No registo dos dias, com mudanças a desafiar o mais ínfimo dos cânones, tornou-se banal o alerta das palavras, como que querendo mobilizar percepções e vontades.
Em vão. A multidão, inquieta, prescindindo de filtrar a realidade que lhe servem a qualquer hora, parece enveredar pelo fruir enquanto é tempo, demitindo-se da exigência da dignidade. E, obedecendo aos sentidos, aplaude os vencedores, revestidos de efémero néon, relegando para debaixo do tapete aquilo que a pode desassossegar. Gesto inútil, a prescindir de carícias, pois o futuro deixou de contar, quem cá ficar que aprenda a tecer loas ao destino, adiando o inevitável recorrendo a um qualquer ludíbrio. E, por entre os intervalos da hipnose, os pesadelos vagueiam à solta.
Entretanto, num qualquer suposto abrigo, Anarte, mãe e avó, imune à destemperança, continuava a debater-se com questões com muito ade: liberdade, igualdade, solidariedade, dignidade, fraternidade…
Judite, filha e mãe, contorcia-se na contínua procura da solução para pagar as contas.
Arinta, filha e neta, procurava besouros nos fraguedos, após passagem pelo terreno poeirento, com a memória alheia aos últimos pingos de chuva. E, surpreendentemente, acaba por descobrir uma flor numa brecha do terreno. Deslumbrada com a forma, a cor e o aroma, sentiu necessidade de a absorver: como lhe chamar?
O pai, vinculado a uma vida de coerência, apesar dos custos, mais que muitos, avisou-o:
- Podes correr por toda a terra, perceber o respirar de cada habitante, mas, na hora certa, cada ser que te rodeia, por mais insignificante, vai cobrar da tua decisão.
Por que raio se lembrava disso, quando o contrato que tanto almejara se prostrava, sorridente, a seus pés? À boleia disso mesmo, encavalitado num contrato de encher o olho, vislumbrou e fruiu geografias distantes, tentando perceber, embalado na herança paterna, o respirar local. Curiosamente, ou talvez não, ao mergulhar nas novas realidades, sentia, a pouco e pouco, que os problemas de uns eram os problemas dos outros, apesar da distância, não em quilómetros, mas em euros ou em dólares. Todos queriam, no fundo, ser felizes, apesar da diferença, essa sim, quase inultrapassável no espectro cultural.
Quando, numa viagem de circunstância, teve oportunidade de trilhar os Andes, temperada com Titicaca quanto baste, lembrou-se do pai, obrigatoriamente, pois era essa a sua viagem de sonho. E, comovido, não conseguiu evitar um sorriso de satisfação. A partir dali sabia, por mais que invocasse as memórias, que as discrepâncias deste mundo estariam a seu cargo.
Engendrou, com base no engenho diplomado, soluções do agrado de quem decidia. Mas, por entre comemorações, de copo na mão, não conseguia evitar pousar o olhar nos mais simples, que continuavam a bastar-se com dois ou três animais, uma terra saturada e um artesanato ancestral, sonhando, talvez, com a grandiosidade das asas dum qualquer condor duma ordem desaparecida e que, de quando em vez, sobrevoava as escarpas da quase inacessível montanha. E, nessas alturas, sentia que algo lhe escapava, a ele, europeu de gema, apesar de, através da herança paterna, estar desperto para novas equações. Em suma, não se agradava a si próprio.
Por entre caminhos obrigatórios e outros nem tanto, à sorrelfa, foi galgando veredas fora da órbita, procurando comungar dos valores locais. E, o que apreendeu, foi determinante na forma de encarar o mundo. Atrasados, estes indígenas? Que disparate, sentia ele, tínhamos era ainda um longo caminho a percorrer numa mesa vazia, sem pretensões, em que cada um falasse, com humildade, daquilo que mais o inquietava. Caminhar, acima de tudo, de mãos dadas, sentindo que os problemas de uns, apesar da diferença cultural, eram os problemas dos outros.
O caminho não era fácil, pois sabia do riso de escárnio dos mais poderosos, sustentado em ideologias de privilégio, mas estava mais que preparado para ir à luta. Já que mais não fosse, e para além da proximidade, em eterna promessa de sublevação, com os oriundos da terra, na criação das condições para a manifestação do riso natural dos filhos, seus e dos outros, que esperava virem a dar novo rumo a este recanto, aparentemente malfadado, mas com condições únicas para, no final do dia, aconchegar uma visão de dever cumprido. Havia, pois, que deixar-lhes um legado, adornados com cantares de sentido profundo, por mais que doesse.
Eles, os mais velhos, vestiam a pele de sabedores. E discorriam, adoçando as palavras quanto baste, procurando despertar nos mais novos a apetência pela conquista. Mas, na intimidade, desconfiavam.
Eles, os mais novos, vestiam a pele de educados. E, em nome do respeito, evitavam a acidez das palavras para os confrontar com a herança dum mundo em decomposição. Mas, na intimidade, contestavam.
Não houve simbiose na argumentação, longe disso, mas houve, pelo menos, o deglutir duma bela refeição, qual pausa para o encarar dum futuro muito próximo, com a noção de tempo a esvair-se perante as ideias feitas personificadas numa flor: os mais velhos confrontados com a ida para um lar, qual flor murcha, os mais novos com a sobrevivência num mundo sobrelotado, qual flor por inventar.
Se fosse o ensaiar duma peça, o encenador teria o grande desafio, como pano de fundo, de saber retratar a angústia. Com a esperança, de forma muito dissimulada, a tentar espreitar.