.
AC, Encosta de Castelo Novo, Serra da Gardunha, bem "barbeada" pelos incêndios
.
.
O pai chamara-o, de véspera, e instruíra-o com ar sério, próprio das grandes ocasiões. Havia que ir à botica de Alpedrinha, com urgência, pois a avó precisava, sem falta, de um remédio. Ele não podia, que tinha um negócio por concluir na Soalheira, há muito combinado, mas confiava nele para o bom desempenho da missão. E assim se deitara, prenhe de responsabilidade, entregue a um sono inquieto.
Saíra de Castelo Novo ainda o galo não cantara, munido de curto farnel e duma cabaça com água do fontanário da antiga Câmara. Alheou-se do ladrar dos cães, sempre atentos a qualquer movimentação fora d'horas, e começou a contornar a serra, por entre fraguedos, num percurso prenhe de reentrâncias e desvios. O jeito que lhe dava agora o comboio, recentemente inaugurado pelo rei D. Carlos, para levar a missiva a bom porto - pensou, de si para si - mas passava longe, e além disso custava preciosos réis. Aquilo era para gente de posses, oh se era, e havia que dar às pernas, que apenas careciam da vontade do dono para pagar a passagem.
Caminhava com algum receio, em plena serra, mas tentava manter a firmeza. Não era agora, com uma missão de responsabilidade, só entregue a homens feitos, que ia dar parte de fraco. Mas, por mais que tentasse, as histórias do avô João e os zunzuns da vizinhança não saíam da cabeça daqueles doze anos incompletos. Andavam por ali lobos, dizia ele, e, quando eles se aproximavam, até os cabelos se punham em pé. E andavam mesmo.
Prosseguiu, sempre atento, e, quase sem se dar conta, de vez em quando levava as mãos à cabeça para se certificar que os cabelos continuavam no lugar. Estavam. Por mais que caminhasse, sempre com mil cautelas, havia sempre mais uma dobra dum rochedo, igual a tantas outras, sem nunca se ter noção do caminho que faltava. Suava, suava muito, enquanto o coração batia de forma acelerada.
Quando, por fim, contornou a curva onde reinava um enorme castanheiro, de tronco carcomido, velha sentinela do tempo que passa - é do tempo de D. Dinis, costumava efabular o avô, ao serão - vislumbrou, lá ao fundo, as duas imponentes torres da igreja, que congregavam à sua volta o granítico casario da vila de Alpedrinha. Finalmente!
Os suores começaram a esvair-se, o coração moderou o andamento, tempo ideal para uma pausa. Abriu a braguilha, dando vazão às necessidades do corpo, e sentiu que, à medida que a urina escorria, encosta abaixo, qual torrente libertadora, ainda não seria desta que os seus cabelos ficariam em pé. E lá prosseguiu, a fazer-se de homem, agora com outro ânimo.
.
.