sábado, 28 de fevereiro de 2015

A CONSTRUTORA DE MEMÓRIAS

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Margarida Cepêda, Solo mineral para violino
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Fora educada no esforço, na abnegação, a recompensa acabaria por dar à costa. Lutou, desesperou das cunhas dos outros, mas insistiu, insistiu sempre. Nunca se dava por vencida. Pouco a pouco, contra ventos e marés, fora marcando pontos, o sucesso, qual tela em permanente ebulição, começara a ganhar contornos.
O transpor das metas, no início, era pura adrenalina, mas, às tantas, deu-se conta do labirinto. Uma meta nunca era um final, era sempre um início. De outra corrida, de outra meta. E assim se consumiam os dias.
Num dia de chuva, em luta contra o destino, deixou para trás a aura de sucesso, que lhe ofuscava a noção do tempo, e lançou-se à estrada. Na bagagem, para além de "Memórias de Adriano", que nunca acabara de ler, transportava a memória do verdejante vale onde passava, em pequena, as férias com os avós. Não se sentia completamente segura da sua opção, mas agir estava-lhe no sangue. E, no mais fundo de si, acreditava. 
A certa altura deixou a auto-estrada e embrenhou-se na velha estrada nacional, agora quase sem trânsito, memória serpenteante da sua meninice. Abrandou a marcha, abriu o vidro e, enquanto conduzia, deixou-se absorver pela afável presença de pinheiros, carvalhos e castanheiros. Quando chegou ao alto da Portela, porta fronteiriça do mágico vale, parou o carro. Saiu, devagar, dando lastro a um acto cerimonial que a transcendia, e  deixou que olhos e alma se irmanassem, em perfeita sintonia, perdendo-se no deleite da redescoberta. Ao fundo, eterno gigante adormecido talhado em granito, a Estrela enquadrava uma enorme tela sarapintada de árvores, casario e terrenos de cultivo. Começou a procurar a velha casa de granito, que mandara recuperar, não muito longe do rio que recolhia as águas das duas serras. Lá estava ela, minúsculo ponto que iria ser o epicentro da sua vida. À esquerda, aproveitando um ligeiro declive apontado ao sol, iria plantar vinha. À direita, perto do ribeiro que ia desembocar, um pouco mais à frente, no grande rio, parecia ser o local certo para as estufas de framboesas e mirtilos. E ainda havia planos para um olival, para além duma pequena horta...
Regressou ao carro e começou a descer em direcção ao vale. Os castinçais davam agora lugar a milhares e milhares de cerejeiras, prenhes dum delicado branco que em breve iria pintar a encosta. Uma ou outra mimosa, já em flor, dava-lhe as boas-vindas. 
Era impossível não sorrir. Em território de gratas memórias, a apelar à renovação, as de Adriano, pelos vistos, teriam que continuar a aguardar.
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sábado, 14 de fevereiro de 2015

TEIMAR SER, TEIMAR NÃO SER

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Fotografia de AC
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No labirinto dos homens, por mais que se vislumbre, ficam sempre pontas soltas a zombar na palma da mão.
O poeta, na percepção dos dias, dá conta da luz e da sombra na envolvência das pedras, do respirar das árvores, dos caminhos que levam à grande casa do rio, do imenso oceano aglutinador, pacientes anfitriões na busca da relação do justo equilíbrio.
O homem, enquanto marcha, teima em provocar o choro, castrando a poesia que da sua alma emana.
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sábado, 7 de fevereiro de 2015

ETERNAS PARTIDAS, PROFUNDAS MÁGOAS

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Fotografia de AC
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O ninho, rodeado de áridos fraguedos, onde sorria a urze e a giesta, era aspergido no convívio dos deuses naturais com o temor ao supremo. Do filtro da amálgama, forjada no mais profundo da montanha, resultou o compromisso, a honra, a dignidade. Mas o pão, condição fulcral, ia para lá do fermentar das pedras. Havia que procurá-lo longe, quase sem bússola, à mercê do que o diabo amassou.
Deixou para trás as despedidas, as teias de aranha da escola e dos correios, a fábrica de queijos sem vivalma, o largo onde se juntavam os velhos para o último sol. Doía.
No terminal de autocarros, ladeado pelas malas, guardava as mágoas enquanto aguardava as horas. Da pequena TV, quase sem som, emergiu a cara séria dum político, em pose estudada, a louvar os novos caminhos. Ouvia-se mal, mas quase jurava que o ouvira dizer que estávamos a dar uma lição ao mundo. Filho da puta!
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