respiração dos homens.
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*míscaro - variedade de cogumelo silvestre
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sábado, 7 de dezembro de 2013

REBUSCAR

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Pintura de Margarida Cepêda
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Se há coisas que não podemos escolher, uma delas é a competência genética com que chegamos ao mundo.
Esse aspecto, contudo, é apenas o aparente início da grande viagem, matéria visível da nossa construção. 
A família pode envolver-nos, ou não, numa capa protectora, zelando para que os nossos primeiros olhares sobre a vida não sejam sujeitos a grandes intempéries, e a forma como (não) sorrimos é disso uma evidência. Mas há algo para lá do óbvio. A matéria de que somos feitos, as energias que por aí cirandam, as influências astrais.., isso dificilmente é perceptível ao nosso rudimentar entendimento. Tentamos perceber tacteando, muitas vezes pisando o que poderá, ou não, ser importante.
Por norma, só mais tarde nos apercebemos de que passámos ao lado de rastos determinantes, pois, em matéria de conhecimento, a cegueira ainda é a nossa condição. E, como qualquer pessoa que (se) procura, sujeitos à intermitência dos caminhos.
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Às vezes
Quando o cinzento se perpetua
Ganha lastro
A procura da luz
A claridade
Dos dias prometidos.
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No calcorrear da velha calçada
Um letreiro velho
Mas sempre novo
Sinaliza
Nas subtilezas do tempo
O graal de todas as demandas
Insinua-se
Um vislumbre de promessa
A centelha do golpe de asa
Mas os olhos carecem de rumo
Porque toldados
Pela visão de mil profetas
Às vezes
Com a luz na mão
Apenas olhamos
Para o mistério da sombra.
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