domingo, 29 de agosto de 2010

MULHER CORAGEM

.Patrícia Moreira, Vitória da Conquista

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A doença surgiu, silenciosa. Para alguém que luta.
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Trazias o entusiasmo
Dos sonhos por concretizar
Alimentado
Em berço protegido
Mostravas o teu querer
Indomável
Na firmeza do olhar
Com que fitavas
Desafiadora
A areia da engrenagem
Cuidavas das crias
Espaço crucial
Com o saber dos argutos
Condimentado
Em taças de ternura
Lidavas com os amigos
Espaço de partilha
Como porto de abrigo
Apaziguador
Imune à amargura
Olhavas para a vida
Espaço realizador
Como terreno a conquistar
Com ardor
Em luta sempre dura
Enfrentas o infortúnio
Espaço regenerador
De descoberta
Duma tela descomunal
Onde os amigos
De mão dada
Semeiam os acordes
Indestrutíveis
Duma vitória anunciada.
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quinta-feira, 26 de agosto de 2010

O BILHETE

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Júlio olhava pela janela. Em frente, na pastelaria, algumas pessoas tomavam a bica ao balcão a olhar para o relógio. Na esplanada, indiferente à pressa geral, um casalinho gozava os raios de sol de um Verão tardio, enquanto deitava uns grãos de trigo a meia dúzia de pombos. Mais à direita, no jardim, viam-se alguns velhos, de sorriso apagado, a olhar para nenhures, como se as pessoas que por ali passavam, qual enxame de abelhas apressadas, nada lhes dissesse. Andavam quase todos na casa dos setenta e tais, oitenta, e já pouco mais faziam que olhar para o escoar do tempo.
Às vezes Júlio abeirava-se deles e, com a sua presença, o pulsar do grupo alterava-se. Contava uma história engraçada de outros tempos, dizia duas ou três larachas, e o efeito era garantido: os sorrisos voltavam, por momentos, a introduzir-se naquela solidão mortiça.
Joana, a filha, fora visitá-lo um dia destes à hora do almoço, cinco minutos roubados ao seu correrio diário, antes de ir preparar a comida que ela e o marido iriam engolir num ápice. Perguntou-lhe como é que se sentia, se tinha tomado os medicamentos, se precisava de alguma coisa. Depois, a propósito de nada, começou a falar do Sousa, amigo de sempre do pai, que estava há uns tempos no lar.
- Sabe com quem estive? Com a Dora, a filha do seu amigo Sousa. Está a viver no lar, e parece que o tratam lá muito bem.
Nem ele sabia outra coisa! Há dias, em conversa de banco de jardim, o João Pires falara-lhe do destino do Sousa. A notícia tocara-o e, sem dizer nada a ninguém, fora visitar o seu velho amigo ao lar. Quando o viu, arrependeu-se logo de lá ter ido. Estava sentado na varanda, sozinho, completamente alheado de tudo o que o rodeava. Ainda lhe puxou pelo sorriso com uma ou outra graçola, mas o Sousa, que noutros tempos distribuíra entusiasmo a rodos, mostrava-se indiferente a tudo. Parecia que apenas aguardava que chegasse a sua hora.
Joana estava, nitidamente, pouco à vontade a aflorar o assunto, e tentou dissimulá-lo começando a lavar a pouca loiça do pequeno-almoço. Nem reparou que o pai já a tinha lavado, deixando-a apenas a escorrer no lava-loiças. Então disse-lhe que estava preocupada com ele, que não gostava de o ver sozinho. E se lhe acontecesse alguma coisa, quem o socorria? Gostaria muito de o levar para o andar onde vivia, mas as três assoalhadas já eram acanhadas para ela, o marido e os filhos. Na semana passada fora tirar umas informações da Casa de Repouso do Pinheiro, e gostara do que tinha apurado. Era um lugar onde tratavam as pessoas com toda a dignidade, o sítio ideal para ele.
Júlio não disse nada, apenas balbuciou um "está bem" quando a filha, à saída, o lembrou do almoço de domingo em casa dela. A conversa de Joana, no fundo, não o surpreendia, pois sabia que ela não tinha condições para o receber. Ela e o marido matavam-se a trabalhar, com um horário cada vez mais exigente, e o que recebiam mal dava para pagarem a prestação da casa. Houve uma altura em que pensou que talvez lhe arranjassem um cantito na sala para dormir, mas era ele a iludir-se com a possibilidade de acompanhar o crescimento dos netos, de os sentar nos joelhos enquanto os maravilhava com as aventuras do João Pequeno, história que o seu avô lhe contara vezes sem conta na sua meninice. Mas os tempos tinham mudado. Ao que sabia, os pequenos passavam o dia fechados no infantário, no meio de dezenas de outros reclusos, e só lhes concediam uma precária quando os pais os iam buscar no fim do trabalho. Mas pouco aproveitavam do seu quinhão de liberdade. Quando chegavam a casa, os pais colocavam-nos em frente da televisão enquanto faziam o jantar. Depois comiam e, passado pouco tempo, toca a deitar, que amanhã é preciso levantar cedo. E no dia seguinte, num ritual sempre igual, lá iam todos para o mesmo ramerrame. Tinha pena deles, mas que poderia fazer? Raio de tempos, estes!
Depois da filha sair Júlio ficou mergulhado num turbilhão de pensamentos inconsequentes. As suas palavras, embora não o apanhassem desprevenido, tocaram-no como nunca pensara. Começou a dar voltas à casa, tentando ordenar ideias, mas a sensação de aperto não saía do seu peito.
Foi então que tomou uma decisão. Ainda pegou numas roupas para colocar na mala que guardava no roupeiro, mas abandonou a ideia. Dirigiu-se para a cómoda e, com todo o cuidado, retirou um estojo do fundo de uma das gavetas. Abriu-o, delicadamente, e olhou para o colar que em tempos tinha comprado para Maria, a sua mulher, pequeno luxo a que se permitira para presentear a companheira de muitas vicissitudes e alegrias. Mas ela morrera, em penoso sofrimento, uns dias antes do aniversário, vítima de um cancro de mama tardiamente diagnosticado, e o colar para ali ficara guardado como uma relíquia.
Tomou banho, perfumou-se e vestiu o seu melhor fato. Depois, delicadamente, pegou no estojo, guardou-o no bolso interior do casaco e saiu de casa.
Desceu a avenida muito direito e compenetrado, como se estivesse a escolher os movimentos certos para não engelhar o fato. Mas, ao chegar junto da estação ferroviária, algo o fez vacilar. Parou, por instantes, e ensaiou um olhar para trás. Mas foi coisa de poucos segundos. Recompôs-se rapidamente e, de forma resoluta, abeirou-se da bilheteira:
- Um bilhete para longe, para muito longe!
Quando entrou na carruagem tirou o casaco e sentou-se. Enquanto o ajeitava, cuidadosamente, sobre as pernas, levou a mão mais uma vez ao estojo, como se para se certificar que continuava no mesmo lugar. Maria aguardava-o, e não queria fazê-la esperar mais.
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reedição
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segunda-feira, 23 de agosto de 2010

EFÉMERO

.Imagem encontrada na Net (desconheço o autor)
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A seara ondulava
Sensual
E as papoilas
Efémeras
Adornavam o cenário
Que embalava
O voar das borboletas
Assim eras tu
Em Maio
Na frescura dos caminhos
Radiante
Com o mundo a teus pés
Gostavas do teu brilho
E embriagavas-te
Na imagem do espelho
Que enfeitavas
Com as cores
Duma eterna primavera
Esqueceste os aromas da terra
E não viste que os deuses
Despreocupados
Em olímpico tédio
Jogavam o teu destino
Em jogo de dados
Dedilhado
Em acordes chorados
O espelho fragmentou-se
E não percebeste
A sensação de frio
Nos caminhos que te levaram
À solidão
Dum palco vazio.
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sexta-feira, 20 de agosto de 2010

A MORTE ANUNCIADA

.Fotografia de João Sargo
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Sentado em frente ao lume, Felismino ouvia o silêncio. Do curral vinha o eco quase imperceptível de meia dúzia de cabras que, para além da companhia, proporcionavam ao velho o leite necessário para fazer um ou outro queijo.
Às vezes sentia a falta de dois dedos de conversa, mas habituara-se à solidão dos montes e à companhia dos animais. Os últimos habitantes da aldeia tinham partido ia já para cinco anos, e desde então vivia ali sozinho. Queriam à viva força que fosse com eles, que havia de se arranjar jeito de ficar num lar, mas ali era a sua casa. Ali nascera e ali haveria de morrer. Nunca chegara a casar, e não havia nada fora daquele mundo que chamasse por ele.
Tirou da panela o caldo acabadinho de fazer, encheu uma tigela e esperou que arrefecesse um pouco. Lá fora ouvia-se agora o ladrar dos cães, mas não ligou. Era bicho, com certeza, pois por ali não passava vivalma, a não ser um ou outro caçador de tempos a tempos.
Bastava-se da horta e não precisava de muito. Uma vez por mês ia à vila para receber a parca reforma e, entre dois copos na tasca do Pinto, aproveitava para se abastecer de arroz, açúcar, sabão, umas latitas de conserva e pouco mais.
Há dois anos chegara a ter a companhia duns alamães que para ali vieram viver, à espera de encontrarem não se sabe bem o quê. No princípio pareciam entusiasmados, mas fora sol de pouca dura. Conforme chegaram, assim partiram. Não estavam preparados para aquilo, o bicho homem precisa da companhia de outros homens.
Acabou de comer e foi até lá fora. A noite estava fria e adivinhava-se geada. Apertou melhor o casaco e foi espreitar as cabras, aninhadas no curral. Estavam sossegadas. Depois puxou da onça e começou a enrolar um cigarrito, companhia solitária de todas as noites.
A morte não o preocupava. Sabia que tinha que ir um dia, e já tinha vivido o suficiente para aceitar o inevitável. Queria deixar os ossos naquele ermo, onde os animais nasciam e morriam respeitando a ordem natural das coisas. Era assim que entendia o mundo.
No céu via-se o brilho dalgumas estrelas. Apagava o cigarro quando os cães, sentindo algo no ar, começaram a emitir um uivar desassossegado. Tinha chegado a hora de, na rua deserta, as sombras dos antigos habitantes ensaiarem a sua dança lúgubre.
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Reedição
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terça-feira, 17 de agosto de 2010

(DES)OLHAR

.Salvador Dali, Reloj Blando Herido
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Olhavas para ti
E vias
Em pânico
O tempo a escoar
Qual ampulheta
Meteórica
Sem vontade de parar
E não sabias
Desesperada
Que tecla tocar
Para refrear
A angústia premente
Que minava
Continuamente
A verdade instalada
Se ponderasses
Para além do ego
Talvez notasses
Sem desatino
O fio de água
Cristalino
Que corria
Galgando a frágua
Para abraçar
Por inteiro
A razão do seu destino
Então talvez pudesses serenar
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sexta-feira, 13 de agosto de 2010

DANÇA

.Daniel Oliveira, Dança em Movimento
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Estavas tão concentrada
No papel de Margot
Que não vias
No canto da sala
Os olhos suspensos
No teu respirar
Eram mais uns
Na plateia domada
Enquanto dançavas
Como ninguém
E as pétalas das rosas
Rendidas
Vertiam perfume
Ao teu rodopiar
A carruagem partiu
Na meia-noite temida
Deixando no ar
Da sala hipnotizada
O aroma envolvente
A promessa de vida
Da cinderela alada
Desci a avenida
Nureyev a dançar
Enquanto desenhava
Com a pétala que restava
A musa encantada
Saída do sonho
Do teu esvoaçar.
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sexta-feira, 6 de agosto de 2010

SEMENTES

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O concílio dos deuses
Em olímpico desdém
Assistia de longe
Ao ruir da ideia
Caduca e sem tino
De imolar a alma
Por trinta dinheiros
Em palácios de frio
E a multidão enjaulada
Sem a almofada
Da bengala-cifrão
Sentia a atracção
Fatal e desgraçada
Do grande buraco negro
Temperado na ilusão
(Economia do vazio)
A esperança rareava
Na multidão sem freio
Definhando nas trevas
Em medo animal
Sem qualquer anseio
Mas aqui e ali
Acendia-se a luz
E uma ideia nova
Pulando o muro
Semeava a esperança
Passando a mensagem
Da reinvenção do futuro
Foi lançada a semente
Em toque de gente
No sentir colectivo
E abraçada a certeza
Com cariz profundo
De olhar em volta
E sentir a magia
Da perfeita harmonia
Do pulsar do mundo.
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Reedição
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segunda-feira, 2 de agosto de 2010

PRIMAVERA

. Gorbachev, Cavalo Vermelho na Primavera
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Éramos jovens potros
Imunes ao receio
E a primavera de Vivaldi
Em harmonia vibrante
Era o primoroso retrato
Do nosso entusiasmo
No galopar sem freio
A seara ondulava, sensual
E viajávamos no sonho
Embalados no rumor da aragem
Que escrevia
Nas folhas dos freixos
Sinfonias à nossa passagem
A paixão das cigarras
Morava dentro de nós
E a linha do horizonte
Meta por conquistar
Era a tela
Dos planos traçados
Dum mundo por desbravar
Adormecia nos teus braços
Em nocturno de Chopin
Terna e doce vassalagem
E só o romper da aurora
Rebate do mundo lá fora
Quebrava o feitiço da viagem.
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3ª  publicação, a pedido :)
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