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Margarida Cepêda, Ascensão II
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Quem como eu em silêncio tece
Bailados, jardins e harmonias?
Quem como eu se perde e se dispersa
Nas coisas e nos dias?
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Sophia de Mello Breyner Andresen
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Olhou para cima, remirou, calculou perspectivas de ângulos e saliências e, satisfeito, fez uma última inspecção à mochila.
Começou a trepar o pequeno monte, galgando metros, enquanto contornava, com algum deleite, pedregulhos e arbustos. As giestas começavam a florir - são afrodisíacas, segredara-lhe alguém, num dia de maior intimidade - a passarada, de tão efusiva, parecia tecer louvores à vida, o corpo parecia enquadrado na empreitada. Ora vamos lá.
Continuou a subir, num misto de maravilha e determinação, sempre em crescendo, como se tudo se tornasse mais simples à medida que irrompia no templo natural. E o vislumbre, a meia encosta, duma gruta dissimulada pelos arbustos, longe de intimidar, apenas acentuou a vontade de comungar com os elementos, de dar configuração aos pequenos sinais, de se tentar integrar num todo.
Após observação cuidada, em sintonia com a linguagem do local, focou-se nalguns pormenores: no lado esquerdo cresciam três rosadas dedaleiras, qual convite agridoce, a deslumbrar, em simultâneo, os sentidos, mas com um travão bem afinado quanto à sua toxicidade; ao centro, mesmo junto da entrada, fezes dum qualquer animal (raposa? javali? coelho?) faziam antever que a gruta seria habitada; no lado direito, duma forma singela, cresciam, a custo, meia dúzia de estevas, em plena floração, atraindo algumas abelhas. Apesar de saber que os javalis não gostam de frequentar altitudes, resolveu não entrar na gruta. Estava ali de visita, o mais discreta possível, e tentar não interferir com o equilíbrio do meio era condição obrigatória. E lá foi, decidido, continuando a ascensão.
A dada altura a inclinação suavizou, dando azo a um curto promontório onde, num recanto mais abrigado dos ventos, sobrevivia uma capela medieval que, quase miraculosamente, continuava a ostentar um relógio de sol numa das paredes. Fez uma curta pausa para apreciar a preciosidade, enquanto retirava da mochila a garrafa de água para um gole retemperador. Depois, sem pressa, prosseguiu no seu rumo.
Quando o cume, de tão próximo, já começava a estender a passadeira para o receber, sempre por entre fraguedos, um canto peculiar chamou-lhe a atenção. Era um melro-azul, muito raro naquela altitude, mas que fazia questão, era grato pensar, de lhe dar as boas vindas. E, embalado pelo canto da ave, lá encetou as últimas centenas de metros do percurso, onde o aguardava uma visão panorâmica que esgotava todos os graus da convenção matemática. Agora, lá no alto, era só ele e o universo.
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