terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

A HORA DAS MOURAS ENCANTADAS

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AC
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Já despertam as encantadas mouras, no desenhar da hora dos prodígios, reivindicando os passos (não) dados para a sua libertação. 
Quem tem o condão de as ouvir parece adivinhar, por entre os difusos sons espalhados pela brisa, uma dança sensual plena de arrebatamento. Mas, por mais que se esforcem, os cavaleiros dos sonhos parecem não acreditar, por demais incrédulos. 
Desesperadas pelo avançar da noite, em que a magia se tende a evaporar, as mouras cavalgam cada vez para mais longe, acompanhando o declinar do astro, qual demanda em vão dum gesto libertador. 
Por fim, cansadas, regressam à grande lapa e voltam a adormecer.
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quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

MEMÓRIAS COM GALO AO FUNDO

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Margarida Cepêda, Dueto para uma rosa
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Quando chegavas, à tardinha, os bosques pareciam transformar-se em sedutores labirintos, transfigurando-se, continuamente, em novas e refrescantes tonalidades. 
Para nós, lembras-te?, nunca havia nuvens. Mas, por mais que as houvesse, havia sempre sol, mesmo que se fizesse noite. E, juntos, cavalgávamos  em diáfanos corcéis, contornando as estrelas, como se a plenitude do universo estivesse ao nosso alcance.
Éramos jovens, eu sei, mas conseguíamos abraçar, no nosso sentir, tudo aquilo que abrangíamos. E mais não queríamos, eternos construtores do nosso paraíso, até que o galo, eterna sentinela de algo, nos despertava para a vontade dos outros. Nessa altura, com as estrelas já recolhidas, e de novo enredados na grande teia, os bosques tendiam a perder o seu encanto. Mas nem por isso perdíamos o brilhozinho nos olhos.
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terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

MARGARIDAS E SULFAMIDAS, ETERNA RIMA COM VIDAS

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AC, Margaridas
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Para quem pode, e capricha na necessidade de sentir, os campos já exultam de margaridas. Nada de mais para quem tem como exercício resplandecer o olhar, mas a cada ano que passa, e por mais que a Natureza transmude, há sempre algo que se insinua, qualquer coisa de novo que transparece. E a alma regista e alimenta-se, naturalmente.
Caminho por entre as ervas, muitas delas engalanadas com o cartão de alforria, feitas flores, enquanto ouço a música de acasalamento da pardalada - já? que se passa? - em ária quase monocórdica que reflecte uma única intenção. Bem andam eles, pardais, seres de natural linguagem.
Apesar do céu cinzento, a ameaçar chuva após dois dias de manifestação do poder solar, não resisto em caminhar por entre as frutícolas. As macieiras, as pereiras, as figueiras, as nogueiras e os marmeleiros, mais as nogueiras e os castanheiros, parecem não querer despertar do sono a que têm direito, mas as cerejeiras já parecem querer dar sinal de si, invejosas do damasqueiro e das amendoeiras, já em plena floração. Um pouco ao lado, e pouco tempo após o parto, as oliveiras ainda estão em pousio. Dos limoeiros e da laranjeiras falo em tom mais baixo, já que continuam em estado de observação após a investida da geada. Mas, aqui para nós, e reivindicando uma cumplicidade imune a citrinos, se é que ela existe, vislumbro por ali poucas hipóteses de sobrevivência. A não ser, como muitas vezes o faz, a Natureza me surpreenda.
Regresso à minha moderna caverna, não sem antes dum vislumbre final. As alvas margaridas, com um ou outro maior assomo, aqui e ali, assumem-se como autêntico oceano, deixando ressalvar pequenas ilhas, de couves e ervilhas, que só salientam ainda mais o seu encanto. E, de alma cheia, aguardo pela chegada do Whisky, habitual visitante deste pequeno paraíso, um quase residente que vem partilhar alguns dias connosco. Quem não deve ficar satisfeito é o gato,  candidato a domiciliado, que, durante a estadia do canídeo, não deve dar sinais de vida. Entretanto, e num afã próprio dos rituais familiares, sinónimo, no bom sentido, dos pequenos grandes prazeres, alguém chama por mim para dar início à degustação dum cozido a portuguesa, tradição de todos os carnavais. Com ou sem confinamento.
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sábado, 13 de fevereiro de 2021

DORES E LENITIVOS

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Foto de AC, Marmeleiro japonês
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Os dias passam, o efeito "bicho" vai-se acentuando, as saudações vão ficando para segundo plano. Sobrevive-se, em modo de espera, tal como um enclausurado anseia pela liberdade, enquanto milhares de famílias tentam sobreviver, recorrendo às poupanças, ou, quando as não há, a solidariedade dos outros é a única saída. Paralelamente, numa evidência pornográfica, há quem esteja a enriquecer com o mal dos outros.
Tento abstrair-me do mundo lá fora, cada vez mais em convulsão, e saio para me envolver nas pequenas lidas do terreno que me circunda, aproveitando a pausa soalheira. Os canteiros, esquecidos durante uns tempos, precisam de ser limpos, e é neles que concentro a minha atenção. Cavo, retiro as ervas daninhas, sempre pela raiz, que coloco no carrinho de mão, e aliso o terreno. Começo a sentir-me bem. Depois, sempre pausadamente, levo as ervas para a compostagem.
Um calorzinho agradável começa a insinuar-se no corpo, e não me fico por ali. Muno-me duma enxada, encho o carrinho de estrume, passo pelas ervilhas e pelas couves e começo a cavar em volta das árvores. Estrumo uma, duas, três, até me perder na singularidade de cada uma. A partir daí o número deixa de contar. E, de modo natural, acabo por me deter mais tempo naquelas que já florescem: o damasqueiro e as seis amendoeiras, como que a querer fazer companhia aos dois marmeleiros japoneses que, na área do jardim, se engalanaram  de rosa vivo, convidando alguns abelhões para a festa.
O sol continua a sorrir, a passarada não deixa de chilrear, o gato, na ausência do cão, espreguiça-se, languidamente, no topo dum muro. 
Perante o cenário, dou-me conta que a tranquilidade não é só exterior, ela habita-me por completo, apaziguando, ainda que por momentos, as dores dum mundo que não é só meu. É de todos.
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quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

FORA D'HORAS

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Foto de AC
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Ressaltam, duma revista, numa reportagem fora d'horas, como se não houvesse hoje nem amanhã, imagens de alguns destinos turísticos. 
Eles viajam, seja por onde for, mas sempre pelas bordas da interioridade. De concreto trazem fotos, postais, objectos, estórias quanto baste, emoções pagas por catálogo, mas nunca a alma dos sítios. Para isso, supremo desafio, seria necessário despir a roupagem da comodidade e, qual sacrilégio da cultura estabelecida, enfiar-se nas vestes locais, provar da seiva que alimenta aquelas paragens, sentir as expectativas de quem respira por ali. Mas há sempre uma tarifa a pagar, um avião para apanhar. 
Hoje, por aqui, o sol chegou a dar um ar da sua graça, mas logo a cor plúmbea se apoderou da paisagem, como que a dizer que, para festejar, terá sempre que haver um tempo de contenção, de recolhimento, para fermentação do que se avizinha. E há quem ore para que tudo decorra a contento.
Vou lá para fora. As aves recolhem-se, as árvores parecem silenciosas, podam-se as últimas videiras. Contudo, nas couves galegas, qual eterno milagre de vida, surgem algumas lagartas plenas de apetite, resultado duma desova de qualquer borboleta mais buliçosa, talvez propensa a contrariar os ciclos duma natureza em convulsão, em busca dum qualquer equilíbrio. E, na hora de recolher para o abrigo, não deixo de cogitar na enorme imprevisibilidade dos cenários que decorrem. Tempos danados, estes.
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sábado, 6 de fevereiro de 2021

MODERNA LENDA DAS AMENDOEIRAS

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Margarida Cepêda, Violino e chantili
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Confinada, ela espreitava. De súbito, em eterna miríade, reparou que as amendoeiras já esboçavam o desabrochar da flor.
Saiu, percorreu o caminho das promessas e, embora renegando a conjugação astral, deu de caras com ele. 
Esqueceu as conjecturas, sorriu, mas não prometeu. Limitou-se a ser flor.
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sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

DESENHAR RUMOS: MAL-ME-QUERES OU BEM-ME-QUERES?

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Margarida Cepêda, Ela, o violoncelo e as vagas
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Para o/a futuro/a dirigente com que todos ansiamos
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Quando as ondas pareciam tudo devastar, elevando a crista, saías do teu modo discreto e, perante o clamor, juntavas tudo à tua volta e começavas a contar uma história, a história da gente. 
O ritmo era pausado, mas melódico, como se, naquele momento, fosses o centro do mundo. E eras, embora não o quisesses.
As ondas, por fim, começaram a baixar, e, apesar do campo que se abria de fáceis promessas, nem assim baixaste a guarda. Embora preferisses refugiar-te na penumbra, continuaste a transportar a plateia pelos caminhos da serenidade possível, enquanto os cenários dramáticos se dissolviam nas vagas, cada vez mais frágeis.
Então, pressentindo a trégua das nuvens negras, pausavas ainda mais a voz, sorrias, e apelavas à reconstrução. E, como que por magia, quase todos te pareciam ouvir, imbuídos de esperança, apesar de saberem da efemeridade das coisas.
No dia seguinte, para  melhor perceberes o sentir da tua gente, começaste a receber, para as ouvir, algumas pessoas. E, para admiração de muitos, os primeiros foram os dissonantes. É que, daí o teu gesto, tu tinhas bem presente que, para seguirmos o rumo certo, não podemos pretender que todos entoem a pauta da vida a uma só voz.
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terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

ACERCA DAS CUMPLICIDADES

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Para o Carlos
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Procurava-se, sempre se procurou, mas, enquanto procurava descortinar o que o movia, e para onde se projectava, nunca deixou de olhar para os outros.  Talvez porque, no mais íntimo de si, soubesse que, sem cumplicidades, todo o esforço seria em vão.
Foi assim que nos conhecemos, sem amarras, numa encruzilhada de procuras. Conversámos, partilhámos músicas e livros, palmilhámos sete cantos. Sempre com a cumplicidade de permeio.
O tempo passou, os caminhos foram diversos, com encontros de permeio para partilharmos convicções, motores de novas construções, mas ficou para sempre a cumplicidade, tornada eterna amizade.
Ultimamente tem andado arredio, mas não por culpa própria. Para além da pandemia, bolso sem fundo para todas as desculpas, sou eu, demasiado ancorado na minha pretensa autonomia, que estou em falta, esquecendo, por vezes, o mais básico: a cumplicidade, longe de ser arrumada na estante como um bem adquirido, tem que, tal como o amor, ser bem tratada, bem cuidada, bem regada. Só assim os frutos serão perenes.
Seja como for, e para o que der e vier, tenho a certeza de que ambos sabemos cuidar do nosso jardim. 
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