sábado, 27 de maio de 2017

CANÇÃO DE DESPERTAR

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Hélio Pereira, Fraga da Pena (Serra do Açor)

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Os aromas de Maio, polinizadores, desassossegavam a alma, despertando sensações enfeitiçadas pelo mais puro instinto de vida. Surgiam canções, poemas, gestos a esboçar toques na pele, como se a vida tivesse que ser agarrada ali, no momento, como se nada mais importasse.
À tardinha, quando os aromas mais se insinuavam, mergulhava nas águas, ainda frias, e reformulava a tela, ainda por concretizar, invocando as deusas do riacho. Depois, mais apaziguado, escrevia um poema, tentando colorir aquilo que me escapava, não por entre os dedos, mas pelo desejo da pele tocada.
Assim eram os dias, no longínquo esboço de paraíso, em que tentava desenhar, no mais puro de mim, o rosto da desejável partilha.
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sábado, 20 de maio de 2017

A CARCÓDIA

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Hélio Pereira, Foz d'Égua (Arganil)
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Os alvoreceres ainda eram tenros, com as cores pouco definidas, mas já nessa altura o olhar se perdia no longe, ainda que a espaços.
Nas tardes de estio, quando o tempo sorria para todas as vontades, pegava no canivete do avô e, toscamente, esculpia um casco de barco na carcódia que subtraía dum qualquer pinheiro. Depois, com cuidado, afiava um pauzinho, perfurava uma folha de castanheiro e espetava-o no centro da minúscula nave. Faltava a mensagem, escrita numa folha do caderno da escola. Guardado o lápis, dobrava o papel e acomodava-o no barco, qual sonho a adornar o dia, e libertava-o, na corrente, como se fosse o anúncio do seu passaporte para o mundo.
Mais tarde, quando os pais o levaram, de mala a tiracolo, para o deixar num colégio, "para se fazer homem", o último olhar foi para o fio de água. Talvez, um dia, as malas da sua vida abarcassem os sonhos que enviara, em plena nudez, nos pequenos pedaços de carcódia.
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Hélio Pereira, Foz d'Égua (Arganil)
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sábado, 13 de maio de 2017

ELOGIO DAS COISAS SIMPLES

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AC, Duplo abrigo (da minha lenha e das andorinhas)
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Não sei com quem aprendeste, mas escolhias sempre as manhãs para te mostrares, em constante movimento, cuidando das coisas que embelezavam o teu dia. 
Recolhias-te, descansavas, cuidavas das pontas soltas. Regressavas à lida a meio da tarde, infatigável, e só abrandavas quando o rosmaninho e o alecrim destilavam o melhor que tinham, como que a despedir-se do sol e das cotovias. Descansavas, então, na varanda florida, enfeitada de cravos e manjericos, respirando os aromas modelados pela brisa morna com que trauteavas, sorridente, os simples acordes da vida.
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sábado, 6 de maio de 2017

PRINCESAS, PEDRAS, PÁSSAROS E LENDAS, O MARAVILHOSO PARA LÁ DAS TENDAS

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AC, Gardunha
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Em tempos que já lá vão, havia uma princesa moura, muito bonita - contavas tu, enquanto me aninhava, encantado, no calor do teu colo - que costumava passar por ali, nos fins de tarde, lamentando a ausência do alaúde e do bendir. Então, perante tão sentido carpir, toda a passarada da Gardunha se reuniu, em assembleia, para debater sobre a melhor forma de apaziguar o lamento da princesa. Decidiram cantar por turnos e, não fosse alguém esquecer o combinado, confiaram tudo às Pedras da Memória.
Melros-azuis e rouxinóis, cotovias e piscos, ferreirinhas e pintassilgos, e outros que tais, que esvoaçavam por cima das pedras, nunca mais se esqueceram do protocolo, embalando a princesa moura em naturais cantares, fazendo-a sentir como se aquela fosse a sua verdadeira casa. 
Ainda hoje, quando alguém passa por ali, e se estiver atento, as pedras parecem querer dizer-lhe algo. A passarada por lá continua, cumprindo a decisão da ancestral assembleia, apenas falta quem a ouça e sinta como a princesa moura.
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