sábado, 24 de março de 2018

O MOLEIRO, A AZENHA E O RIBEIRO

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AC, Azenha numa ribeira da Gardunha, Souto da Casa
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Havia um moleiro, uma azenha e um ribeiro.
Sabiam o seu lugar, o ano inteiro.
Que se passou?
O tempo mudou.
O moleiro emigrou.
A azenha parou.
O ribeiro minguou.
Havia um moleiro, uma azenha e um ribeiro.
Só ficaram memórias, o ano inteiro.
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sábado, 17 de março de 2018

A ILHA

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Fotografia de AC
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Ontem, lembras-te?, falavas-me do longe como se tivéssemos asas, enquanto, tranquilamente, bebíamos um Jameson à lareira. 
Dizes sempre as coisas a sorrir, faz parte de ti, num velho e renovado jogo de te descobrir, de nos descobrirmos. E eu gosto. Lá fora, onde a chuva teima em ser rainha, as amendoeiras começaram a perder a flor, mas os pessegueiros, de forma discreta, já se começam a enfeitar, delicadamente, num inconfundível subtil rosa. Só as cerejeiras, demasiado melindrosas, teimam em não desabrochar, exigindo, para sua apoteose, a indispensável luz solar.
Hoje, para contrapor, falei-te de poetas e de pintores de outrora, que viam nos mares do sul a viagem das suas vidas. Nada disseste, só os teus olhos sorriam. Levantaste-te, puseste mais um pau na lareira e escolheste outra música. Depois, com o sorriso a desenhar-se no rosto, olhaste-me bem de frente.
Nunca me canso de te descobrir, nunca nos cansamos de nos surpreender.
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sábado, 10 de março de 2018

O QUINTAL

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AC, Paisagem com Estrela ao fundo
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Os passos eram firmes, determinados, apesar duma constante espada, na sombra, a ameaçar travar a marcha. Talvez por isso. A vida, na sua essência, baseia-se no risco de ousar ir mais além, controlá-la está fora de questão. Há, pois, que depurar os empecilhos, contornar os profetas da desgraça, estar acima da filosofia dos donos dos quintais, especialistas em fronteiras.
De repente, qual convite irrecusável, insinua-se a pausa. O olhar alonga-se, planando na sensação de descoberta duma espécie de portal com ligação directa à alma, a configuração das coisas ganha outra dimensão. O tempo pára. Cada pormenor ganha vida, como que a dizer que tudo conta, sente-se o respirar do silêncio. Às tantas, apesar de apenas em esboço, insinua-se a dúvida: se eu estou, por que é que tu não estás?
Sim, eu sei que caminhar, muitas vezes, é descobrirmo-nos na solidão. Mas, podes crer, é nessa caminhada que se forja a cumplicidade mais pura. É disso que todos precisamos, é isso que todos nós procuramos. Apesar de, cada vez menos imunes a ruídos, continuarmos obcecados em ser donos de um qualquer quintal. Tudo por que queremos uma recompensa imediata, por mais ilusória.
Talvez, um dia, nos encontremos.
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sábado, 3 de março de 2018

FAZ DE CONTA

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AC, Campanário
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Já há muito que ninguém brincava no largo sobranceiro ao campanário. Os tempos de agora são de mil e um condicionamentos, com sete olhos a espreitar em cada esquina, mas naquela tarde, fosse lá por que fosse, duas crianças brincavam por ali. Talvez fossem irmãos, talvez fossem primos, não interessa. O certo é que, num tempo em que todos os passos duma criança tendem a ser condicionados em grande grupo, entre quatro paredes, com sequelas do lado de lá e de cá, ver por ali duas crias a brincar, em aparente harmonia com o cenário que as rodeava, não era normal.
- Eu sou um cavaleiro, montado num cavalo branco, e ali em cima é a minha torre.
- És um cavaleiro? Pois deves ser bem tonto, como aquele D. Quixote de que fala o tio. No alto da torre devem estar as princesas, prisioneiras da sua sorte, e os cavaleiros costumam aparecer de cavalo para as libertar.
O suposto cavaleiro pareceu acusar o remoque. Às tantas, como se algo agitasse as águas em que navegava o seu faz de conta, retorquiu, de sorriso a bailar:
- Rita, quando me pedes para te ajudar a fazer a cama, isso é para te libertar?
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