terça-feira, 28 de março de 2023

CURTA LETRAGEM

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AC, ninho de melro
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Antes havia uma árvore, um ninho, uma abelha e o desejo de ver o mar.
Agora há uma antena, um telemóvel, um drone e um especialista em comunicação.
Antes, olhando o horizonte, faltava algo. Agora, perante tanto movimento, falta muito mais.
Antes eu queria o movimento, de preferência com mar à vista. Agora, que conheço melhor os bípedes falantes, continuo a querer ver o mar. Mas, para além disso, apenas procuro entender a arquitectura dos ninhos, com a cumplicidade de quem possa abraçar. Sempre.
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terça-feira, 21 de março de 2023

ONTEM, HOJE, SEMPRE...

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Imagem retirada da net
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Eles, os observadores, não navegavam, preferiam a margem segura, mas admiravam quem ousasse profanar as águas, fronteira limite dum mundo, assaz aventureiro, que nada augurava de bom para o recanto onde cada um, aparentemente, sabia o que tinha a fazer.
Outros foram, com a alma adocicada, contrariando os oráculos, mas poucos regressavam. E, entre traumas e venturas dos sobreviventes, logo se alongaram os cais, não fosse o diabo tecê-las, apesar da negação das ancestrais professias: cada um no seu lugar, sem necessidade de abespinhar o urso.
Mais partiram, procurando a aurora noutras latitudes, poucos continuaram a chegar. Os jovens, fervilhando, não viam a hora de sentir o porvir, tal o seu ensejo; os homens feitos, apesar do aconchego do conceito de honra, embebido nas origens, começavam a meditar, nos intervalos da suposta epopeia, nos filhos que deixavam, nos campos que ficavam por lavrar; as noivas, arrasadas por uma realidade sem paralelo, para além dos ais, reinventavam um tempo sem tempo, em que apenas elas existiam, ácidas de tanto esperar, sem filhos por nascer; as velhas, envoltas em pesados trajes, nada diziam, apenas lamentavam, pois sentiam o drama. E, às escondidas, limitavam-se a carpir, não fosse a vizinha notar.
Quando um barco chegou, carregado de riquezas doutros mundos, toda a aldeia festejou. E o efeito multiplicou-se por outras, por muitas outras, quando novas velas se fizeram anunciar num porto, em dois, em muitos... E, por um tempo, perante a limitação do olhar humano, a efemeridade insinuou-se como deusa suprema, não fosse qualquer precavido, por mais sensato, perder o próximo barco.
Hoje, passados muitos anos, se alguém festeja a chegada de um barco, é apenas para descompressão dos solitários dias, mas sempre com a esperança, eterna filha em dias melhores, sempre no horizonte. Os hemisférios deslocaram-se, artificialmente, para outras paragens, a conversão da vida em possível festa tornou-se, irremediavelmente, uma questão por reinventar. Segundo alguns, ad aeternum, apesar de continuarem, por hábito, a fazer o sinal da cruz, à espera dum qualquer sinal, seja ele qual for.
Por aqui, num espaço aparentemente imune às questiúnculas dum amanhecer cavernículo, teima-se em deixar espaço às diferentes espécies de vida, cada qual com a sua importância: as ervas, após alguma chuva - não a suficiente - continuam a crescer, florindo; as árvores, num ritmo primaveril comandado pelos raios solares, desabrocham a cada dia que passa, fazendo sorrir quem as sente e observa; as andorinhas fazem-se anunciar, reivindicando, quase que por magia, os ninhos ocupados de antanho; os pardais, sempre omnipresentes, continuam a fazer sentir a sua arruada, como se fossem donos e senhores do espaço; os pintassilgos, muito mais discretos e imunes à presença humana, teimam em debicar sementes e insectos, sempre num voo elegante; os melros, definição perfeita do que é ser esquivo e ladino, poisam aqui, debicam ali, procurando nunca denunciar onde habitam; as pegas-rabilongas, as malfeitoras do lugar, pois devoram qualquer couve jovem, denotam confiança e desfaçatez, mas afastam-se ao mínimo ruído; mais acima, as cegonhas, com ninho nas proximidades, passam ao fim da tarde, num voo ergonómico, com as patas a projectar-se para trás, em consonância com a cabeça, que se projecta para a frente, desafiando, ou evitando, qualquer obstáculo que se lhes depare; as aves de rapina, mais altaneiras, dominam a estratégia do olhar, procurando, socorrendo-se da emanação das correntes de ar, definir qual a melhor forma de apanhar este rato, ou aquele coelho, deitar as garras àquela serpente...
Por mais que, no exterior, os quadros se pintalguem de cores funestas, por aqui o vento continua a soprar, instalam-se os primaveris raios solares, começam a lavrar-se as terras, com as abelhas e as borboletas, qual benfazejo sinal, a dar sinal da sua presença. E eu, apesar dos anunciadores da desgraça, continuo a acreditar.
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sábado, 11 de março de 2023

LAUROS, MELROS E EQUILÍBRIOS

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AC
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Foi na manhã deste sábado, mas poderia ser a qualquer hora dum dia qualquer. Aproveitando a folga dada pela chuva - deveria chover mais, era bom para todos, penso para mim, apesar de, incoerente com o pensamento,  me animar com o sol que espreita - fui lá para fora podar a sebe de lauros que contracena com os dois portões da entrada, com a noção de que já era mais que tempo, pois  estas plantas, se houver qualquer descuido, tendem a crescer desmesuradamente. Até aos 12 metros, informa-me o Google.
O trabalho, ou melhor, o prazer de andar ao ar livre, sem restrições, absorvendo as múltiplas formas de vida, de forma natural e com isenção de formatações - a cada dia que passa, e num agradável aviso pré-primaveril, o chilreio da passarada, com novas espécies migradoras à compita, está mais diversificada, as abelhas e as borboletas, numa azáfama constante, estão cada vez mais presentes, as árvores começam a dar sinais de despertar, num perpétuo ciclo em constante equilíbrio - prosseguia em bom ritmo, de alma lavada, sem questões existenciais, numa progressão de baixo para cima. Às tantas, e chegado a um patamar em que a altura dos lauros já aconselhava um corte radical, não fossem eles escarnecer do estado de crescimento dos seus pares, já devidamente podados, deparo-me com um ninho de melro. A situação não me era desconhecida e, a fim de contrariar o acontecido há dois anos, interrompo de imediato a faina, com o prazer a esfumar-se, ou antes, a ter que ser reformulado. E, apesar da sensação de templo profanado a pairar no ar, ousei ir a casa em busca da máquina fotográfica para registar o momento. Com cuidado, muito cuidado, subi três degraus do escadote e preparei-me para o registo da imagem. Mas o sentimento de culpa, essa herança judaico-cristã que nos acompanha de braço dado, com garras profundas, não me permitiu captar o momento com a atenção desejável. E, quase a medo, lá despachei o clique, com receio de que a casa alheia, sabiamente tecida, fosse rejeitada pelos seus habitantes, atendendo à sua vulnerabilidade, apesar de, desta vez, ela continuar bem camuflada.
Com a preocupação de nada, ou pouco, incomodar, e só com uma apressada tentativa, pouco de acordo com os cânones, a fotografia ficou má, é um facto, e quase me regozijo por isso, qual acto de penitência pelo meu descuido no afã da arte de bem podar. Talvez, e fico a torcer muito por isso, o casal de melros continue a sentir-se em segurança, apesar da intrusão do podador. Era sinal de que, a pouco e pouco, e apesar dos meus percalços, vou conseguindo equilibrar-me com o que me rodeia, no mundo natural, com o menor impacto possível. 
Regresso a casa, devagar, com o escadote numa mão e a tesoura e o serrote na outra, num agridoce debate de sentimentos. De repente, como se os deuses me escolhessem para diversão, oiço à distância  o delicado canto do casal de pintassilgos que, de há uns tempos a esta parte, por aqui aportou. Estaco e, quase sem me dar conta, esboço um sorriso perante tal dádiva. É o suficiente para o meu sol interior começar a brilhar, sem restrições.
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