sábado, 25 de fevereiro de 2023

NÃO CHORA, NÃO?!

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Margarida Cepêda, Transparente
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Após uma actividade qualquer, algures a meio da cidade, os pais do Miguel, o meu neto, e os da Diana, uma amiga de creche, resolveram ir até ao Parque Verde. Aí chegados, o escorrega foi o divertimento de eleição para as duas crianças, ambas com cerca de dois anos e meio.
A brincadeira começou, os risos soltaram-se e, para eles, parecia não haver fim à vista, com os adultos, por perto, agradados com o desenrolar. 
O tempo foi passando e, às tantas, os pais da Diana começaram a olhar para o relógio, pois tinham outro compromisso. Com todo o jeito possível, abeiraram-se da menina e disseram-lhe que tinham que ir embora. A pequena, contudo, estava a adorar a brincadeira e, vai não vai, resolveu socorrer-se do argumento mais eficaz que conhecia para a poder perpetuar: começou a chorar. Nestas alturas, já se sabe, os adultos tentam tudo para acalmar a criança, cada um tentando ser mais convincente que o outro. 
Por entre a agitação, quase ninguém reparou no Miguel que, compenetrado, olhava para o chão em busca de qualquer coisa. Às tantas pareceu satisfeito, apanhou o que queria e aproximou-se da amiga, que continuava a chorar. Depois, com ar quase solene, mas pejado de carinho, estendeu a mão, abriu-a, deixando ver uma uma pequeníssima pedra brilhante, e disse-lhe, com o encanto que só as crianças sabem ter:
- Toma, Diana. Não chora, não?!
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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

PARA LÁ DOS CARNAVAIS

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AC
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O dia decorre cinzento, pouco apelativo, como que a ilustrar as notícias que chegam do mundo.
Contudo, quem está minimamente atento sabe que para o emissor a desgraça é que se propaga, qual fogo em terreno seco, em detrimento do gesto benigno, fazendo subir audiências. E a multidão, refém duma lógica pastoral, manipuladora do rebanho, devora a mensagem sem qualquer sentido crítico.
Como que a querer contrariar maus presságios, vislumbro lá fora, através da vidraça, um casal de pintassilgos a debicar aqui, a debicar ali, com toda a delicadeza, fora do raio de acção doutro casal, mas de melros, cuja envergadura, muito mais desenvolvida, aconselha afastamento aos pesos pluma. Os pardais, como sempre, são omnipresentes, como se fossem donos do território, e nem os gatos que por aqui deambulam os conseguem incomodar. Uma aproximação, um voo lesto, cada um sabendo ocupar o seu lugar, com os pequenos felinos a desenvolver, agora e sempre, o culto da resignação.
Saio de casa. Os pintassilgos e os melros esgueiram-se num ápice, mas os pardais, confiantes, ficam por perto. Em volta a vizinhança anda muito ocupada na lavra dos terrenos, prenúncio das sementeiras primaveris que se aproximam. À medida que lavram, num sempiterno ritual, a passarada acompanha o compasso, sempre à retaguarda, atenta a toda e qualquer lagarta colocada a descoberto, banqueteando-se sem qualquer sentimento de culpa. Isso é para os bípedes falantes.
Cinjo-me ao meu pequeno paraíso, repleto de ervas silvestres, onde as margaridas são rainhas. Reparo nas amendoeiras, cada vez mais adornadas de flores, enquanto o damasqueiro, mais dorminhoco, começa a insinuar um tom róseo, procurando imitar os marmeleiros japoneses que, mais junto da casa, há muito alegram o local. Com maior avanço seguem as nespereiras, com o fruto já na infância, aguardando por dias de mais sol para melhor se desenvolver. As outras árvores - macieiras, pereiras, cerejeiras... - sem pressa no parto, reservam-se, pacientemente, para o seu tempo de esplendor, enquanto uma ou outra ave lhes vai enfeitando, por breves momentos, os ramos nus.
Lá no alto, planando sem pressa, as aves de rapina - um ou outro milhafre, quiçá um açor, ou um bufo, talvez uma águia - aguardam pela melhor oportunidade para deitar as garras à cobiçada presa, reservando o uso do bico para quando estiverem instaladas no ninho.
Caminho, olho, absorvo. Quando, por fim, e já de alma saciada, retomo o caminho de casa, ouvir uma boa música apenas serve para complementar o efeito. Ligar a televisão é, naturalmente, a última das minhas prioridades.
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sábado, 11 de fevereiro de 2023

CRÓNICA AO CORRER DA PENA

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AC
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Segundo alguns estudiosos, há aquilo que queremos ser, aquilo que os outros querem que sejamos e, em última instância, aquilo que realmente somos.
Quase parece uma regra três simples, sujeita à nossa vontade, mas nestas coisas, quando o sentido da vida é o foco, nada é simples, por mais que se multiplique isto, divida aquilo, equacione aqueloutro. E, enquanto nos questionamos, a vida vai discorrendo, sem contemplações para angústias e dilemas, sorrindo de soslaio perante tanta interrogação. 
Para um observador mais cínico, com o desdém à flor da pele, a referência bíblica "crescei e multiplicai-vos" é motivo de motejo. É que nós crescemos cultivando a multiplicação, de tal forma que já excedemos a quota da sustentabilidade e, além de não nos desenvolvermos de uma forma espiritual, continuamos nos primórdios em termos de objectivos: limitamo-nos a sobreviver, a simplesmente sobreviver.
Bem sei que há a ciência, a arte nas suas múltiplas formas, a filosofia e a religião, mas, da forma que os auto-proclamados chefes da barca a estão a conduzir, tudo se resume, para a imensa maioria, ao (mau) exemplo romano: pão e circo. Quo vadis, humanidade?
Reparo agora que, ao iniciar a crónica, e dispondo da fotografia que encima o post, a intenção era ser positivo. E eu, que me refugiei num pequeno paraíso natural, constato o evidente, para lá da minha individualidade: crescei e multiplicai-vos, sim, mas em amor, justiça, esperança e respeito pelo outro, com cada um a fazer a parte que lhe corresponde. Tão só. O resto vem por acréscimo.
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domingo, 5 de fevereiro de 2023

QUANDO DO ESCURO SE FAZ LUZ

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Margarida Cepêda, Violino e chantili
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Ele chegou cedo, tal como estava previamente combinado, sendo recebido com todas as mordomias por quem estava presente. Mas faltava algo.
- O avô? - questionou ele, perante a imperdoável falta do visado.
O avô, esse compincha dos sete costados, que tinha o condão de poder voltar a menino na sua presença, estivera de véspera a ver um filme, que o prendera até tarde, sem noção das horas, e só agora começava a abrir os olhos. Contudo, mal se apercebeu dos primeiros sinais do neto, levantou-se num ápice, qual adolescente no encontro com o primeiro amor e, abrindo os braços, exclamou, de forma espontânea:
- Migueeelll!!!!
O neto, dois anos e meio de gente a crescer, a cada dia que passa, não se coibiu de notar, enquanto o abraçava, em jeito de reprimenda:
- Avô! Tu gostas do escuro?
Na sua interpretação das coisas, qual luz vitoriosa sobre todas as sombras, ele tinha razão, mas deixei as explicações para mais tarde. Limitei-me a abraçá-lo, ainda mais, qual manto protector de todos os males do mundo. 
Faz-me tão bem, este menino!
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