quarta-feira, 28 de abril de 2021

NUVEM

.
AC, Nuvem
.
.
Dançavas, no final do dia, como se cada movimento fosse a perfeita ligação com aquilo que te rodeava. 
Para quem te observava tudo era natural, cada gesto era o prolongamento do teu respirar. E, enquanto comungavas o ar, era ver-te rodopiar, qual bailarina de mil tempos, com os segredos a escorrer em cada movimento. E a nós, comuns mortais, desde que munidos de humildade, apenas restava ver, sentir, fruir... E era tanto!
.
.

segunda-feira, 26 de abril de 2021

ROSMANINHO FOREVER

.
AC, Rosmaninho
.
.
Quando, ao fim da tarde, aproveitando a pausa da chuva, procuras vaguear nos teus pensamentos, em cenário a condizer, há sempre algo que te leva para junto dos rosmaninhos. Não sei qual a química que desperta em ti, nesses momentos, mas isso é o que menos interessa. Sei, sim, que te sinto empolgada na subtileza das cores e dos cheiros, ao ponto do teu rosto e da tua alma se transformarem, qual dádiva de luz, num imenso abraço àquilo que te rodeia.
Quando regressas, apenas um leve sorriso, com um discreto brilho quase indecifrável, só teu, denuncia a harmonia que te habita.
.
.

domingo, 25 de abril de 2021

QUANDO CEBOLAS RIMA (NÃO PARECE, POIS NÃO?) COM ABRIL

.
AC, Plantio de cebolas
.
.
Tem chovido abundantemente mas, por entre algumas abertas, os pés de cebola lá se plantaram. 
Depois do trabalho feito, com algum esforço, soube bem apreciar a obra, devidamente abençoada pela chuva. Momentos gratificantes.
Hoje, dia de mais um aniversário do 25 de Abril, espero bem que todos o sintam - cada um à sua maneira, pois é claro - e que ninguém se queira apropriar dele. É que, se lágrimas vierem, que sejam, no máximo, como as das cebolas, com a esperança a continuar a ter o fôlego suficiente para soprar para longe a desilusão. Embora os sonhos já estivessem melhor cuidados, todos o sabemos.
A propósito da data, permitam-me algumas palavras de há poucos anos atrás, nas quais, contra ventos e marés, quero continuar a acreditar:
.
Há uma luz que refulge, sulcando as trevas
Há um gesto que renasce, fazendo o dia
Há um canto que se ouve, quase em murmúrio
Há um despontar de vozes, quase melodia.
.
Aqui só para nós, e eu sei que também sabem, não é aquilo que os outros acham, é a nossa prática que faz Abril. Todos os dias.
.
.

terça-feira, 20 de abril de 2021

O INÍCIO DA HORTA

.
AC, O início da horta
.
.
O arquitecto universal promoveu mais uma volta e tudo recomeça, como se, de alguma forma, rodeados de entrelinhas, voltássemos todos à casa partida. E eis que nova vida brota da terra, ainda em modo incipiente, é certo, mas com o destino entregue ao tempo, que tudo desenha e tudo esclarece, nem que seja para confundir ainda mais. E tu, que só gostas do produto final, tardas em entender que o importante é a viagem, aconteça o que acontecer.
Ontem chamei-te para veres o andamento da horta, ainda com algumas plantas e sementes em espera, e, surpreendentemente, mostraste interesse. As alfaces ficam a meu cargo, sou eu que vou tomar conta delas, disseste. Eu sorri, juro que também senti os deuses fazerem o mesmo. Há lá coisa mais linda de se ouvir, depois de tanto porfiar!?
Mesmo em frente, a duas léguas de distância, os cerejais avançam até meia encosta da Gardunha. Logo a seguir, num verde novo que começa a povoar a paisagem, os castinçais despertam do seu torpor, conferindo majestade ao lado mais silvestre da serra.  Nunca me canso de olhar.
De repente lembro-me que os gurus da meteorologia prevêem chuva para amanhã. Há, pois, que preparar a terra para as curgetes, para as abóboras e para os melões, com as cebolas, os pimentos, os pepinos, as beringelas e as ervas aromáticas em lista de espera. Depois, se se concretizar a chuva, há que fruir o cheiro da terra molhada e, porque não, apreciar o cenário através da vidraça, com música a condizer. Em modo suave. Talvez, quem sabe, ainda sobre tempo para visitar os blogues amigos.
.
.

sexta-feira, 16 de abril de 2021

PARA UNS A DÚVIDA, PARA OUTROS A CERTEZA...

.
AC, Agonia dum laranjal
.
.
Foram p'ra cidade, em busca do movimento e da ventura, deixando sentinelas, habituadas a bons tratos, alheadas dos habituais carinhos. A terra pouco dava, compreenda-se, para além da sobrevivência. Era o país em que vivíamos.
Nem a ventura chegou, apesar do movimento, nem as sentinelas renovaram o uniforme. E, com toda a naturalidade, as ervas instalaram-se, rindo-se da desventura humana, enquanto os antigos cuidadores desesperam por aprender a nadar no cimento. Em vão.
Reivindicam-se equilíbrios, às vezes apelando ao saudosismo, em tertúlias académicas de gente com bolsa instituída, mas na prática são ingleses e alemães que, fugindo da selva do cimento, e investindo poupanças e algumas reformas, se vão instalando por aqui, ufanos duma vida ao ar livre, em comunhão com sons, odores e sabores muito próprios, sem as grilhetas duma formação espontânea dos acordes ditatoriais dum qualquer relógio. Fazem, porque sentem que têm que fazer. Não mais. E respiram, respiram como nunca.
Os antigos donos, entretanto, vêm uma vez por ano. E, para além dos sorrisos de circunstância, como que a querer cimentar o estatuto duma nova forma de vida, deixam sempre transparecer a dúvida, ainda que de forma inconsciente, ao depararem com a serena satisfação dos novos ocupantes. E se eu, em vez de...
Mas não, não há volta a dar-lhe. Estão demasiado aprisionados às aparências para tentarem algo de radical nas suas vidas. Entretanto, e não vá a porca torcer o rabo, os ingleses e os alemães continuam a apreciar o sol, por mais labutas que a terra exija.
.
.

sexta-feira, 9 de abril de 2021

INICIAÇÃO

.
AC, Encosta de Castelo Novo, Serra da Gardunha, bem "barbeada" pelos incêndios
.
O pai chamara-o, de véspera, e instruíra-o com ar sério, próprio das grandes ocasiões. Havia que ir à botica de Alpedrinha, com urgência, pois a avó precisava, sem falta, de um remédio. Ele não podia, que tinha um negócio por concluir na Soalheira, há muito combinado, mas confiava nele para o bom desempenho da missão. E assim se deitara, prenhe de responsabilidade, entregue a um sono inquieto.
Saíra de Castelo Novo ainda o galo não cantara, munido de curto farnel e duma cabaça com água do fontanário da antiga Câmara. Alheou-se do ladrar dos cães, sempre atentos a qualquer movimentação fora d'horas, e começou a contornar a serra, por entre fraguedos, num percurso prenhe de reentrâncias e desvios. O jeito que lhe dava agora o comboio, recentemente inaugurado pelo rei D. Carlos, para levar a missiva a bom porto - pensou, de si para si - mas passava longe, e além disso custava preciosos réis. Aquilo era para gente de posses, oh se era, e havia que dar às pernas, que apenas careciam da vontade do dono para pagar a passagem.
Caminhava com algum receio, em plena serra, mas tentava manter a firmeza. Não era agora, com uma missão de responsabilidade, só entregue a homens feitos, que ia dar parte de fraco. Mas, por mais que tentasse, as histórias do avô João e os zunzuns da vizinhança não saíam da cabeça daqueles doze anos incompletos. Andavam por ali lobos, dizia ele, e, quando eles se aproximavam, até os cabelos se punham em pé. E andavam mesmo.
Prosseguiu, sempre atento, e, quase sem se dar conta, de vez em quando levava as mãos à cabeça para se certificar que os cabelos continuavam no lugar. Estavam.  Por mais que caminhasse, sempre com mil cautelas, havia sempre mais uma dobra dum rochedo, igual a tantas outras, sem nunca se ter noção do caminho que faltava. Suava, suava muito, enquanto o coração batia de forma acelerada.
Quando, por fim, contornou a curva onde reinava um enorme castanheiro, de tronco carcomido, velha sentinela do tempo que passa - é do tempo de D. Dinis, costumava efabular o avô, ao serão - vislumbrou, lá ao fundo, as duas imponentes torres da igreja, que congregavam à sua volta o granítico casario da vila de Alpedrinha. Finalmente!
Os suores começaram a esvair-se, o coração moderou o andamento, tempo ideal para uma pausa.  Abriu a braguilha, dando vazão às necessidades do corpo, e sentiu que, à medida que a urina escorria, encosta abaixo, qual torrente libertadora, ainda não seria desta que os seus cabelos ficariam em pé. E lá prosseguiu, a fazer-se de homem, agora com outro ânimo.
.
.

terça-feira, 6 de abril de 2021

CONVERSA IMPROVÁVEL COM UMA CEREJEIRA

.
AC, Cerejeira com um niquinho de Estrela ao fundo
.
.
Tudo se prepara para a festa da renovação, tudo se começa a engalanar, com um aroma muito próprio, muito fresco, a perfumar o ar.
Tu, contudo, nem pareces a mesma de há uma semana atrás. Vais sorrindo, mas a cada dia que passa pareces mais contrafeita, como se algo de grave se passasse. Que se passa?
Olho para ti, reparo no viço das flores a desaparecer e então entendo a cusquice das duas andorinhas que, em dois fios do beiral, logo pela manhã, antes de iniciarem a azáfama costumeira, se deliciavam a falar daquilo que te envenenava a alma. Dá Deus cerejas a quem não tem dentes, pareciam concluir elas, com desdém. 
As andorinhas sabem da vida delas, tu sabes da tua, mas não evito pensar que tu gostarias que o apogeu das flores se mantivesse, que continuasses a ser admirada, que o palco a que te guindaram, por momentos, fosse eterno. 
Nem sei que te diga, não vá magoar-te. Fazes-me lembrar uma pessoa amiga que corre, desesperadamente, em busca das últimas novidades para se manter jovem - ela fala-me de algas, de massagens de pedras, eu sei lá... - e eu, enquanto a oiço, não deixo de sorrir. Ela não gosta que o faça, ainda não entendeu que as coisas, muito para lá de se possuírem, têm, acima de tudo, que se sentir. E, aqui para nós, diz-me lá: para além do decrépito da tua flor, não sentes algo de maior a eclodir dentro de ti? Repara bem, os frutos, as deliciosas cerejas que, daqui a um mês e meio, motivarão a cobiça de muitos, começam a despontar donde antes emergia a tua vaidade. Pensa e aguarda. Vais ver que, aquando rubras e bem docinhas, ninguém vai conseguir despegar o olhar de ti e dos teus frutos, derretido em cobiça. Num palco sem limites, essa será a tua verdadeira representação deste ciclo. E, podes crer, desde que bem cuidada, outros se seguirão, pela certa.
.
.