domingo, 28 de novembro de 2010

SOLIDÃO

.Margarida Cepêda, Leva a luz e arrasta a sombra
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Ao J, um inspirado que se perdeu em si próprio
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Incomodava-o o pensamento condicionado, próprio dos grandes ajuntamentos, e, lentamente, foi procurando o refúgio das veredas. Mas até estas, às tantas, lhe pareciam movimentadas auto-estradas.
Começou a traçar mapas do seu percurso, rumos inventados que apenas existiam dentro de si. No princípio gozou a liberdade, o prazer de percorrer uma estrada incólume, original, em que apenas prestava contas a si próprio. Navegava com a lua, viajava com o vento que embalava os pinhais, fez-se regato a observar as nascentes...
Um dia quis partilhar o seu mundo. Olhou em volta, mas tinha sido eficaz na escolha do caminho: não havia ninguém por perto. Então, a pouco e pouco, uma sensação de frio começou a apoderar-se da sua alma, tolhendo-lhe qualquer espécie de harmonia com o cenário inventado. Ainda esbracejou, mas tinha viajado para muito, muito longe, e apenas encontrou o aperto do vazio.
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Reedição
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quarta-feira, 24 de novembro de 2010

BRILHO

.Margarida Cepêda, Diálogo
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As palavras ganham vida e chegam, até ti, envoltas em manto de ternura, roçando suavemente a pele e amainando a inquietação do vento forte. Preciosas são essas palavras, que insinuam o cenário do apaziguamento. Pois eu digo-te que as cuides, que as mimes. Vais ver que, quando partires, elas já farão parte de ti. Não, o mundo não te fará reverência. Mas, se reparares, irá admirar a convicção no brilho do teu olhar.
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Ilustração de Luiza Maciel Nogueira, do blogue Versos de Luz
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domingo, 21 de novembro de 2010

ALVOR

.Margarida Cepêda, O baptismo da rosa
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Não sei se estou para cá ou para lá da porta, jogo de espelhos com ausência de respostas.
Ligo e desligo o interruptor que dá vazão às águas, mas não há rio, não há foz. Apenas uma rosa caída no chão, esboço do teu relevo.
Imbuído do teu perfume, sinto a cotovia, na árvore mais alta, a cantar o despontar da madrugada...
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quarta-feira, 17 de novembro de 2010

O FIO

.Pintura de Margarida Cepêda
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É tentador o recosto no enigma das tuas palavras, mas o coração não se basta. Quer descobrir o fio que escondeste à entrada do labirinto, beber do teu riso, sentir os gritos e os medos que o levarão até ti.
Quando se instalar o aroma das violetas, será então a hora de soltar as esperas, de abraçar o desespero do teu corpo...
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domingo, 14 de novembro de 2010

PRIMAVERA

.Margarida Cepêda, O Jogo da Sedução
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Este poema surgiu em Dezembro passado. Na altura alguém me disse que era um poema para todas as estações, e desde então faço questão de levar isso à letra, publicando-o sazonalmente, Completa-se agora o ciclo, talvez o sinal para outras mudanças...
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Éramos jovens potros
Imunes ao receio
E a primavera de Vivaldi
Em harmonia vibrante
Era o primoroso retrato
Do nosso entusiasmo
No galopar sem freio
A seara ondulava, sensual
E viajávamos no sonho
Embalados no rumor da aragem
Que escrevia
Nas folhas dos freixos
Sinfonias à nossa passagem
A paixão das cigarras
Morava dentro de nós
E a linha do horizonte
Meta por conquistar
Era a tela
Dos planos traçados
Dum mundo por desbravar
Adormecia nos teus braços
Em nocturno de Chopin
Terna e doce vassalagem
E só o romper da aurora
Rebate do mundo lá fora
Quebrava o feitiço da viagem.

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terça-feira, 9 de novembro de 2010

URDINDO O DESTINO

.Margarida Cepêda, Urdindo Universos
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Os olhos, habituados à luz, suavizam a tormenta, procurando o fio condutor da construção do labirinto. E, a pouco e pouco, vão bebendo a escuridão.
Quando se insinua o repouso, o horizonte, feito recompensa, parece mesmo ali, o longe tornado perto. É quando, à tardinha, se ouve o murmúrio do regato, e as aves entoam o seu mais belo canto.
Mas de longe chega o rumor da zanga das águas, rumo perdido em torrente impetuosa. Qualquer coisa que se foi, outro tanto que se teima em procurar...
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sexta-feira, 5 de novembro de 2010

GRITO

.Margarida Cepêda, O Rei e a Lua
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Tento insinuar-me nos teus percursos, mas a brisa apenas me fala dos aromas que deixaste.
É grande o meu desassossego, confrontado com a impossibilidade do canto da ave. A mordaça cingiu-a, cruel, e o silêncio insiste em negar-me os segredos.
É então que se solta o grito, lancinante, mas a perpetuação do eco apenas acentua a distância. Só as cotovias, condoídas, me sopram ao ouvido as tuas lágrimas. E, de coração na mão, teimo em percorrer o caminho que me levará à frescura dos teus passos.
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terça-feira, 2 de novembro de 2010

POETISA

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.Imagem tirada da net
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Forjara os sonhos em olhares, sensações e desejos, temperados com muito afecto.
Tinha a convicção dos eleitos, e nada parecia esmorecer tamanha determinação. Às vezes choramingava, é verdade, mas depressa fazia das fraquezas forças. O que mais a tocava era a incompreensão dos que a tentavam magoar, talvez porque ousasse percorrer as veredas da verdade, a sua verdade, que respirasse coragem onde os outros baixavam os olhos. Mas prosseguia o seu caminho, sorrindo, semeando poesia em réstias de luz.
Sentia que quanto mais avançava mais se afastava dos outros, mas tinha a plena convicção, vinda do mais fundo de si mesma, de que era aquele o caminho. Gostava deles, mas tinha que se afastar. Talvez um dia compreendessem. Ou talvez não. Aquele era o seu rumo, a construção do seu sonho, e estava disposta a tudo para o continuar a trilhar.
As cumplicidades, ainda que poucas, foram reforçando o alento. O calor da mão aberta, um olhar de mil palavras, um mergulho em águas claras...
Maria dos olhos claros, poesia em movimento, o respirar como destino.
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Reedição
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