terça-feira, 21 de dezembro de 2021

O NATAL DA MINHA INFÂNCIA

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Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, como muito bem escreveu o nosso intemporal Camões.
Vem isto a propósito de os meus ouvidos, a torto e a direito, ouvirem (in)confidências, muitas vezes em surdina, de que o Natal já não é o que era, que agora a carteira é quem manda, mas sempre duma forma efémera. A acrescer a isto, e que já não era pouco, tenho recebido, nos últimos tempos, algumas solicitações para voltar a publicar o meu conto sobre o Natal tradicional, em que, acima de tudo, prevaleciam os rituais ligados à nossa parte espiritual, imbuídos dalguma inocência, pois isso (será?) faz parte do nosso património cultural. 
Pois bem, e procurando dar o meu pequeno contributo para que certas memórias se perpetuem, aqui fica ele.
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Presépio, em telha mourisca, do meu ex-aluno Francisco Paulo
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A década de sessenta iniciara-se há pouco.
Na aldeia, inclinada à inclemência dos gelos da Estrela, não se poupava na lenha. Em casa do Luís Pereira o lume crepitava desde muito cedo, inundando a cozinha com um calor só visto nas grandes azáfamas.
Da horta, logo de manhã, tinham chegado as mais apetecíveis couves, que iriam fazer companhia, na Consoada, ao bacalhau já demolhado, comprado na mercearia da menina Amélia. Mas havia ainda muito que fazer: só de doces ainda faltavam as filhós, que seriam fritas a meio da tarde, as rabanadas, o arroz doce...
O João, cinco anitos de gente, cirandava pela casa tentando não perder pitada de todo aquele movimento, só visto naquela altura do ano. Enquanto a mãe e as irmãs davam voltas à massa para as filhós, o pequeno não arredava pé, como se toda aquela lida desse asas ao encantamento com que vivia a época.
- Oh João, vai brincar lá para fora!
É o vais! O João empolgava-se a respirar todos aqueles preparativos para "a noite mais longa do ano", como dizia o pai, e só quando era preciso reforçar o lume é que ele condescendia em ir ao quintal para trazer mais uns cavacos. Era preciso aquecer bem a casa para receber o Menino Jesus!
Durante a fritura das filhós, toda a casa se via envolvida em cânticos. Enquanto lhes davam forma e as colocavam no azeite quente, as mulheres entoavam, em louvor do Menino:
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........Ó meu Menino Jesus
........Ó meu menino tão belo
........Só Vós pudestes nascer
........Na noite do caramelo.
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À Consoada, após a oração dirigida pelo chefe da casa, as atenções centraram-se no bacalhau e nas couves que, a pouco e pouco, iam desaparecendo de duas grandes travessas. Aos dois filhos mais velhos, já homens feitos, foi-lhes permitido acompanhar o pai e o avô num copo de vinho, que a ocasião era de festa. A noite ia decorrendo, animada, como seria de esperar numa mesa com dez pessoas irmanadas pelos mesmos sentimentos. As filhós e as rabanadas iam temperando a conversa, que alternava aqui e ali com as canções que as mulheres tentavam impor e a que todos aderiam...
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........Da terra nasceu a vara
........Da vara nasceu a flor
........Da flor nasceu Maria
........De Maria o Redentor.
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Ainda a mesa da Consoada não estava apanhada e já o João, afoito, corria para a cozinha, na ânsia de colocar os sapatos para a prenda do Menino Jesus. Ainda esboçou um gesto para levar também as botas feitas no Zé Brás, o sapateiro da terra, para ver se o leque das prendas aumentava, mas os olhos da mãe disseram-lhe que não valia a pena. Pouco depois recebeu ordem para ir para a cama, enquanto os mais velhos, com outro estatuto, saíam para a missa do Galo, a que se seguiria uma ida ao madeiro, que combatia o ar gelado da noite no adro da igreja.
No dia de Natal, bem cedinho, ainda antes do galo cantar, o João foi o primeiro a levantar-se. Com o coração aos pulos, correu para a cozinha e galgou a distância em dois tempos. Pegou no embrulho que estava junto dos seus sapatos, atado com um grosseiro cordel, e desembrulhou-o logo ali. Então, deslumbrado, pegou na camisola e nas calças novas e levou-as, instintivamente, ao seu corpito de menino. Que bem lhe ficariam na missa de Natal!
A manhã custou a passar, pois nunca mais chegava a hora de vestir a roupa nova. Ansiava pelo momento de subir a igreja, de peito inchado, exibindo a roupa para os amigos. Quando, finalmente, chegou a autorização da mãe, ele e os irmãos partiram para a igreja, onde os aguardava o encantamento das enormes figuras do presépio que o padre Nicolau tinha mandado vir do Porto.
Enquanto faziam o caminho o João continha-se para não correr. Queria chegar à igreja o mais rapidamente possível para ver o presépio, mas com a roupa direitinha. Contudo, os cânticos que se ouviam ao longe ainda acirravam mais a vontade de chegar depressa. Os irmãos, que lhe notavam a ansiedade, sorriam uns para os outros. Apesar das partidas que ele lhes pregava, gostavam muito da vivacidade do irmão mais novo, e sabiam o que ele estava a sofrer para dominar a sua vontade. Às tantas, já com a igreja à vista, o pequeno não se conteve mais e começou a correr. Os irmãos ainda tentaram segurá-lo, mas quem o conseguiu foi uma pedra solta no meio do caminho, que o fez estatelar no meio do chão.
Voltou para trás, a soluçar, vergado à enorme desilusão de ver a sua roupa nova toda enlameada. Nada o parecia reconfortar. Só a Maria José, com o jeitinho e a paciência que só as mães têm, o convenceu a vestir outra roupa. E o João, que sonhara com uma entrada triunfal na igreja, subiu a coxia de cabeça baixa, só estacando em frente do presépio. Então, à vista daquelas maravilhosas figuras, o miúdo começou a esquecer-se da roupa que vestia. Deitou os olhos para o Menino e, qual milagre de Natal, teve a certeza que Ele também olhava para si. E sorria-lhe.
Durante o almoço toda a gente estranhou o silêncio do João. Não que ele estivesse triste, longe disso, mas mostrava-se tão ausente do que tinha no prato que parecia longe dali, absorto em mil pensamentos. Mas o que passava na sua cabeça devia ser coisa boa, pois de vez em quando esboçava um sorriso. E só mais tarde, quando lhe puseram uma taça de arroz doce à frente e o viram desenhar um menino com a canela, é que perceberam o encantamento que ia na alma do pequeno.
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quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

CONTO DE NATAL - A LUZ DO LABIRINTO

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Margarida Cepêda, A luz do labirinto
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Vivia os dias ao sabor da corrente, como se tudo estivesse no seu lugar, apesar de não lhe passarem despercebidos os escuros becos. Mas sentia, no mais fundo de si, que lhe faltava algo. Pensava que sabia qual a margem segura do Grande Rio, e era essa que procurava frequentar, mas tudo lhe parecia demasiado elaborado, demasiado protegido. E, qual pintor de sensações, pressentia que havia algo que faltava - a forma?, a cor?, a mensagem? - para que a tela fizesse sentido.
Apesar dos medos, um dia decidiu atravessar para a outra margem. Comeu novos frutos, aprendeu novas canções, novas formas de linguajar, descortinou outras formas de rezar. Contudo, bem vistas as coisas, os risos e os choros eram os mesmos. Continuava a ver especuladores, vendedores de banha da cobra, formiguinhas incansáveis e ordeiras na sua fila, e muitos autómatos pendurados, quer seja numa garrafa, numa fila de cocaína ou na ânsia de acumular poder e dinheiro. Faltavam, isso sim, pessoas preocupadas com as bocas por alimentar, com um mundo por equilibrar. A visão das coisas alterou-se, é certo, num vislumbre mais global, e sentiu que, a haver certezas, elas são muito relativas. Mas, mesmo assim, e talvez por isso, a sensação incómoda não o abandonava. Continuava a faltar uma qualquer subtileza, indefinível, que lhe travava a pretensão duma visão harmoniosa, em equilíbrio com o que o rodeava. Que fazer? 
Apesar do desalento, continuou a trilhar o caminho das indefinições, à espreita, em cada curva, que algo se revelasse. Mas o pó acumulava-se, e nada. 
Um dia, perante tantos caminhares e divagares, encontros e desencontros, alguém lhe falou, quase em surdina, duma pequena ilha situada no meio do Grande Rio. E, sem hesitações, norteou para aí os seus passos.
Quando chegou, de ar cansado, abordou o cais. Sentou-se nas carcomidas tábuas, comeu duas laranjas e bebeu um gole de água. Depois, já refeito, abeirou-se do barqueiro. Ajustou o preço da travessia, conferiu o conteúdo da mochila e, de espírito expectante, deixou-se transportar contra a corrente.
Na ilha foi recebido por dois anciãos, de manta nos ombros, aparentemente avessos a sensações. Saudou-os, foi saudado. Só então, depois de os fixar olhos nos olhos, reparou que esboçavam, muito ao de leve, um sereno e permanente traço sorridente, como se tivessem encontrado o quase indecifrável equilíbrio da vida.
Levaram-no por trilhos imperceptíveis ao olhar comum. Quando já começava a desacreditar das boas intenções de quem o conduzia, deparou com um velho, de cálice na mão, sentado à entrada duma gruta. Vestia uma túnica que não escondia a pele engelhada, tinha cabelos fracos e baços, mas escorria por ele um porte digno, de forma natural, como se fizesse parte da sua respiração. Abeirou-se, curioso, mas dele apenas brotaram parcas palavras:
- Bem-vindo. Sejas quem fores, nunca te esqueças do pó do caminho que aqui te trouxe.
Depois, sempre solene, desenhou um leve sinal para o interior da gruta, qual sinal para continuar.
Assim fez. Após contornar algumas bifurcações, como que a quererem despistar qualquer intruso, deparou-se com uma ampla câmara, de tecto alto, com uma luz difusa, oriunda de subtis orifícios provenientes da superfície, a incidir sobre um quadro que, ao primeiro impacto, tinha tanto de natural e primitivo como de hipnótico: uma mãe, com o pai em permanente vigia e protecção, dava de mamar a uma criança. Ao lado, brotando das rochas, soltava-se a água cristalina, qual fio irrigador de qualquer crença. Do pó vieste, ao pó hás-de voltar, isso sabia ele. Mas, até lá, e sentia-o ali, muito havia que fertilizar, com o essencial a brotar daquela simples tela: a esperança em melhores dias.
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