domingo, 23 de abril de 2023

FOREVER YOUNG

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Margarida Cepêda, O rei e o cavalo
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Ele costuma chegar, confiante, distribuindo abraços como se fosse a coisa mais natural do mundo. 
Ainda não fez três anos- faltam três meses - mas apodera-se da casa como se fosse sua, qual governante a quem apenas a boa disposição e a alegria sejam coisas a ter em conta. E, por entre brincadeiras sem fim, não se coíbe de beijar, ou abraçar, quando sente que é caso para isso.
- Avô, anda escondê! - solicita ele, na sua linguagem muito própria.
E eu lá vou, de coração cheio, brincando ao faz de conta com mantas a servir de tenda, com o sorriso dele a comunicar, de tão cúmplice, como se me desse a mão. Os outros, entrando no jogo, vão pintalgando o ar de expectativas, com muito açúcar, soltando a cada passo:
- Onde está o Miguel?
- Está aqui! - grita ele, esfuziante, ao fim dum certo tempo (pouco, mas para ele é muito) como se da novidade mais importante se tratasse.
O Miguel cresce a olhos vistos, rodeado de amor em todos os quadrantes, e ele retribui, retribui sempre, olhos nos olhos, confiante em tudo o que o rodeia.
- Avô, anda, vamos lá fora!
O avô, transbordando duma ternura que tem sempre retorno, até de mais, dá a mão ao novel habitante da tribo, encaminhando-o para os primeiros voos do contacto com a natureza.
- O que é isto?! - exclama ele, perante o cantarolar de um pássaro.
O Miguel, ao contrário do avô, vive num apartamento, na segurança da proximidade dos outros, mas longe dos sons naturais que enriquecem qualquer ser. Pacientemente, com muita ternura à mistura, lá lhe vou explicando o som dos pássaros, o voo de cada um deles, a azáfama das abelhas, o voo silencioso das borboletas...
O Miguel, a pouco e pouco, vai absorvendo uma nova linguagem, que não a sua, mas que tende a interiorizar. E, por mais informação que se lhe faculte, uma coisa me orgulha, profundamente: ele continua a abraçar, incondicionalmente, tudo aquilo que passe no seu filtro de gostar, tudo aquilo que o faz sentir feliz.
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quarta-feira, 19 de abril de 2023

QUER OUTRO PASTEL?

Imagem retirada da net
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O meu pequeno paraíso, ladeado por excelsas damas, a Gardunha e a Estrela - tão diferentes e, em simultâneo, tão irrigadoras do meu olhar - por mais inspirador, não basta para me apaziguar por completo. E, por uns dias, rumei para o litoral atlântico, sem artefactos tecnológicos, qual necessidade catártica na tentativa de abraçar o mar, o grande caldeirão químico onde tudo começou. 
Praia deserta, como convinha, toda a atenção para a reconhecida grandiosidade do oceano. E ele, qual eterno matusalém, parecia divertir-se a mostrar diversas facetas, com o conluio dos elementos. Enquanto arremetia contra o indefeso areal, desenhando nuvens efémeras de espuma, afastava qualquer curioso, por mais agasalhado, com a cumplicidade da neblina e do vento. Quando o intrometido se afastava, escorraçado, com uns pingos de chuva a completar o leque, o sol, inesperadamente, dava entrada em cena, primeiro timidamente, mas depressa dardejando com algum ímpeto, a ponto de o invasor sentir necessidade de despir o casaco e, quase sem se dar conta, começar a sorrir. Mas era sol de pouca dura, que o mar tem via privilegiada para invocar os elementos. E o casaco lá servia novamente de aconchego, até o visitante percorrer o que faltava para um bar com sala envidraçada, com vista privilegiada para o gigante em constante movimento, mas ao abrigo dos seus maus humores.
Ainda não eram nove horas. Na sala viam-se algumas pessoas, que pouco ou nada conversavam, pois a presença do mar, apesar da protecção da vidraça, continuava omnipresente. Escolhi o melhor lugar disponível, tendo em conta a vista, e sentei-me, deixando-me absorver, lentamente, pela paisagem marítima, com o pensamento a embalar numa deriva  de considerações, sem leme e sem âncora.
- Deseja alguma coisa?
Emergi da quase inconsciência. À minha frente estava um homem na casa dos sessenta, com alvos retoques na barba rala, devidamente aparada. Recuperei a presença de espírito e, num meio sorriso, limitei-me a dizer:
- Um café e um pastel de nata.
O homem regressou, serviu-me e, por uns instantes, deixou-se ficar a observar o mar. Aproveitei para meter conversa:
- Para quem gosta de ver o mar, e sentir o seu aroma, hoje está um dia ventoso.
Olhou-me e, após uma breve pausa, deve ter sentido que o novel interlocutor merecia alguma confiança. E ousou, num ditame quase cúmplice:
- Sabe, meu amigo, passei a vida atrás do vento, mas nunca o consegui apanhar. Mas, com tantas andanças, umas contra e outras de feição, acabei por encontrar o equilíbrio, conseguindo desenhar alguma paz. 
Olhou-me, serenamente, medindo a minha reacção. Depois, parecendo satisfeito com o que via, adoptou uma postura mais profissional, com um leve sorriso a denunciá-lo, e inquiriu:
- Quer outro pastel?
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domingo, 9 de abril de 2023

BREVETA PRIMAVERIL

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AC, Flor de cerejeira
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Quando as andorinhas voltavam, ela ia, bem cedo, pelo caminho das cerejeiras, procurando absorver tudo como se fosse a primeira vez. O tempo parava, para a contemplar, enquanto piscava o olho às abelhas. Depois, qual eterna menina, imitava o gorjear dos pintassilgos, insinuava o voo das borboletas, acariciava esta ou aquela flor...
Quando regressava, de alma plena, ainda trazia, no brilho dos olhos, os vestígios da alquimia primaveril.
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terça-feira, 4 de abril de 2023

DESÍGNIO

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Margarida Cepêda, Ela, o violoncelo e as vagas
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Ela já era, mas não sabia.
Inquieta com os outros, fruto da sua opção de vida, procurava, o melhor que sabia, pejada de dúvidas, saber das nuvens que lhes cobriam os horizontes, do seu respirar sem convicção, dos parcos momentos em que, qual milagre da vida, a rara espontaneidade se concretizava num sorriso, por mais ténue. E, sempre atenta, registava o pormenor, depois da consulta, procurando dar cor aos nomes que, lentamente, parecia que se iam sumindo na paisagem, cada vez mais desertificada.
Ela era um anjo, mas não sabia. Contudo, os velhos que lhe adornavam a consulta, mal habituados à dignidade do trato e do olhar, sabiam-no desde a primeira vez.
Ela é como é e, perante o olhar melado dos velhos, e o respeito dos outros, começa a perceber, lobrigando perante as dificuldades de saber ser quando pouco ou nada se tem. Só ainda não entendeu, por mais que lhe digam, por que é que, em todo o lado, não é sempre assim, com a dignidade a não conseguir ganhar lastro.
Apesar do ruidoso silêncio dos hostis gestos dos conformados, prossegue na sua convicção, qual  percurso sem fim à vista. E persiste. Ela respira o equilíbrio do mundo em modo de vida e não se imagina de outra forma, pois cresceu a pensar que a proximidade e o calor de um gesto podem fazer toda a diferença. 
Ela é assim, a nossa doutora, qual joana sem pestana a tremelicar, mas de olho sempre a brilhar. Apesar de lamentar os falsos ais e uis de quem decide, ela continua a remar, contra ventos e marés, alimentando a alma com o que a preenche, qual miríade dum futuro por desenhar.
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