sábado, 25 de novembro de 2017

FAZ DE CONTA QUE SÃO LARANJAS

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AC, No meu quintal há laranjas
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Havia uma cegonha, um gato e um cão.
Não sei que lhes fiz, saíram-me da mão.
Havia um cão, uma cegonha e um gato.
Não sei que lhes fiz, perdi um sapato.
Havia um gato, um cão e uma cegonha.
Não sei que lhes fiz, fiquei com vergonha.
Havia uma cegonha, um gato e um cão.
Recriaram a história, viajaram de balão.
Havia um cão, uma cegonha e um gato.
Sentiram-se nus, no seu melhor fato.
Havia um gato, um cão e uma cegonha.
Choraram na mama, em jeito de ronha.
Havia uma cegonha, um gato e um cão.
Voaram bem alto, não queriam o chão.
Havia um cão, uma cegonha e um gato.
Quem faz a comida, se não há nada no prato?
Havia um gato, um cão e uma cegonha.
Perdi-lhes o rasto, que coisa enfadonha.
Havia um homem, uma cegonha, um gato e um cão.
Só perceberam a história, quando deram a mão.
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E as laranjas, que estão ali a fazer?
Fazem parte da história, mas não vou dizer. *
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* Afinal, vá lá saber-se o porquê, sempre digo. Aparentemente não tinha motivo para o post - raramente tenho, podem crer, antes de me sentar em frente do computador - mas, em período pós-almoço, com o olhar a soltar-se, reparei nas laranjas que cresciam lá fora, em território de suposta liberdade. Fui buscar a máquina, fotografei e, quando me preparava para escrever algo que abrangesse a imagem, as palavras, como que ganhando alforria, desviaram-se para outras paragens, mais consentâneas com um período em que o maravilhoso dita leis: a infância. Talvez, com esta breve explicação, as laranjas já possam sorrir. :)
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sábado, 18 de novembro de 2017

CUMPLICIDADES

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AC, Entardecer temperado com aviões
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Às vezes, em deambulação pelo mundo em busca de algo que ajude à compreensão da geometria das coisas - tarefa volúvel, quase inglória, como se fosse possível a abstracção do tempo presente - deparo comigo a observar a arquitectura das aves, das formigas, das abelhas, das plantas... Todas têm um tempo próprio para os rituais que as comandam, todas parecem cingir-se a um calendário que obedece, cegamente, às leis da luz e da água. 
Tu, contudo, teimas em harmonizar todas as minhas estações. Muitas vezes em pensamento, é verdade, mas a tua presença é contínua, como se a compreensão das coisas dependesse da nossa cumplicidade. E, nas tuas idas e vindas, levas sempre algo de nosso, trazes sempre algo para nos completar.
Às vezes, quando sinto necessidade de partilhar o meu deambular, limito-me a esperar pelo teu regresso. Ambos sabemos da complexidade das coisas, ambos sabemos que, para as simplificar, é necessário entendê-las, senti-las, num jogo de sedução que nos une cada vez mais. Com a cumplicidade a colmatar, com naturalidade, as pontas soltas que teimam em nos envolver, ambos conhecemos, por inteiro, as linhas com que teimamos tecer a casa que nos habita.
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sábado, 11 de novembro de 2017

COM QUANTAS VARAS SE TECE UM FEITICEIRO?

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Margarida Cepêda, Ela, o violino e as vagas
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Há um tempo de exaltação, amor primeiro,
há um tempo de decisão, embrião fagueiro,
há um tempo de enfrentar medos, de corpo inteiro,
há um tempo de solitárias preces, patamar cimeiro.
Afinal... com quantas varas se tece um feiticeiro?
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Os caracteres surgem um pouco maiores que o habitual a fim de tentarem acompanhar, ingloriamente, a dimensão da tela. Tão só.
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domingo, 5 de novembro de 2017

TCHUMA

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AC, Gravura rupestre (Barroca do Zêzere, Fundão)
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Tchuma, de pé naquela espécie de promontório, que irrompia cerca de dez braçadas nas águas do rio, olhava em volta. A caça tinha corrido bem aos homens. Alika, juntamente com outras mulheres do grupo, ocupava-se a raspar a gordura das peles com um biface. Lok e Kanut, a um canto, partiam pedras do rio, com precisão, para obterem algumas lascas afiadas. Estavam sempre a precisar delas. A garotada, mais abaixo, iniciava-se na pesca com uma espécie de arpão, uma simples vara com uma pedra afiada atada na ponta, soltando gritos de júbilo quando conseguiam apanhar um peixe. Os dias sorriam-lhes, sem dúvida. Naquele lugar havia muita caça, muita pesca e muitos frutos, poderiam ficar por ali algum tempo. 
Tchuma fixou-se nas águas, naquele abismo que, em simultâneo, atraía e atemorizava. Gostava de estar ali, mas sabia que, com o passar dos dias, a caça iria para longe. Embalado no som da água a correr, pôs-se de cócoras e, puxando do buril, começou a picotar a rocha, dando forma à gravura dum cavalo. Talvez, quem sabe, fosse uma forma de, quando partissem, ali continuassem a viver.
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