quinta-feira, 31 de março de 2022

POR MORRER UMA DOURADA, NÃO ACABA A ANDORINHA

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Pegou no saco de carvão vegetal e, com os devidos cuidados, abasteceu o grelhador. Aplainou o nível da negra substância, colocou a grelha  cerca de 30 cm acima do carvão e colocou os pedaços maiores do carburante por cima da grelha. Depois, socorrendo-se da lenha miúda que fora acumulando no outono anterior, dispôs os gravetos por cima do carvão. Acendeu duas pinhas, colocou-as em locais estratégicos no meio da lenha e aguardou que a combustão se desenvolvesse, qual desígnio com fim bem controlado.
Saciado o apetite voraz do lume, com desenhos incandescentes, sempre em fase crescente, a querer dar mostras de gente crescida, às tantas, com o carvão na parte superior da grelha já a crepitar, era hora de envolver a camada superior com a inferior, qual rasgo de homogeneidade, não fosse o diabo tecê-las. E assim se misturou o carvão elevado na superfície da grelha com a arraia miúda do purgatório, qual inferno sem Dante. Mas, dou-me conta, há quem cante, nem que seja eu, com muitos sorrisos de permeio.
Com o lume estabilizado, era hora de colocar as douradas (da Madeira, dizia o folheto) na grelha. E o grelhado, com a bênção de cinco paredes, ficou mesmo a preceito, com o manuseador a usufruir da bênção da ausência da sexta parede.
Quando levou as douradas para a mesa, com o azeite e o vinho da região já a postos, do fogão tinham acabado de sair alguns legumes cozidos a preceito, não fosse a ocasião arrefecer. Tudo a combinar, tudo em harmonia, tudo em prol da compreensão e do usufruto da vida.
Através da vidraça, enquanto se degustava, viam-se duas andorinhas pousadas no estendal da roupa, muito compenetradas, pondo a conversa em dia. Não falavam das douradas, tenho a certeza. O desdém pelo meu contentamento era compreensível, elas tinham muita roupa para lavar. :)
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terça-feira, 15 de março de 2022

A HORA DOS PEQUENOS MILAGRES

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AC
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Às vezes, quando os deuses se recostavam, enfastiados, cansados dos seus jogos de ciúmes e de guerra, ela esgueirava-se por entre os salgueiros do ribeiro e subia a encosta do pequeno promontório, onde a copa das grandes árvores envolvia a casa sedenta de vida.
Trazia com ela, não um regaço de abundantes rosas, mas um brilho no olhar pleno de promessas e anseios, com cheiro a trigo maduro. Era então que aconteciam os pequenos milagres.
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sábado, 5 de março de 2022

QUANDO OS DIABOS SE SOLTAM

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Hieronymus Bosch, Extracção da pedra da loucura
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Sentou-se em frente da prancha e, pacientemente, esperou que as nuvens que transportava se tornassem gotículas. E elas, paulatinamente, iniciaram o seu bailado, contrariando a gravidade, subindo e descendo, por vezes planando. Havia que agarrar a onda.
Começou a desenhar, freneticamente, o que lhe assomava da alma, qual tempestade cerebral com emergência de emergir. Procurava acudir a todos os focos, a todos os assomos, mas era humanamente impossível. E acabou por ficar um respingo duma ideia aqui, um rabisco duma ideia ali, com muito em branco por preencher. Resolveu adiar.
No dia seguinte voltou a tentar, mas o fundo em branco persistia, dando asas ao desalento. Foi então que, pela janela entreaberta, uma abelha se fez anunciar, esvoaçando pela sala, aparentemente sem rumo. Sobrevoou a prancha, poisou no cortinado e, por fim, após algum atabalhoamento, lá se esgueirou para o exterior, saindo por onde entrara. Num gesto repentino, sentindo a ideia no ar, pegou no lápis, pronto para mais um discorrer com ele próprio. Mas, de súbito, rompendo o código estabelecido, a Inês invade a sala, com ar apreensivo, balbuciando um porra entre dentes:
- Zé! A Rússia invadiu a terra da Yaryna!
Foi-se o esboço da inspiração. E ambos, ainda atordoados pela perplexidade, sentiram uma nova onda a surgir, plena de diabos. O Zé rebuscou, à pressa, qualquer tipo de comparação, e mergulhou nas ondas forjadas pelo canhão da Nazaré, aqui mesmo à mão. Mas estas, pela sua insignificância, nem sequer figuravam no mapa das coisas importantes. A nova onda seria indomável?
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terça-feira, 1 de março de 2022

ELA

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Margarida Cepêda, Tudo em nós é o ponto em que estamos
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Ela disse que sim, ele não.
Ela quis cavalgar as nuvens, ele não.
Ela comprou um bilhete de ida, ele não.
Ela ousou, lutou e descobriu, ele não.
Ela riu e chorou, ele ficou a ver.
Ela viveu, ele continua a tentar dar-lhe vida.
Ela permanece, ele não.
Ela sorri, ele (na sombra, olhando para ela) também.
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