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Margarida Cepêda, Metamorfose e labirinto
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Sei como gostas duma canção suave, ancorada num fim de tarde apaziguador, com o murmúrio da brisa a desenhar nas árvores, por entre as aconchegantes solaridades da despedida, a tua sensação de bem-estar. Sei, mas não vou por aí.
Hoje, nem sei porquê, apetece-me falar da avidez dalgumas formigas, que tudo invadem, do escorpião que se aventura para lá da porta escancarada, das moscas que pousam em qualquer porcaria, das andorinhas que de tudo dão conta e comentam, das pombas que, contrariando a ideia do ramo de oliveira no bico, vão benzendo a terra num constante cerimonial de ácidas fezes.
Que é isso?, questionas tu. Que fel te amarga os dias para proferires tais impropérios? Não vês que, qual eterno sinal de esperança, continuam crianças a nascer?
Não, não vou mesmo por aí, nem por além. Apenas queria recordar-te que, nestes tempos conturbados e sem memória, a cantilena que nos fazem ouvir apenas nos induz ao cultivo dos extremos: ou se aplaude, com o sorriso n.º 5, ou se dá largas à vaia, com o cenho bem franzido. Com esta a ganhar por ippon, que a reputação do circo das desgraças não se constrói com falinhas mansas, apenas nos resta resistir e, em simultâneo, tentar construir algo de novo. Não há outro caminho, por mais que doa, mas o espaço e o tempo são cada vez mais curtos. E eu, que raramente rezo, tendo a tecer esboços de mil e uma orações, por entre algumas acções, que me vão rasgando os calções. Em prol das crianças que nascem, acima de tudo. Elas merecem um futuro com maior luminosidade.
Lá no alto, aparentemente indiferentes a tudo, as aves de rapina planam, ao sabor da corrente, à espera da melhor oportunidade. Elas sentem que o seu momento vai chegar.
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