domingo, 11 de novembro de 2018

CRÓNICA TRANQUILA DE TARDE DE DOMINGO

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Fotografia de AC
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Na envolvência da casa, ladeada de árvores e arbustos, o festival de cor, à medida que os dias passam, tende a escurecer a riqueza de tons. É um fim de ciclo mas, em simultâneo, como que lembrando que os compartimentos da vida nunca são estanques, tudo se começa a preparar, sem pressas, para o fermentar dum novo desabrochar de vida, a eclodir daqui a alguns meses, quando o sol, magnânimo, se dispuser a voar mais alto, qual braço de ferro com a sombra em que ora agora mando eu, ora depois vences tu.
Chove lá fora, em abundância, numa melodia cerzida em tons fortes. A lareira, entretanto, já crepita, convidando ao recolhimento e à reflexão. Entra em cena um livro, uma música tranquila já se faz ouvir. Depois, lá mais para o fim da tarde, será a vez das castanhas sentirem o aconchego do lume. A jeropiga, para adoçar o prazer, já se encontra a postos.
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domingo, 4 de novembro de 2018

CONFESSIONÁRIO DO TEMPO

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Fotografia de AC
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Bates-me à porta, sem pedir licença, como se tudo estivesse acordado desde os primórdios. 
Vens bordar o apogeu das coisas, recordar que a beleza, para lá da interioridade, é definitivamente efémera. Concedes umas pausas, dizes tu, como que a alertar que a eternidade poderá existir num só olhar, desde que focado na essência das coisas. Esqueces, no entanto, que muita gente já nem sequer olha, apenas tenta sobreviver.
Teimas em bater-me à porta sem pedir licença, serás sempre bem-vindo. Mas, tempo, sabes, às vezes apetece-me escorraçar-te como se do pior vilão se tratasse. Bem sei que a culpa da cegueira que por aí grassa não é tua. Nós, humanos, eternamente rendidos à tentação do poder, é que temos a tendência, para não encarar as coisas de frente, a entregar as rédeas ao destino. Talvez seja defeito de fabrico, talvez seja medo da clareza e da lucidez, talvez seja apenas um ciclo, confesso que não sei. Sinto é que a ignorância e o medo tendem a caminhar, cada vez mais, de mãos dadas, abrindo caminho ao evento de monstros redentores.
Desculpa o desabafo, bem sei que a culpa não morreu solteira. Agora, já mais calmo, e se me permites, preciso respirar: vou tentar prosseguir o exercício de interiorizar a beleza, de forma natural,  que emana das pequenas coisas.
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sábado, 27 de outubro de 2018

GÉMEOS

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Nasceste, começaste a crescer. Tudo te parecia seduzir, tudo parecia ter o condão de te fazer cantar.
Continuaste a trepar, em tamanho e dimensão, e começaste a reparar que os obstáculos faziam parte da paisagem. Às vezes onde menos esperavas, que dois mais dois nem sempre são quatro, mas nada que te fizesse arrepiar caminho. Sentias que o mundo estava à tua espera, abraçá-lo era só uma questão de oportunidade. 
Às tantas começaste a interrogar-te. A princípio por conveniência, depois por condição, mas o certo é que começaste a reparar que as arquitecturas, as cores, os cheiros e os sentimentos, todas essas coisas que interferem com a vida, por vezes pareciam deslocados. E começaste a contestar, acreditando que a tua crença poderia fazer a diferença.
Mais à frente, depois dalgumas quedas no escuro, que hoje te fazem sorrir, sentiste que a contestação, para fazer sentido, carecia ser irmanada na visão de novos caminhos, em algo que contemplasse, não só a tua visão, mas a de todos. E começaste a pregar a tua verdade.
Procuraste cumplicidades, partilhaste angústias e utopias, despiste a camisa para mostrar o peito. A tua voz, mesmo à distância, parecia autêntica. Mas, por cada nova cumplicidade, multiplicavam-se os atropelos e as caneladas, vindas de frente e de trás.
Gritaste, rasgaste, vociferaste. Procuraste um porto de abrigo. Então, qual sentença de Salomão, sentiste repartir-te em duas partes. 
Uma seguiu a estrada dos contactos adquiridos, em proveito próprio, vendendo ilusões à multidão desgrenhada: não vai Maomé à montanha, vai a montanha a Maomé. A outra, mais resistente à dor, não abdicou do seu rumo: afastou-se da multidão, é verdade, mas apenas a uma distância prudente. Instalou-se numa quinta, bem munida de livros e de música, e começou a cultivar frutos vermelhos. 
De vez em quando entravam em contacto, a longa estrada percorrida ensinou-lhes que, por mais voltas que o mundo dê, é preciso estabelecer laços: um para escoar os produtos, o outro para maquilhar a imagem.
Reúnem-se, mensalmente, para partilhar a mesma pele. E, com os filhos em volta, em modo de sorriso, ficam sempre bem na fotografia.
Eles andam por aí, sempre andaram.
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sábado, 20 de outubro de 2018

LAIVOS DE OUTONO

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Fotografia de AC
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Tudo se repete, baixando a guarda,
Dobra o calendário outra vez.
Mas não há burro, não há albarda.
Algo deslumbra, cores em barda,
Como se da primeira vez.
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sábado, 13 de outubro de 2018

AS DORES DO CAMINHO

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AC, Serra da Estrela
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Começam a doer-me os pés de tanto caminhar, em constante insistir, sem ver fim à desdita.
À noite, se sinto frio, embrulho-me em nascentes e poentes utópicos, como se atiçasse as brasas para um café reconfortante. Mas os acordares anunciam, cada vez mais, um mundo plúmbeo. Por mais que caminhe.
De tanto caminhar, começa a doer-me o sorriso.
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domingo, 23 de setembro de 2018

VAGAS

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Margarida Cepêda, Ela, o violino e vagas

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Já pouco me interrogo, confesso, quando a onda galga o paredão.
Não somos deuses, somos meros aprendizes de feiticeiro. E, a cada descoberta, ficamos tão eufóricos que, para lá do manto tecido pela vaidade, nada nos é permitido ver. A humildade, condição fundamental de qualquer pretenso equilíbrio, tende a esvair-se, cada vez mais, como se fosse condição dos fracos. Galga a vaga de contabilizar, ganha a gargalhada de possuir. Eliminando, sempre.
Já pouco me interrogo, confesso, quando a onda galga o paredão. Já não leio livros, apenas me interessa o olhar das pessoas. Mas sofro, meu amor e, quase sem me dar conta, teimo em procurar a tua mão.
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sábado, 14 de julho de 2018

A DANÇA

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Vsevolod Shvayba
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Carregavam memórias ancestrais, guardadas em mil subterfúgios, como se da mais preciosa carga se tratasse. Sabiam o que a maior parte dos mortais não sabia, sobrevoavam as suas vidas, observavam as suas angústias, mas pouco ou nada lhes era permitido, a não ser deixar pequenos sinais: uma flor no sítio mais inusitado, uma moeda depositada numa gaveta, um raio de sol a ultrapassar o filtro das árvores... E seguiam, seguiam sempre, qual missão sem fim à vista, eterna tarefa em prol da harmonia.
Às vezes, cansadas do seu pedestal, eram tentadas a deter-se num qualquer pormenor do que observavam. E, qual porto de abrigo feito devaneio, assumiam as vestes  dum mero humano, como se as emoções fossem a maçã da tentação. Era só por momentos, pensavam. E, normalmente, era. Mas quando, por descuido, deixavam que as emoções lhes abraçassem o corpo e a alma, nada mais era como dantes. Talvez fosse por isso que, em pleno milheiral, quando o estio já findava, a tarde ficasse incendiada com uma luz que até tu própria desconhecias.
Partiste, tinhas que partir, na altura não sabia. Mas quando, nos longos finais de verão, as cotovias se elevam, nos céus, em busca da última luz, eu sei que a tua alma nunca chegou a partir.
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 Vsevolod Shvayba, A dance
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sábado, 16 de junho de 2018

INSPIRA, EXPIRA, INSPIRA...

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Fotografia de AC
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Manhã de sábado, de pretensa tranquilidade.
Toca a campainha. Não é o vizinho, não é o carteiro, não é um familiar. Apenas alguém, assumido portador da verdade, a querer conversar, como se a fé se vendesse porta a porta.
Retine o telefone. Não é o vizinho, não é um amigo. Apenas alguém, com entoação estudada, preocupado com a minha qualidade de vida.
Ligo o televisor. Verdade, verdadinha, todos os canais defendem, com maior ou menor subterfúgio, uma verdade: a de quem mais lhes paga, mas sempre em meu abono.
Vou lá para fora. Calço as botas, ponho o chapéu e irrompo pelo vasto terreno. Cruzo-me com pereiras, macieiras, nespereiras, cerejeiras. Olho para estas com um carinho especial, ou não fossem elas, no seu esplendor, fruto da enxertia de quem pouco ou nada sabe destas coisas, mas a quem sobra ousadia. Estão apetitosas, as cerejas!
Continuo de encontro às nespereiras, macieiras, oliveiras e amendoeiras, prossigo por rosmaninhos, papoilas, giestas, eu sei lá que mais. Isto para não falar de gafanhotos e formigas, borboletas e abelhas, de toda a espécie de plantas silvestres. Por mais que olhe, nada se me afigura querer chegar-se à frente, cada ser cinge-se ao seu lugar. 
A pausa, sempre a necessária pausa, com a visão a distender-se, lentamente, com ligação directa à alma. E, vá lá saber-se o porquê, às tantas dou por mim a tentar acompanhar, desajeitadamente, o concerto dum pintassilgo.
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P.S. - Domingo, cerca das 18 horas. 
Acabei há pouco de as colher. Vai uma? :)
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sábado, 9 de junho de 2018

A REFUGIADA

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Fotografias de AC
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Um dia, já lá vão uns anos - sete? oito? - alguém trouxe uma nova flor para o canteiro que ficava mesmo defronte à laranjeira. Chegou modesta, de roupagem discreta, de boas referências apenas o que se não via.
Recebeu-se bem o novo ser, em terra de habitantes bem definidos: recebia o mesmo quinhão de água, a mesma atenção, os mesmos cuidados de todos os outros.
O tempo, transformado em anos, foi passando. Todas as flores se engalanavam, na altura certa, todas cumpriam o ritual. Só a nova habitante, qual refugiada em terra alheia, teimava em não desabrochar, ficando-se pelas folhas, apesar de, ano após ano, enviar sinais de promessa. Todos os fevereiros se podavam as folhas mirradas, todas as primaveras ela prometia eclodir. Mas havia sempre uma pitada de geada, ou um vento frio, a inibir a sua emancipação.
A refugiada tornou-se residente, apesar do silêncio. Continuou a receber os mesmos cuidados, a mesma atenção, o mesmo quinhão de água que os outros habitantes do canteiro.
Ontem, apesar do verão adiado, a eterna refugiada assumiu, finalmente, o estatuto de residente. E foi vê-la, qual patinho feio, a transformar-se num belo cisne, irradiando a beleza que só a diversidade permite. Ainda se mostra tímida, desconfiada, mas o útero carregado promete, para os próximos tempos, um contínuo parto de beleza estonteante.
A estrelícia, apesar da saudade de latitudes mais meridionais, tornou-se uma habitante residente. E, com a sua afirmação, até as outras flores ganharam um novo esplendor.
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sábado, 2 de junho de 2018

O BILHETE

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Júlio olhava pela janela. Em frente, na pastelaria, algumas pessoas tomavam a bica ao balcão a olhar para o relógio. Na esplanada, indiferente à pressa geral, um casalinho gozava os raios de sol de um Verão tardio, enquanto deitava uns grãos de trigo a meia dúzia de pombos. Mais à direita, no jardim, viam-se alguns velhos, de sorriso apagado, a olhar para nenhures, como se as pessoas que por ali passavam, qual enxame de abelhas apressadas, nada lhes dissesse. Andavam quase todos na casa dos setenta e muitos, oitenta, e já pouco mais faziam que olhar para o escoar do tempo.
Às vezes Júlio abeirava-se deles e, com a sua presença, o pulsar do grupo alterava-se. Contava uma história engraçada de outros tempos, dizia duas ou três larachas, e o efeito era garantido: os sorrisos voltavam, por momentos, a introduzir-se naquela solidão mortiça.
Joana, a filha, fora visitá-lo um dia destes à hora do almoço, cinco minutos roubados ao seu correrio diário, antes de ir aquecer a comida, feita na véspera, que ela e o marido iriam engolir num ápice. Perguntou-lhe como é que se sentia, se tinha tomado os medicamentos, se precisava de alguma coisa. Depois, a propósito de nada, começou a falar do Sousa, amigo de sempre do pai, que estava há uns tempos no lar.
- Sabe com quem estive? Com a Dora, a filha do seu amigo Sousa. Está a viver no lar, e parece que o tratam lá muito bem.
Nem ele sabia outra coisa! Há dias, em conversa de banco de jardim, o João Pires falara-lhe do destino do Sousa. A notícia tocara-o e, sem dizer nada a ninguém, fora visitar o seu velho amigo ao lar. Quando o viu, arrependeu-se logo de lá ter ido. Estava sentado na varanda, sozinho, alheado de tudo o que o rodeava. Ainda lhe puxou pelo sorriso com uma ou outra graçola, mas o Sousa, que noutros tempos distribuía entusiasmo a rodos, mostrava-se indiferente a tudo. Parecia que apenas aguardava que chegasse a sua hora.
Joana estava, nitidamente, pouco à vontade a aflorar o assunto, e tentou dissimulá-lo com a intenção de lavar a pouca loiça do pequeno-almoço. Nem reparara que o pai já a tinha lavado, deixando-a apenas a escorrer no lava-loiças. Disse-lhe, então, que estava preocupada com ele, que não gostava de o ver sozinho. E se lhe acontecesse alguma coisa, quem o socorria? Gostaria muito de o levar para o andar onde vivia, mas as três assoalhadas já eram acanhadas para ela, o marido e os filhos. Na semana passada fora tirar umas informações da Casa de Repouso do Pinheiro, e gostara do que tinha apurado. Era um lugar onde tratavam as pessoas com toda a dignidade, o sítio ideal para ele.
Júlio não disse nada, apenas balbuciou um "está bem" quando a filha, à saída, o lembrou do almoço de domingo em casa dela. A conversa de Joana, no fundo, não o surpreendia, pois sabia que ela não tinha condições para o receber. Ela e o marido matavam-se a trabalhar, com um horário cada vez mais exigente, e o que recebiam mal dava para pagarem a prestação da casa. Houve uma altura em que pensou que talvez lhe arranjassem um cantito na sala para dormir, mas era ele a iludir-se com a possibilidade de acompanhar o crescimento dos netos, de os sentar nos joelhos enquanto os maravilhava com as aventuras do João Pequeno, história que o seu avô lhe contara vezes sem conta na sua meninice. Mas os tempos tinham mudado. Ao que sabia, os pequenos passavam o dia fechados no infantário, no meio de dezenas de outros reclusos, e só lhes concediam uma precária quando os pais os iam buscar no fim do trabalho. Mas pouco aproveitavam do seu quinhão de liberdade. Quando chegavam a casa, os pais colocavam-nos em frente da televisão enquanto faziam o jantar. Depois comiam e, passado pouco tempo, toca a deitar, que amanhã é preciso levantar cedo. E, no dia seguinte, num imutável ritual, lá iam todos para o mesmo ramerrame. Tinha pena deles, mas que poderia fazer? Raio de tempos, estes!
Depois da filha sair, Júlio ficou mergulhado num turbilhão de pensamentos inconsequentes. As suas palavras, embora não o apanhassem desprevenido, tocaram-no como nunca pensara. Começou a dar voltas à casa, tentando ordenar ideias, mas a sensação de aperto não saía do seu peito.
Foi então que tomou uma decisão. Ainda pegou numas roupas para colocar na mala que guardava no roupeiro, mas abandonou a ideia. Dirigiu-se para a cómoda e, com todo o cuidado, retirou um estojo do fundo de uma das gavetas. Abriu-o, delicadamente, e olhou para o colar que em tempos tinha comprado para Maria, a sua mulher, pequeno luxo a que se permitira para presentear a companheira de muitas vicissitudes e alegrias. Mas ela morrera, em penoso sofrimento, uns dias antes do aniversário, vítima de um cancro de mama tardiamente diagnosticado, e o colar para ali ficara guardado como uma relíquia.
Tomou banho, perfumou-se e vestiu o seu melhor fato. Depois, delicadamente, pegou no estojo, guardou-o no bolso interior do casaco e saiu de casa.
Desceu a avenida muito direito e compenetrado, como se estivesse a escolher os movimentos certos para não engelhar o fato. Mas, ao chegar junto da estação ferroviária, algo o fez vacilar. Parou, por instantes, e ensaiou um olhar para trás. Mas foi coisa de poucos segundos. Recompôs-se rapidamente e, de forma resoluta, abeirou-se da bilheteira:
- Um bilhete para longe, para muito longe!
Quando entrou na carruagem e descortinou o seu lugar, tirou o casaco e, com movimentos tranquilos, de quem sabe o que faz, sentou-se. Enquanto o ajeitava, cuidadosamente, sobre as pernas, a sua mão, num gesto quase inconsciente, procurou o contacto do estojo, como se da mais preciosa coisa se tratasse. Maria aguardava-o, não queria fazê-la esperar mais.

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Outubro de 2009
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sábado, 26 de maio de 2018

O MEU PEQUENO PARAÍSO

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AC, Rosmaninho
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Cheguei a casa cansado do algaraviar dos homens, da necessidade constante, alheia às aprendizagens, de colocar cuspo no nariz dos outros como forma de afirmação. Não, não vinha, tal como o Eugénio, com os olhos rasos de água, mas o semblante irradiava nuvens cinzentas.
Uma pequena pausa, o calçar das botas, o cirandar pelo espaço circundante, alquimia natural da essência dos milagres. Estava no meu pequeno paraíso.
Olhei de relance para a pequena horta. Depois, sem pressa, contornei as árvores de fruto, detendo-me, aqui e ali, com uma papoila mais exuberante, até sentir que, ao de leve, algo começava a fazer das minhas pernas um qualquer esboço de estrada. Eram formigas, incomodadas no eterno labor de encher o celeiro, enquanto duas ou três borboletas, indiferentes à ameaça da chuva, acariciavam, delicadamente, as ervas e as couves.
Quando cheguei junto dos rosmaninhos, vizinhos duma ou outra giesta, já as nuvens se começavam a desvanecer. Recordei o momento em que, há dias, na limpeza do terreno, não consegui cortá-los. São demasiado especiais, é impossível ficar imune à espiritualidade que inspiram. E por lá ficaram, pintalgando o terreno com a sua cor inconfundível. Olhei, absorvi o perfume. Sentia que, subtilmente, se abriam janelas dentro de mim. 
A passarada, até aí cautelosa, começou, de mansinho, a fazer-se ouvir, com as notas em crescendo como se o espaço fosse, verdadeiramente, seu. E era. Já de sorriso instalado, alheio a qualquer cinto de segurança, franqueei as portas à sinfonia e deixei-me embalar, qual tripulante duma qualquer nave em que tudo, ou quase tudo, parecia fazer sentido...
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sábado, 19 de maio de 2018

VELADAMENTE

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Margarida Cepêda, The three veiled ones and the revealed one
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Longos são os caminhos, diversas são as suas configurações.
Juramos, na casa Partida, manter-nos fiéis à matriz, em nome disto ou daquilo, que nos alegra ou entristece, mas ela, pois mais que nos debatamos, é condicionada pelo que se nos vai deparando, obrigando-nos a reformular, a cada instante, a percepção daquilo que nos rodeia. É a aprendizagem, pura e dura, em que de pouco nos valem as credenciais. Ou resistimos, ficando por ali, ou ousamos continuar, sujeitos a muitas tempestades, enfrentando os medos, com algumas bonanças a adoçar o percurso, mas sempre sem fim à vista. Uma coisa é certa: sem enfrentar os medos, ousar vencê-los, nunca sairemos do mesmo patamar.
Ontem perguntaste-me - tu, menina e moça - porque nem sempre tudo é calmo e sereno, como se o mundo devesse, por natureza, ser um lugar pacífico, apenas à espera que o fruissem. Não te respondi de imediato, afinal estás apenas no início duma longa etapa. Mas, sorrindo, acabei por te dizer que nada, mesmo nada, surge de mão beijada, que há um longo caminho a percorrer até podermos sentir, no mais fundo de nós, o sentido de recompensa.
Muito irás caminhar, menina e moça, até sentires que as coisas fazem sentido. Até lá, vive cada momento como se fosse único, em cada passo dá o que de melhor tens. Ri, indigna-te, chora, comove-te, cai, volta a rir, levanta-te, mas nunca te esqueças de estender a mão. Essa é a melhor prova de que o mundo, para seguir um novo rumo, está cansado das doutrinas de Maquiavel.
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sábado, 12 de maio de 2018

O BEIJO DA NUVEM

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AC, Beijo da nuvem
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Maio insinuou-se, sedutor, convocando tudo e todos para o habitual festival de cores e aromas. 
As espigas, a caminho da maioridade - ornamentadas, aqui e ali, com o alegre colorido das papoilas - ajudavam à festa de forma discreta, mas prometedora. Não queriam ocupar o palco, contentavam-se com a promessa, num farto Junho, de encher as arcas dos bastidores.
Por perto, nas orlas dos caminhos, as giestas vestiam-se de branco e amarelo. O rosmaninho, de místicas vestes, ajudava a compor a tela, enquanto, obedecendo a ancestral apelo, procurava apaziguar o infatigável labor das abelhas.
Os deuses, saindo do seu torpor, invejaram o quadro. E, não resistindo a deixar a sua marca, segredaram às nuvens para beijarem, delicadamente, a terra.
Chamei-te para veres, chamei-te para sentirmos. Estava na hora da mais natural das comunhões.
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domingo, 6 de maio de 2018

CRÓNICA DUM HOMEM SIMPLES

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AC
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Arredara-se dos homens, seres de mil faces, e acomodara-se numa pequena quinta abandonada. Mau negócio aos olhos dos outros, um pequeno paraíso, feito refúgio, no cintilar dos seus. Os filhos bem tentaram demovê-lo, mas nada feito. Era mesmo aquilo que ele queria.
Alberto limpou, cortou silvas, fez obras, rasgou a terra. Quanto mais fazia mais se ligava, mais jorrava, dentro dele, um sentimento de pertença.
Sentia-se grato a cada dia que passava, de alma aberta ao crescimento e ao definhar das plantas, ao distanciamento respeitoso da bicharada. Só os pardais, eternos senhores de qualquer lugar, pareciam indiferentes à sua presença.
Com o tempo foi descobrindo a magia dos enxertos, qual alquímica arte de multiplicação dos frutos. Tentou macieiras, cerejeiras, pessegueiros, pereiras, abrunheiros... Ganhou-lhe o jeito e, vá lá saber-se como, começou a ganhar prestígio nos seus vizinhos, que de vez em quando o convidavam para exercer o seu talento. Talvez fosse pelo reconhecimento da sua arte, talvez fosse pelo pretexto de saber mais daquele homem simples, de olhos brilhantes, que nunca se queixava fosse do que fosse. E isso intrigava-os. Alberto ajudava no que podia, tentava ser cortês, mas depressa regressava ao seu refúgio. Não era dado a grandes conversas.
Os filhos visitavam-no uma vez por ano, mas depressa se iam. Amarrados pelos compromissos de outras vidas, continuavam a não entender aquela espécie de felicidade do pai, cada vez mais entranhada.
Com o tempo começou a tentar enxertos de várias espécies na mesma árvore. De uma só qualidade era fácil, a questão residia quando tentava congregar várias espécies. Tentou, cogitou, voltou a tentar.
O tempo dum homem nesta vida é limitado, e Alberto bem o sabia. Tudo tem um rumo, um caminhar, e outros homens ocupariam o espaço dos que, entretanto, iam partindo, deixando um legado natural, por mais ínfimo. Sentia-o profundamente, a comunhão com a natureza assim lho ditava. Talvez, por o sentir de forma tão profunda e, em simultâneo, natural, nunca se inquietou com questões de vida ou de morte. Continuava a fazer o que achava que devia, que lhe dava satisfação, num permanente deslumbramento pelas manifestações da vida. Por vezes, alheio à noção do tempo, era capaz de ficar horas a observar um besouro na sua labuta diária, era capaz de se deslocar uma distância considerável só para saber onde um melro fazia ninho...
Um dia, no fim do Verão, também chegou a sua vez. Os filhos, depois do funeral, reuniram-se na casa da quinta, fazendo contas à vida, e só então repararam numa árvore, diferente de todas as outras, que dava ameixas, pêssegos, pêras, maçãs... 
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sábado, 28 de abril de 2018

SEGREDOS, MA NON TROPPO

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Fotografia de Gaja Maria
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Gosto de alguns segredos, das pistas que deixam, gosto das zonas quase sagradas onde depositamos aquilo que, de mais precioso, preservamos do impacto das maiorias. É uma forma de tentar respirar, em aparente estado puro, aquilo que de mais fundo se agita em nós, fórmula quase alquímica de preservação de preciosas fragilidades, indefesas perante o tacão dum qualquer uniforme.
Gosto de certos segredos, conspiração movida a verde-sol-violeta, das finas teias que tecem, onde a delicadeza de tons se esforça por dar a pincelada perfeita.
Ah, como me prendo a certos segredos, daqueles que estimulam aquilo que de melhor há em nós, à espera do momento certo para eclodir, eterna reserva de quem nunca se resigna, de quem nunca desiste...!
Move-me o eterno gosto de tentar, por mais que doa, o eterno gosto de respirar, o eterno gosto de viver.
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sábado, 21 de abril de 2018

TELA INCOMPLETA

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AC, Flor de cerejeira
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Todos os anos era assim. Descia o carreiro que levava ao cerejal e, no alvo manto, procurava a tua silhueta. Era o tempo em que te desenhava, esgueirando-me por entre o festim das abelhas, qual tela em que todas as pinceladas procuravam um rosto, continuamente reinventado, jorrando traços que transbordavam a encosta.
Agora, em demanda da harmonia, o pó do caminho segreda-me que ela é feita na filtragem de muitos rostos, de muitos gestos, de muitas vontades. E eu tendo a concordar. Mas hoje, ao descer o carreiro, dei por mim a reinventar-te, como se a tela permanecesse, eternamente, incompleta.
A reinvenção é tarefa perpétua, carente de ser continuamente alimentada. Ainda temos muito que caminhar, meu amor.
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sábado, 14 de abril de 2018

MENINA AIROSA, TEIMOSA, POR QUE TARDA EM TE BEIJAR A ROSA?

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AC, Locomotiva do Comboio Real
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Sempre foste menina airosa, senhora das tuas convicções, sempre foste de antes quebrar que torcer. Mas, sem te aperceberes, foste criando uma muralha nos outros, nos resignados, nos que tudo vêem em função do seu quintal. O teu voo, feito em jeito de “o rei vai nu”, inquieta a sua segurança, construída em areias movediças, despoletando a reacção mais básica: a intolerância. 
Nem sempre sabes por onde deves ir, mas tentas. A dignidade está em tentares. A incompreensão, no entanto, vai fazendo mossa, e quedas-te, por vezes, no recolhimento, incrédula por sentires que não há aplausos, dorida por sentires que, no silêncio que se faz, impera a terra queimada. 
Ouve, menina airosa. O ser humano é pleno de imperfeições, mas não gosta que lhe o digam de supetão. A sua imperfeição, para ser assumida, carece de ser regada de adjectivos aconchegantes, de palavras que o façam dormir, tranquilamente. 
Mas tu tens pressa, nunca gostaste de rodeios, sabes que há um mundo por desbravar, por entender. E, apesar de dorida, continuas a tentar derrubar o muro, muitas vezes não sabendo que, quanto mais tentas, mais pedras o muro vai acumulando. 
No final, menina airosa, qual mea culpa, vão-te abençoar. Deixaste um legado, pois deixaste, mas, na tua ausência, eles já sabem com o que contam. E dão-te, por fim, uma rosa.
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segunda-feira, 9 de abril de 2018

GRAAL

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AC, Ribeira
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Para onde vais, fio de água, sem vontade de parar? 
Vou em prol do meu desígnio, tenho pressa em chegar. 
E que ganhas tu, fio de água, com tanto calcorrear? 
No reflexo do meu esforço, todos temos a ganhar. 
Que mais desejas, fio de água, para conseguir serenar? 
Soubessem todos, como eu, ocupar o seu lugar.
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quarta-feira, 4 de abril de 2018

CICLOS

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Fotografia de AC
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Havia um tempo, sempre presente, em que as maravilhas estavam fechadas, como se tudo o que de mau acontecesse fosse questão intrínseca. Éramos encorajados a bater no peito, mea culpa, concentrando energias em elevado torpor, na esperança dum qualquer milagre à imagem de santas vidas. Éramos encorajados à redenção, deixando para segundo plano as injustiças do mundo. 
As amarras, contudo, apesar da severidade dos guardas, eram ténues perante o apelo natural do que se respirava lá fora. 
Um espreitar, um ousar, um pular. No início, qual vestir de pele dum recém-nascido, o impacto era violento, abissal: tudo fugia às regras, no comer e no rir, tudo parecia áspera terra, longe das linhas delineadas num qualquer gabinete avesso à luz. Depois, retiradas as névoas confessionais, o que nos rodeava - as pedras, as ervas, os rios, os pássaros, a água, as estrelas… - parecia ter uma linguagem própria, irmanada numa linguagem maior, muito maior, plena de harmonia. Tudo parecia saber, sem alardes, o seu exacto lugar. Insinuava-se uma outra configuração, apelava-se a um entendimento em que cada ser tentava construir a sua própria tela, contributo individual para uma interpretação maior. 
Mas nem todos. A maioria, escancarando as portas ao medo, tendia a estabelecer limites por tudo e por nada, impregnando a vida de rituais. Era a sua forma de se defenderem do que não entendiam. Nunca tinham saído do cativeiro, era nele que dormiam bem. E assim criaram a normalidade, plena de intolerâncias…
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Havia um tempo, sempre presente, em que as maravilhas estavam fechadas, como se tudo o que de mau acontecesse fosse questão intrínseca. Éramos encorajados a bater no peito, mea culpa, concentrando energias em elevado torpor, na esperança dum qualquer milagre à imagem de santas vidas. Éramos encorajados à redenção, deixando para segundo plano as injustiças do mundo. 
As amarras, contudo, apesar da severidade dos guardas, eram ténues perante o apelo natural do que se respirava lá fora. 
Um espreitar, um ousar, um pular. No início, qual vestir de pele dum recém-nascido, o impacto era violento, abissal: tudo fugia às regras, no comer e no rir, tudo parecia áspera terra, longe das linhas delineadas num qualquer gabinete avesso à luz. Depois, retiradas as névoas confessionais, o que nos rodeava - as pedras, as ervas, os rios, os pássaros, a água, as estrelas… - parecia ter uma linguagem própria, irmanada numa linguagem maior, muito maior, plena de harmonia. Tudo parecia saber, sem alardes, o seu exacto lugar. Insinuava-se uma outra configuração, apelava-se a um entendimento em que cada ser tentava construir a sua própria tela, contributo individual para uma interpretação maior. 
Mas nem todos. A maioria, escancarando as portas ao medo, tendia a estabelecer limites por tudo e por nada, impregnando a vida de rituais. Era a sua forma de se defenderem do que não entendiam. Nunca tinham saído do cativeiro, era nele que dormiam bem. E assim criaram a normalidade, plena de intolerâncias…
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Havia um tempo, sempre presente, em que as maravilhas estavam fechadas...
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sábado, 24 de março de 2018

O MOLEIRO, A AZENHA E O RIBEIRO

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AC, Azenha numa ribeira da Gardunha, Souto da Casa
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Havia um moleiro, uma azenha e um ribeiro.
Sabiam o seu lugar, o ano inteiro.
Que se passou?
O tempo mudou.
O moleiro emigrou.
A azenha parou.
O ribeiro minguou.
Havia um moleiro, uma azenha e um ribeiro.
Só ficaram memórias, o ano inteiro.
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sábado, 17 de março de 2018

A ILHA

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Fotografia de AC
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Ontem, lembras-te?, falavas-me do longe como se tivéssemos asas, enquanto, tranquilamente, bebíamos um Jameson à lareira. 
Dizes sempre as coisas a sorrir, faz parte de ti, num velho e renovado jogo de te descobrir, de nos descobrirmos. E eu gosto. Lá fora, onde a chuva teima em ser rainha, as amendoeiras começaram a perder a flor, mas os pessegueiros, de forma discreta, já se começam a enfeitar, delicadamente, num inconfundível subtil rosa. Só as cerejeiras, demasiado melindrosas, teimam em não desabrochar, exigindo, para sua apoteose, a indispensável luz solar.
Hoje, para contrapor, falei-te de poetas e de pintores de outrora, que viam nos mares do sul a viagem das suas vidas. Nada disseste, só os teus olhos sorriam. Levantaste-te, puseste mais um pau na lareira e escolheste outra música. Depois, com o sorriso a desenhar-se no rosto, olhaste-me bem de frente.
Nunca me canso de te descobrir, nunca nos cansamos de nos surpreender.
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sábado, 10 de março de 2018

O QUINTAL

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AC, Paisagem com Estrela ao fundo
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Os passos eram firmes, determinados, apesar duma constante espada, na sombra, a ameaçar travar a marcha. Talvez por isso. A vida, na sua essência, baseia-se no risco de ousar ir mais além, controlá-la está fora de questão. Há, pois, que depurar os empecilhos, contornar os profetas da desgraça, estar acima da filosofia dos donos dos quintais, especialistas em fronteiras.
De repente, qual convite irrecusável, insinua-se a pausa. O olhar alonga-se, planando na sensação de descoberta duma espécie de portal com ligação directa à alma, a configuração das coisas ganha outra dimensão. O tempo pára. Cada pormenor ganha vida, como que a dizer que tudo conta, sente-se o respirar do silêncio. Às tantas, apesar de apenas em esboço, insinua-se a dúvida: se eu estou, por que é que tu não estás?
Sim, eu sei que caminhar, muitas vezes, é descobrirmo-nos na solidão. Mas, podes crer, é nessa caminhada que se forja a cumplicidade mais pura. É disso que todos precisamos, é isso que todos nós procuramos. Apesar de, cada vez menos imunes a ruídos, continuarmos obcecados em ser donos de um qualquer quintal. Tudo por que queremos uma recompensa imediata, por mais ilusória.
Talvez, um dia, nos encontremos.
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sábado, 3 de março de 2018

FAZ DE CONTA

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AC, Campanário
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Já há muito que ninguém brincava no largo sobranceiro ao campanário. Os tempos de agora são de mil e um condicionamentos, com sete olhos a espreitar em cada esquina, mas naquela tarde, fosse lá por que fosse, duas crianças brincavam por ali. Talvez fossem irmãos, talvez fossem primos, não interessa. O certo é que, num tempo em que todos os passos duma criança tendem a ser condicionados em grande grupo, entre quatro paredes, com sequelas do lado de lá e de cá, ver por ali duas crias a brincar, em aparente harmonia com o cenário que as rodeava, não era normal.
- Eu sou um cavaleiro, montado num cavalo branco, e ali em cima é a minha torre.
- És um cavaleiro? Pois deves ser bem tonto, como aquele D. Quixote de que fala o tio. No alto da torre devem estar as princesas, prisioneiras da sua sorte, e os cavaleiros costumam aparecer de cavalo para as libertar.
O suposto cavaleiro pareceu acusar o remoque. Às tantas, como se algo agitasse as águas em que navegava o seu faz de conta, retorquiu, de sorriso a bailar:
- Rita, quando me pedes para te ajudar a fazer a cama, isso é para te libertar?
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sábado, 24 de fevereiro de 2018

ESPELHOS

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AC, Nevoeiro na Gardunha
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Naquela manhã, qual desafio dos deuses, a luz mostrava-se arredia. Talvez, em eterna dúvida, eles quisessem testar, pela milionésima vez, o material de que é feito um simples mortal, talvez quisessem aferir a convicção com que se enfrentam os desafios da vida.
Por entre a bruma tudo se configura, tudo é possível de desenhar. Não, não eram feras ou monstros que eu descortinava, dando vazão a ancestrais medos, como se a vida se jogasse na defensiva. A princípio, confesso, os passos eram hesitantes, qual cuidado a ter em visão limitada, mas depressa o pensamento se soltou. E, às tantas, liberto de fantasmas catalogados de ultrapassados, mas de que não se sabe a profundidade da raiz, comecei a desenhar-te na forma das copas, nos ramos que se soltavam, na etérea bruma que teimava em insinuar-se, vendo cor onde, aparentemente, pouca cor havia. Não, eu estava ali de corpo inteiro.
Sabes, naquela manhã dei comigo a ler-me, qual espelho multifacetado, em que todos os rostos vêm à tona. Gostei de me ver, gostei de te ver.
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sábado, 17 de fevereiro de 2018

A TOMADA DO CARVALHAL

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A memória remonta a 1890, passada de geração em geração nas gentes do Souto da Casa. Dizem as pessoas que, nessa época, de parcas posses, o sítio do Carvalhal, situado numa elevada quota da Gardunha, era repartido por três interesses: a família Garrett, uma das mais poderosas do distrito, explorava as pastagens; à Irmandade do Santíssimo cabiam as castanhas; ao povo do Souto da Casa, por sua vez, cabia o amanho da terra, que não ia além do cultivo do centeio, pois a altitude e a qualidade dos terrenos para mais não davam. Mitigavam a fome, mas pouco.
Diz o ditado que quem mais tem, mais quer. E a toda poderosa família Garrett, fermentando esta evidência, deu ordens ao seu feitor para que ocupasse todos os terrenos do Carvalhal, deixando de fora todo um povo que, na míngua, mendigava um naco de pão em zonas altas da serra, só acessíveis a muito caminhar.
O povo não se conteve. Os sinos tocaram a rebate e, após breve concílio, toda a gente se dirigiu para o Carvalhal. António Aquém, feitor dos Garrett, foi apanhado na intempérie e, como represália, foi obrigado  a transportar às costas, até à povoação, um pesado e grosso tronco de castanheiro.
Com maior ou menor pormenor - quem conta um conto acrescenta-lhe um conto - o episódio é mesmo real. E desde essa data, há 128 anos, o povo do Souto da Casa, para festejar o acontecimento, todos os anos se mobiliza para o sítio do Carvalhal, no primeiro dia a seguir ao Carnaval, com recheada merenda a tiracolo.
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Nos últimos anos, qual irmandade em constante renovação, muitas são as pessoas exteriores à terra que se associam aos festejos, identificando-se com o sentir daquele povo, que se auto-designa da "rama do castanheiro", ou seja,  de antes quebrar que torcer. 
Este ano, um grupo de pessoas de valores sólidos, que gosta de conviver e de partilhar, achou por bem convidar-me. E eu, eterno defensor da união das ilhas que tendem a habitar em nós, não podia dizer que não. O tempo estava pouco convidativo, muito encoberto - lá em cima o nevoeiro foi verdadeiro anfitrião, qual D. Sebastião a testar a crença das pessoas - mas lá fui eu, muito bem acompanhado, para me unir a festejos que, na sua essência, antecedem, em muito, o 25 de Abril.
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O espírito, lá em cima, é partilhar com quem apareça. No bornal, devidamente apetrechados, os meus anfitriões levavam ementa de estalo para dar vida na brasa, com a ajuda duma simples pitada de sal:  pedacinhos dum borrego escolhido criteriosamente e... tordos, apetitosos e deliciosos tordos. Mas havia mais: chouriças de várias proveniências, com incidência na zona raiana, um coelho de estalo, com um molho, preparado na hora, a condizer, e um feijão previamente cozido num forno a lenha. Para acompanhar, pouco de modesto: três tipos de vinho de diferentes proveniências. 
Ainda havia o arroz doce, o café de brasa - coloca-se uma brasa dentro do café, nem sabem o bom que fica! - um digestivo. E as pessoas a passar, a comunicar, a provar enquanto reforçavam os laços...
A seguir foi o meu grupo que cirandou pelas mesas adjacentes. E, por entre uma graçola e um sorriso, quase sempre de copo na mão, a tradição da Tomada do Carvalhal lá se ia cimentando, com os mais novos a fazer a sua própria festa.
De permeio, por entre o toque dos bombos, a pergunta/celebração:
- De quem é o Carvalhal?
A resposta, em uníssono, é sempre a mesma:
- É nosso!!!
No próximo ano, faça sol ou caia chuva, lá estarei para renovar os laços.
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sábado, 10 de fevereiro de 2018

OUSAR RECUSAR, OUSAR APRENDER A VOAR

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AC, Gardunha
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Olhei em volta. Havia uma constante resignação, que não dava, mas queria, que não sonhava, mas tolhia. 
Havia um constante matraquear, que não se ouvia, mas sentia. 
Que fazer?
Rompi para lá da névoa, descobri um poiso de aves e instalei-me nas proximidades. A pouco e pouco, sem ruído, comecei a aprender a voar.
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sábado, 3 de fevereiro de 2018

CONCÍLIO EM FINAL DE DIA

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AC, Concílio em final de dia
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Já se despede o Sol, num ligeiro aceno, tingindo o vale, sorridente, em depurada luz apelando ao etéreo.
O salgueiro, a poente, começa a albergar os arautos do final do dia, num breve concílio sobre a azáfama diária. Manifestam-se os pardais, num chiar constante, mas breve. Tal como chegam, assim partem, num apurado sentido prático. As cotovias, assumindo o papel de poéticas musas, elevam-se no ar, perseguindo os últimos raios de sol, como que não aceitando a partida da luz. E agitam as asas, freneticamente,  procurando chegar mais alto, tentando evitar o inevitável. Indiferente a toda esta agitação, o céu continua a ser sulcado, de forma persistente, pelo arar dos aviões, quase coabitando com as estrelas que se começam a insinuar, de forma ténue, enquanto a Lua, timidamente, marca o ponto.
Continuo a olhar, maravilhado, até sentir a tua mão no meu ombro. Está frio, eu sei, mas ambos sabemos que há um calor que emana, constantemente, do milagre da vida. É por isso que, apesar das intempéries, teimamos em continuar a sorrir.
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sábado, 27 de janeiro de 2018

A POUPA

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AC, Poupa: focada no alimento, desfocada na imagem
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É laboriosa, quase pontual, isto na perspectiva de quem observa. Depois de se instalar debica constantemente, em movimentos sincopados, conseguindo encontrar alimento onde mais ninguém o vê. Mas, para lá de tudo o mais, é esquiva, como que sentindo que a proximidade dos humanos não augura nada de bom. 
Resisto à tentação de lhe pôr um nome, isso seria sinónimo de propriedade. Que não é o caso. A poupa que frequenta o território, supostamente meu, não é de ninguém, ela tece o seu próprio destino. Quanto muito partilha o mesmo espaço, supremo privilégio, deixando dádivas que eu agradeço profundamente. É que a partilha tem a duração dum pequeno-almoço, tão só, daí esta refeição ter tendência a ser saboreada sem qualquer pressa, como se de um sagrado ritual se tratasse.
Nada sei da azáfama da poupa enquanto estou ausente, mas às vezes, quando regresso, ela ainda anda por aqui. Com o tempo, após várias tentativas, ela deixa-me aproximar, mas pouco. O voo, para longe, é o resultado mais provável. E então resguardo-me, na esperança de que a poupa regresse, mas não. Só no dia seguinte, bem cedo, ela retoma a sua azáfama de debicar, debicar constantemente, albergando alimento como se tivesse um rancho de filhotes à sua espera.
A poupinha, como aqui é tratada, à distância, tem o condão de dar vida às primeiras cores da manhã. Embora esquiva, como convém, ela já faz parte da saudável rotina familiar.
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domingo, 21 de janeiro de 2018

O LEVE DESPERTAR DO DRAGÃO

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Fotografia de AC
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Há um dragão que desperta, lentamente, tecendo hologramas de labaredas, como se quisesse avivar sinais de transcendência, que povoam, em leve torpor, a caixa negra de cada um. Mas é apenas por um momento, não mais, qual mensagem reservada aos mais atentos.
Ontem, quando passei por ti, caminhavas, convicta, de fato de treino e garrafa de água na mão, com os passos embalados na promessa de eternos dias. Não reparavas, contudo, no despertar do dragão. Estavas demasiado certa dos teus passos, traçados a régua e esquadro. No teu mundo não há lugar para dragões.
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domingo, 14 de janeiro de 2018

MADRUGADA

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Margarida Cepeda, Leves são os pássaros
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Sinto-te à distância, mas perto de mim.
O teu respirar é fonte abundante, ainda desconhecedor do manancial da nascente, mas que, enquanto trauteia, imitando os pássaros, cultiva a secreta ambição do conhecimento dos segredos.
Sinto-te o nascer da inquietação, tecida no mais fundo de ti. E isso perturba-me. Talvez porque deseje descobrir as aflições e as tempestades que se escondem sob o teu manto, ainda sem os suaves contornos do leito.
Mas a água jorra, fecunda. E, por ora, é quanto basta para dar cor ao anseio.
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Outubro de 2010
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sábado, 6 de janeiro de 2018

LEVES ROTINAS, PROFUNDOS SENTIRES

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Luís Portugal, Uma semente
(A gravação não é das melhores, mas o timbre de quem sente o que canta está lá. E é destas coisas que eu gosto, fora dos corredores de quem decide e faz opinião)
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Havia um vislumbre de esperança para cá da encumeada, como se, de repente, fazendo negaças ao nevoeiro, algo permitisse que a terra sorrisse para a semente. Talvez fossem meras tréguas, talvez ilusão, mas era quanto bastava. Ansiava-se, acima de tudo, por um sinal, dum raio que golpeasse o marasmo, dum qualquer movimento que mantivesse a chama viva.
De fora chegavam alertas, como se a angústia tivesse a mesma forma e conteúdo em qualquer lugar. Mas, apesar de agitados, os mensageiros não se mexiam. Lá no fundo aguardavam por algo redentor, como que apeados de qualquer decisão. Entregavam o seu desígnio à mercê do que viam, mas não entendiam.
Continuo, convicto, a acariciar a terra, num ritual que me alheia do passar do tempo. De vez em quando surge a pausa, o olhar em volta. Na zona inculta, mais além, os rosmaninhos, apesar dos resquícios da murcha flor, mantêm-se vivos, embora sem viço, como que ganhando ânimo para o desejado esplendor; a poupa, cliente habitual, sempre sensível ao mínimo movimento, teima em debicar onde parece que nada há; os pardais, sinónimo de omnipresença, parecem alheios a qualquer movimentação, fadados que estão para se sentirem livres em qualquer lugar; lá em cima, em atalaia permanente, uma ou outra ave de rapina, em elegante planar, tenta descortinar algo que valha a pena um mergulho.
Às tantas retiro-me, devagar, como se cada passo transportasse algo de precioso. Decorridos uns metros, poucos, insinua-se o ritual: volto-me, apoio-me na enxada e olho, satisfeito, para a terra remexida. Agradeço, mentalmente, a harmonia concedida e, sempre devagar, dirijo-me para casa. Estava na hora do banho, duma boa refeição, dum bom vinho. Depois, quem sabe, talvez a lareira me seduzisse para folhear um livro, ao som duma música calma.
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terça-feira, 2 de janeiro de 2018

A INQUEBRÁVEL LIGAÇÃO À TERRA

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AC, Carícia
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Sempre assim foi, tudo leva a crer que sempre assim será. Pelo menos até rebentarmos com este maravilhoso planeta, verdadeiro paraíso para quem gosta de sonhar, de se projectar, e que, apesar da incompreensão, continua a resistir ao nosso mau feitio, ou seja, à nossa incompetência. Mas poucos querem saber. Adiante.
Numa suposta douta sabedoria, baseada em egocentrismo,  gostamos de nos prover de confortos vários, renovados a cada passo. E, para garantirmos o estatuto, educamos os nossos filhos para serem empreendedores, inventores, opinadores, gestores, confessores, professores e outras cores, que na maioria das vezes rimam com dores e, uma vez por outra, com amores. Mas, renunciando às memórias, teimamos na mesma receita, sempre a mesma, aceitando de peito feito que o mundo está talhado apenas para os melhores. Predadores, está bom de ver. A outras visões, por inconvenientes, aplica-se o bullying social.
Em pausa lectiva - sou professor, entenda-se - de repente sou confrontado com uma disponibilidade de tempo pouco habitual. Que fazer com tal ventura? Em lista de espera há livros, viagens, reencontros com amigos, burocracias várias. Pouco tempo para uma agenda tão ambiciosa. Por entre  inadiáveis compromissos burocráticos, festejos e encontros familiares, que requerem muito estômago, um ou outro livro lá conseguiu subir à tona, em leitura aconchegada pela lareira, mas algo fazia falta. Lá fora o espaço piscava o olho, requerendo atenção: as sebes, obedecendo a leis naturais, tinham crescido; uma ou outra árvore ainda não tinha sido podada; alguns canteiros estavam a precisar de transplante de rosmaninhos; a terra precisava de ser cavada para a sementeira das ervilhas...
Um novo ano, a ganhar coragem no empolgar do estribilho, a necessidade de sempre de cuidar do que me rodeia. Havia, pois, que pegar nas ferramentas e, com delicadeza, prezar pela harmonia envolvente.
As sebes, apesar de atrevidas, podem esperar, que o cabelo não lhes vai para os olhos, mas a terra, ancestral ligação, requeria urgente atenção. E cavei, alisei, semeei, desencantando sorrisos muito próprios. Ela, a terra, não tem culpa que, em vésperas de regressar à escola, me doa o corpinho todo, pois andar horas e horas a plantar ervilhas de duas qualidades, sem pausas, não abona muito a meu favor. Mas só em princípio, porque a satisfação de andar por ali, em comunhão com a terra, por mais ores que suscitem, ninguém me a pode tirar. E, por mais que protestem as costas, continuo a sorrir.
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