sábado, 28 de maio de 2016

ZÉ LOBO

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AC, Arte urbana, com reutilização de materiais, de Bordalo II
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A chuva retomara a sua cadência, de lentas vestes, tecidas em gotas anti-ressalto: onde caíam, ficavam.
Zé Lobo apertou o capote, ajeitou o chapéu e pôs-se a caminho. Sentia-se, a cada ano que passava, mais acossado, havia cada vez mais caminhos na serra. E vozes. Uns caminhavam, outros andavam de bicicleta, outros ainda, os mais temíveis, iam sugando, a pouco e pouco, a mancha de carvalhos e castinçais, substituindo-a por cerejeiras. As máquinas tornaram-se familiares por ali, trazendo toda a espécie de ruídos. E sempre com o olhar, cobiçoso, virado para cima, em busca de mais.
Zé Lobo começou a subir, por veredas quase imperceptíveis, em passo ligeiro. As velhas botas, companheiras de muitas andanças, mal se ouviam, tal a familiaridade com o meio. Mas já pouco lhe restava para andar, o espaço de que dispunha era cada vez mais curto. 
Passou ao lado da Penha, cada vez mais acessível aos outros. Em baixo, no seu casario secular, Castelo Novo parecia um velho ao sol, a contar aos vindouros, já praticamente inexistentes, os tempos de dias mais prósperos. E, para apimentar a narrativa, rebuscavam-se na memória as histórias de encontros com lobos, no caminho da serra, que levava até  Alpedrinha. Renunciou ao olhar e prosseguiu para os lados do Castelo Velho, onde já nem as pedras faziam jus às lendas, em direcção a S. Vicente da Beira. Para aquelas bandas ainda havia algum espaço para respirar, mas a merecer, cada vez mais, mil e um cuidados. 
A chuva aquietara. Zé Lobo parou junto a um agigantado penedo de granito e sentou-se. Da bolsa de pano, que trazia a tiracolo, sacou do que restava do pão, que lhe deram no Souto da Casa, e dum naco de queijo. Enquanto comia, quase sem vontade, sentia que o seu tempo se esgotava. Já ninguém ouvia as suas histórias, contadas na taberna, ou em qualquer largo de aldeia, debaixo duma árvore, ao fim da tarde, a que costumava misturar ingredientes do outro mundo. Comia e bebia, nessas alturas, e ainda enchia o saco para levar consigo. Outros tempos.
Estava na hora de continuar, mas algo reteve Zé Lobo. Espraiou o olhar, de modo quase indefinido, pela paisagem circundante, que abrangia para lá de Monsanto, até à raia de Espanha, e deixou-se ficar. A noite, a longa noite, aguardava por ele para avivar, ainda mais, os seus fantasmas.
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sábado, 21 de maio de 2016

FOGACHO EM TEMPO IMPERFEITO

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Sergei Aparin, Last Taxi
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No mergulho em secreta angústia
de tanto tentar perceber as coisas,
há algo que arde, encandeia,
mesclando de alegria, quantas vezes tristeza, 
este renascer constante, de sonhos vacilante,
da vida que, por vezes, se incendeia.
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sábado, 14 de maio de 2016

ROSMANINHO

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AC, Rosmaninho
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Quando a chuva amainou, esgueirando as suas gotas pelos infindáveis mistérios da terra, as abelhas, vestindo, incansavelmente, a farda da harmonia, reiniciaram a sua faina. 
Também tu, sedenta de ar livre, te aventuraste na vereda que leva aos rosmaninhos, como que a redescobrir o lugar de cada coisa na percepção do mundo. A erva ainda estava húmida, mas não te importaste. Tocou-te a singeleza, o aroma lavado, penetrante, como que a lembrar-te das virtudes da nudez. A habituação, nos homens, tende a induzi-los em efémeras certezas, coçando o umbigo, privando-os do discernimento e da clareza. Sim, eu sei que tu já sabias desta fragilidade, mas nunca é demais lembrá-la. Só assim, com vestes de humildade, o que nos rodeia tende a manifestar-se, mostrando, cada vez mais, a subtileza da sua essência.
Quando regressaste, em passo pausado, o teu olhar transparecia como um livro aberto. Sentias-te solta, apaziguada, em comunhão com os delicados milagres de cada dia.
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sábado, 7 de maio de 2016

O IRRESISTÍVEL SORRISO DAS PLANTAS

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AC, Neblina com Gardunha ao fundo
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As sementeiras primaveris clamam pela sua hora, mas a chuva não dá tréguas, principalmente para quem se circunscreve aos finais de semana para piscar o olho à terra. 
Quem parece feliz são as plantas espontâneas, a redescobrir memórias de convívios ancestrais. Crescem, ufanas, com um viço estonteante, como se, de repente, obedecessem a um qualquer manifesto descolonizador. Eu bem lhes digo que há lugar para todos, mas parecem-me renitentes. E, obstinadas, continuam a crescer, argumentando, desta vez, com matéria existencialista.
Olho a chuva, expectante,  através da vidraça. A passarada, acautelada, não se mostra, também ela à espera duma pausa para procurar sementes e lagartas. As plantas, de um verde vivo, parecem sorrir, em espontânea afirmação de tudo o que é novo. E eu, rendido à sua beleza, também sorrio. Mas quando a chuva der folga, e por mais sedutora que seja a sua exuberância, as plantas vão ter que aprender a partilhar o seu espaço comigo.
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domingo, 1 de maio de 2016

VIOLETAS

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Em memória de minha mãe
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Já era tarde, mãe
E a translação
Em relógio solar
Deixava sulcos
Cavados e profundos
Na vontade
Do teu respirar.
Ainda falavas
Com vontade
Da Maria menina e moça
Quando, à tardinha
No fontanário
Em apelo de mulher
Trocavas olhares
Dissimulados
Com o príncipe aldeão
E as violetas
Deslumbradas
Davam as mãos
Na elaboração do cenário
Que formalizava
As razões do coração.
O sol já se despedia
Para lá do monte
Mas ainda sentia
No teu olhar
O aroma das violetas
Que engalanou
Naquele fim de tarde
Com emoção e sem tino
O oráculo que descrevia
Num voar de cotovia
A luz do teu destino.

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