sábado, 30 de abril de 2022

BARCAÇA DO BEM SER, EMBARCAÇÃO DO BEM ESTAR

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AC, Flor de macieira
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Em finais de Abril, princípios de Maio, eu já sabia que os deuses conjuravam. Pressentias o verde novo, os pássaros, as flores e a luz, vestias uma leve blusa de algodão, colocavas um chapéu de aba larga e vinhas cá para fora, como que a querer aspirar a vida que nos envolvia.
Depois, já impregnada de múltiplos sons e odores, não resistias. Abraçavas-me longamente, como que a querer transferir para mim tudo o que sentias, e encaminhavas-me para as cadeiras, com vista privilegiada para a encosta da serra, onde as cerejeiras se despediam das últimas flores. Já sentados, com o rosmaninho por perto, nada dizias, mas davas-me a mão como se sentisses, e soubesses, que partilhávamos toda a sabedoria da simplicidade das coisas. 
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sexta-feira, 29 de abril de 2022

PEQUEN(ÍSSIM)A

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Gostava de escrever mas, de há uns tempos para cá, começava a cansar-se de tal exercício, nem sabia bem porquê.
Pensou nos seus leitores, ainda que poucos e, por um momento, tentou escrever meia dúzia de frases. Mas faltava a alavanca, a convicção de dizer algo, no seu íntimo, que valesse a pena ser lido. Seria que estava a desacreditar da vida?
Continuou a tentar, mas a coisa não fluía. E, naturalmente, foi protelando.
Um dia, quase por acaso, num passeio de ocasião, descobriu que as silvas estavam a invadir o recanto mais afastado do terreno. Podiam estar ainda longe, mas sabia que, se não as olhasse olhos nos olhos, em breve elas tomariam de assalto tudo o resto. Então, convicto, e apetrechado dos utensílios necessários, como se nada mais interessasse, deitou mãos à obra.
No final, a olhar para o trabalho feito, com algum suor, e quase sem se dar conta, a passarada voltou a cantar.
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sábado, 9 de abril de 2022

ASCENSÃO

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Margarida Cepêda, Ascensão II

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Quem como eu em silêncio tece
Bailados, jardins e harmonias?
Quem como eu se perde e se dispersa
Nas coisas e nos dias?
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Sophia de Mello Breyner Andresen
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Olhou para cima, remirou, calculou perspectivas de ângulos e saliências e, satisfeito, fez uma última inspecção à mochila.
Começou a trepar o pequeno monte, galgando metros, enquanto contornava, com algum deleite, pedregulhos e arbustos. As giestas começavam a florir - são afrodisíacas, segredara-lhe alguém, num dia de maior intimidade - a passarada, de tão efusiva, parecia tecer louvores à vida, o corpo parecia enquadrado na empreitada. Ora vamos lá.
Continuou a subir, num misto de maravilha e determinação, sempre em crescendo, como se tudo se tornasse mais simples à medida que irrompia no templo natural. E o vislumbre, a meia encosta, duma gruta dissimulada pelos arbustos, longe de intimidar, apenas acentuou a vontade de comungar com os elementos, de dar configuração aos pequenos sinais, de se tentar integrar num todo.
Após observação cuidada, em sintonia com a linguagem do local, focou-se nalguns pormenores: no lado esquerdo cresciam três rosadas dedaleiras, qual convite agridoce, a deslumbrar, em simultâneo, os sentidos, mas com um travão bem afinado quanto à sua toxicidade; ao centro, mesmo junto da entrada, fezes dum qualquer animal (raposa? javali? coelho?) faziam antever que a gruta seria habitada; no lado direito, duma forma singela, cresciam, a custo, meia dúzia de estevas, em plena floração, atraindo algumas abelhas. Apesar de saber que os javalis não gostam de frequentar altitudes, resolveu não entrar na gruta. Estava ali de visita, o mais discreta possível, e tentar não interferir com o equilíbrio do meio era condição obrigatória. E lá foi, decidido, continuando a ascensão. 
A dada altura a inclinação suavizou, dando azo a um curto promontório onde, num recanto mais abrigado dos ventos, sobrevivia uma capela medieval que, quase miraculosamente, continuava a ostentar um relógio de sol numa das paredes. Fez uma curta pausa para apreciar a preciosidade, enquanto retirava da mochila a garrafa de água para um gole retemperador. Depois, sem pressa, prosseguiu no seu rumo.
Quando o cume, de tão próximo, já começava a estender a passadeira para o receber, sempre por entre fraguedos, um canto peculiar chamou-lhe a atenção. Era um melro-azul, muito raro naquela altitude, mas que fazia questão, era grato pensar, de lhe dar as boas vindas. E, embalado pelo canto da ave, lá encetou as últimas centenas de metros do percurso, onde o aguardava uma visão panorâmica que esgotava todos os graus da convenção matemática. Agora, lá no alto, era só ele e o universo.
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