terça-feira, 30 de março de 2021

O NINHO DE MELRO: UM GESTO, UMA CONSEQUÊNCIA

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AC, Ninho de melro
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Viver no campo é bom, é mesmo muito bom, mas desiluda-se quem pense que tudo é descanso e contemplação. As tarefas acumulam-se, de dia para dia e, por mais que se faça, parece que pouco ou nada se fez. Há pois, que desligar da vida lá fora - o das pessoas apressadas - aprender a relativizar as coisas, dar-lhes a importância que realmente têm. Só assim se alcança a satisfação, o equilíbrio.
Andava eu, esta manhã, a tentar domar o crescimento desmesurado dum arbusto, próximo duma das janelas da casa, satisfeito por, ao fim de dois dias, a vacina que levara contra o Covid não apresentava quaisquer reacções adversas. Desbastava aqui, podava ali, sempre com preocupação geométrica, quando, de repente, se me insinua um ninho de melro. Deslumbrei-me, primeiro, com a delicadeza dos ovos, mas horrorizei-me, depois, qual sensação de crime cometido. É que, ao podar os ramos que protegiam o ninho, provavelmente ele irá ser rejeitado pelo casal de melros, sujeito que ficou à investida de qualquer predador. Preocupado, tentei camuflar aquele centro de vida com dois pequenos ramos, mas dificilmente isso resultará. A não ser que...
Vou ficar atento, vou acreditar. Talvez, quem sabe, os melros me surpreendam, como tantas vezes a Natureza o faz. Mas, até lá, fica uma sensação de culpa que teima em não desaparecer.
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domingo, 28 de março de 2021

COM QUANTAS ÁRVORES SE TECE O HORIZONTE?

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AC
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Uma árvore, o horizonte, muito espaço para a divagação. 
Por mais que os dias passem, nunca me canso do cenário, de tentar descortinar segredos, de me projectar para lá dos montes, de forjar receitas de encantamentos mil. E, enquanto o astro vai rodando, desfiando partículas para bom entendedor, meia palavra é apenas o rastilho para ousar, sabendo-se à partida que, no nosso vocabulário, o da percepção, é debalde a ousadia de tentar furar a mais dura rocha com um simples dedo. 
Deixamos dedadas enquanto tentamos, meros esgares de desespero, de incapacidade, tudo muito ao de leve, quase imperceptível, qual boi a olhar para um palácio. Mas tentamos, tentamos sempre, a honra está em nunca deixar de tentar. E é nessa vontade indomável de tentar ir em frente, por mais que a alma desassossegue, que talvez um dia consigamos espreitar, provavelmente de muito longe, novos patamares que nos conduzam a uma nova forma de estar, de percepcionarmos a verdadeira arquitectura daquilo de que somos formados.
É por isso que, bem rodeado de afectos, nunca me canso da cumplicidade da árvore dos segredos, bem projectada no horizonte. Nessas alturas, se desassossegos houver, eles vêm sentar-se a meu lado, afáveis, como se tudo em volta fizesse sentido.
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sábado, 27 de março de 2021

TALVEZ

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AC, Ribeira de Alpreade, Castelo Novo, Serra da Gardunha
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Prosseguias, vetusta, movida por desígnio ancestral. E, por mais que te acenassem, só uma coisa importava: cumprir o teu desígnio, fazendo mover as azenhas, saciando sedes e fertilizando as margens. 
Talvez, em pleno estio, satisfeita a necessidade de muitos, te seja permitida uma pausa, enquanto multiplicas pequenos charcos para as rãs se deleitarem, enfeitando a noite com o seu coaxar. Se assim for, talvez possas, por fim, compor as canções que te enfeitam a memória, transportadas pela brisa que agita, levemente, os salgueiros.
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sábado, 20 de março de 2021

LEVAS-ME CONTIGO?

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Margarida Cepêda, Inquietação e segurança
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A acção decorre na passada semana, última do confinamento dos alunos do 1.º Ciclo, numa sala de Acolhimento para filhos de trabalhadores da linha da frente. Com toda a gente mascarada, note-se.
A Marisa, vamos chamar-lhe assim, era uma das frequentadoras, e fazia-se notar por apresentar alguma relutância em deitar mãos às tarefas que lhe estavam destinadas, após as sessões síncronas com a sua professora. Argumentava, empatava, tudo lhe servia de argumento para não deitar mãos à obra. E tudo indicava que o seu comportamento se tornaria padrão.
Eu era presença recente naquela sala, mas depressa a Marisa se fez notar aos meus olhos: pelo que ela não fazia, pelo que ela desafiava. E aceitei o repto.
No início, com as devidas meças a um novo interveniente, ela fez-se de nova, reagindo com cautela. E, embora fosse concretizando qualquer coisa, tudo o que produzia era sempre cadenciado por pausas mil, inquirindo por tudo e por nada. Mas sempre com um olhar atento, como se medisse a intenção de quem a solicitava. Mas eu tentava, cabriolava, tentava seduzir. E assim se passou um dia, dois dias...
Entretanto, e atendendo à minha preocupação, fiquei a saber, por consultas várias, que havia indícios de que, na família dela, talvez houvesse violência doméstica. Um talvez que me soube a escusa, a falta de envolvimento. Mas desta faceta dalguns seres já eu estou vacinado.
A meio da semana, quando tudo parecia mais do mesmo, a Marisa chamou-me. Aproximei-me, solícito, para indagar daquilo que ela carecia, e ela fez um gesto, aparentemente natural, a pedir aproximação. E eu correspondi. De repente, quando nada o fazia pressentir, ela pega na minha mão e, qual gesto dum qualquer activista, resgata-a para debaixo do seu braço direito, enquanto a aperta com a sua mão esquerda. Depois, reclinando o corpo de encontro ao meu braço resgatado, como se fosse um apoio, liberta a sua mão direita e começa a escrever ininterruptamente, qual dealbar dum barco em porto seguro. E eu, atónito, assistia àquele inesperado fervilhar de vida.
A Marisa prosseguiu na escrita, convicta, mas às tantas, sem nunca me olhar nos olhos, diz-me, num tom íntimo, quase discreto:
- Levas-me contigo para a tua casa?
Ainda esbocei "a tua mãe ficava tão triste, Marisa", mas nada que eu dissesse me faria apagar o impacto dum pedido tão espontâneo. E, apesar do contentamento pela confiança depositada, um aperto devassou-me as entranhas, trespassado pelo grito interior de tantas marisas, pelo desespero de tantas mães.
Para lá das máscaras, a vida, por vezes, é mesmo madrasta.
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sábado, 13 de março de 2021

PUDESSE EU...

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Pudesse eu sentir-te, para lá dos diáfanos fios
Pudesse eu ver-te, para lá da luz que se esgueira
Pudesse eu fundir-me em ti, para lá do tempo que escorre...
Talvez, então, 
Com a libertação do sorriso,
O furor dos relâmpagos amainasse.
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domingo, 7 de março de 2021

ALAMEDA DAS ERVILHAS

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AC
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Sei que não gostas muito de te envolver nas coisas da terra, que preferes observá-las, de preferência sentada no conforto dum chá, para lá da vidraça, mas desta vez não resisti. E desafiei-te.
Quando a neblina se dissipou, abrindo alas ao esplendor solar, chamei-te para um passeio na alameda das ervilhas. Franziste o sobrolho, mas viste nos meus olhos que talvez valesse a pena. Foi quanto bastou. Relembrei-te o desbravar da terra, o lançar da semente, os mimos depositados para um parto feliz, a atenção constante com um novo ser...
Quando chegámos à zona das ervilhas, com a alameda por percorrer, já estavas conquistada. Olhaste, interiorizaste, fizeste uma pausa. Depois, já embrenhada no microcosmos, chamaste-me a atenção, como se eu não soubesse, para a geometria da plantação. Mantive uma expressão atenta, interessada - apenas sorri para dentro, não fosses interpretar-me mal - como se me estivesses a mostrar a arquitectura da simplicidade. E continuámos.
Percorrida a alameda, enfeitada de verde vivo nas alas, olhei para ti e não resisti ao impulso dum abraço. É que, e percebi que também o estavas a sentir, a simplicidade, para lá dos meandros do complexo, precisa constantemente de ser cultivada. Com convicção.
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