sábado, 31 de agosto de 2013

POSTAL ILUSTRADO DO TEMPO SEDUZIDO

.
Júlio Resende, Voo de aves
.
.
.

A ribeira serpenteava, por entre outeiros, apaziguando o canto das cigarras. 
Junto da velha azenha, rodeada de salgueiros, onde a água ensaiava uma lagoa, o canto da pequenada era plena celebração. Não havia amanhã, apenas o encanto contava.
Os deuses, na penumbra, sacudiam o tédio. Rendidos, afastavam para longe o lado breve do tempo.
.
.

domingo, 25 de agosto de 2013

APEADEIRO EM RECANTO SEM GPS

.
Hélio Cunha, Prazer silencioso
.
.
.
Viajou, respirou, ganhou asas. Apesar do aplauso, tecido em delicadas filigranas, sentia saudades das palavras que lhe faziam vibrar as teclas.
Regressou, um dia, envolta em novos odores. Soltou perfume, escudada em mantos diáfanos de nuvens, e ousou.
Sorriram. Ele sabia, ela sabia, mas mantiveram o piano a distância prudente.
Ela veio, mas não veio, apenas queria alimentar a saudade. E de novo partiu.
.
.

domingo, 18 de agosto de 2013

CRÓNICA ESTIVAL - LIBERDADE EM PEQUENAS DOSES

.
Hélio Cunha, Recife
.
.
.
Já ia nos sessenta e muitos, o rosto curtido pela vida não enganava, mas o brilho dos olhos, quando se aproximava do mar, parecia contradizer os sinais. 
A água, quando lhe tocava a única perna - a outra fora-lhe amputada - era a antecâmara da libertação. Entregava as muletas a um amigo e, ao pé-coxinho, procurava o abraço do mar, até ganhar a profundidade ansiada.
As primeiras braçadas eram sensação única, grito de desobrigação, até ultrapassar a barreira dos últimos banhistas. Passava dez, vinte metros, para lá da prudência colectiva, e era então que surgia o deleite. As braçadas eram poderosas, mas não era isso o que mais impressionava. Em todos os movimentos do corpo era visível o fruir da liberdade, da não dependência dos outros, o reencontro com a dignidade de se sentir homem.
Mantinha-se na água trinta, quarenta minutos. Na praia já se sentiam sinais de ansiedade no portador das muletas, e até gestos destes, de cumplicidade, requerem equilíbrio. O regresso à praia, o amparo da amizade, o retomar das muletas.
Amanhã será um novo dia. A liberdade, por vezes, tem que ser bebida em pequenas doses.
.
.