domingo, 29 de novembro de 2020

O SUSTENTÁVEL MUNDO DAS TEIAS

AC
.
.
Não gostava da ventania. Fazia-lhe lembrar tempos de intolerância em que nada estava seguro no seu lugar, como se cada confidência fosse presságio dos piores desígnios. Mas quando o vento amainava, entoando, em modo suave, uma discreta sinfonia nas copas das árvores, sentia vontade de ter asas. Era então que se deixava transportar, planando, escolhendo as melhores correntes, viajando quase sem bússola, até sentir a alma cheia.
Um dia sentiu vontade real de sair do seu nicho, acicatado na vontade de percorrer novas latitudes,  sobrevoar oceanos, conhecer novas gentes, degustar novos sabores. E, por entre a necessidade de registos, testes e vacinas, sentiu que, para continuar com âncora, tinha que se deixar envolver numa vasta teia. Foi então que, vencidos medos e preconceitos, se tornou fácil depurar a falácia do sorriso artificial, começando a abraçar a vida de forma espontânea,  fomentando  teias de cumplicidade, fosse onde fosse. No fundo, se pretendia abraçar a harmonia das coisas, estava cada vez mais convicto de que, para se ser, passava por aí o verdadeiro poder.
.
.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

POSTAL OUTONAL EM CONTRAMÃO

.
AC
.
.
Começavam a fechar-se as cortinas, anunciando o fim da temporada, mas havia actores que, chegando tarde à boca de cena, teimavam em contrariar o estipulado, reivindicando o direito a ser. Tudo parecia estar contra, com a envolvência de rostos a não esconder a contrariedade, mas eles não desistiam, implorando ao Sol que retardasse o rumo inclinatório.
Não há memórias, nem livros, que relatem a condescendência do Astro. Contudo, quase de forma imperceptível, o Sol, naquela tarde, demorou-se um pouco mais sobre os ramos da figueira. E os figos, apaziguados, acabaram por se render ao cerrar da cortina, enquanto tentavam dissimular o sorriso que lhes aquecia a alma.
.
.

 

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

MENINA DO MAR

 .
.
.
Corria a praia, manhã após manhã, à procura nem sabia bem do quê. Por vezes, quando as ondas vinham de mansinho, levantava a saia e deixava que a água lhe acariciasse as pernas, como que a manter viva a chama de algo que sentia, mas ainda não vislumbrava. E assim se deixava andar, praia fora, qual personagem de romance a quem estava destinado um papel de realce, à espera dum qualquer sinal.
O tempo ia passando, em manhãs repetidas, e de sinais apenas a satisfação da carícia das águas, do cheiro da maresia, da arquitectura do voo das gaivotas... Mas persistia, tecendo convicções mil, acreditando que os elementos acabariam por recompensar tanta devoção, tanto crer.
Hoje, quando alguém a vê passar, os mais velhos, moldados que estão na luta pela sobrevivência, já nem ligam. Os mais novos, porém, ávidos da abertura de novos portais, a princípio estranham, mas acabam por respirar os desafios lançados no ar. E, como que conduzidos por mão invisível, sentem-se impelidos a desvendar os desígnios daquela senhora, eterna Menina do Mar. E, embora lentamente, começam a redimensionar o seu navegar.
.

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

CASTANHAS COM JEROPIGA: O ELOGIO DAS COISAS SIMPLES

.
AC, Em busca dos tímidos ouriços
.
.
Passeavas, lentamente, no caminho que levava aos castanheiros, como que a querer absorver a despedida das folhas que enfeitavam o chão. 
Quando chegaste, um ou outro ouriço ainda se apegava à árvore, qual ave com receio do primeiro voo, mas a maioria fazia companhia às folhas, enriquecendo, com novas formas, o tapete que se ia formando.
Deste folga aos passos, enquanto te concentravas, sem a mordaça do tempo, no mosaico outonal. E, quase sem te dares conta, começaste a tecer considerações acerca dos espinhos, qual antecâmara antes de se aceder ao fruto, acabando por embalar na vereda que te sussurrava que, sem esforço, não há recompensa. Por momentos, se tivesses a viola por perto, ousarias dedilhar, de improviso, uma qualquer melodia. Mas não tinhas. Sem alardes, sentiste a canção em ti, sorriste, e começaste a apanhar as castanhas. Por perto, aproveitando um raio de sol, a passarada tecia loas à vida. Talvez a verdadeira canção.
À noite, numa roda de amigos, com as castanhas como fonte de partilha, embaladas em acordes de jeropiga, a canção possível acabou por surgir. Naquele momento, tão nosso, com um piscar de olho à vida, éramos nós a passarada.
.
.