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Hélio Cunha, Recife
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Já ia nos sessenta e muitos, o rosto curtido pela vida não enganava, mas o brilho dos olhos, quando se aproximava do mar, parecia contradizer os sinais.
A água, quando lhe tocava a única perna - a outra fora-lhe amputada - era a antecâmara da libertação. Entregava as muletas a um amigo e, ao pé-coxinho, procurava o abraço do mar, até ganhar a profundidade ansiada.
As primeiras braçadas eram sensação única, grito de desobrigação, até ultrapassar a barreira dos últimos banhistas. Passava dez, vinte metros, para lá da prudência colectiva, e era então que surgia o deleite. As braçadas eram poderosas, mas não era isso o que mais impressionava. Em todos os movimentos do corpo era visível o fruir da liberdade, da não dependência dos outros, o reencontro com a dignidade de se sentir homem.
Mantinha-se na água trinta, quarenta minutos. Na praia já se sentiam sinais de ansiedade no portador das muletas, e até gestos destes, de cumplicidade, requerem equilíbrio. O regresso à praia, o amparo da amizade, o retomar das muletas.
Amanhã será um novo dia. A liberdade, por vezes, tem que ser bebida em pequenas doses.
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