sexta-feira, 30 de julho de 2010

NUDEZ

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Procurei-te
No mais fundo de mim
Desenhei-te
Nos contornos do viajar intranquilo
Adivinhei-te
No vulto que dobrava a esquina
Ah, quanta cegueira
Quanta insistência na receita errada
Por uma quimera mil vezes desejada
Ah, quanta solidão
Quanto rebuscar no vazio
Em constantes vagas de frio
Então chegaste
Vinda do nada
E desmontaste
Com risos despreocupados
A construção do labirinto
Mil vezes tecido
Em adornos florais
Só então
No desespero da nudez
Vislumbrei
A génese da promessa
E percebi
Como tudo começou.
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Reedição
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quarta-feira, 28 de julho de 2010

THE DARK SIDE

.Ariane Daniela Cole, Verticalidades V e VI

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............Um poema é uma história com mil janelas abertas
............AC
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O alvor era plúmbeo
E a multidão
Em reserva vigiada
Iniciava a jornada
Na dependência
Dos dias banais
(Manequins de uniforme
Em cinzentos rituais)
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Evitava a receita
E vagueava
Por entre a carneirada
Negando o cenário medonho
E enfrentava a dor
Ansiando esboço de cor
Alimento do seu sonho
Procurava a claridade
Que promovia o abraço
E encarnava a cotovia
Na inglória melodia
De alcançar o último raio
Olvidando o cansaço
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Depois de detectada
A ovelha perdida
Foi-lhe diagnosticada
Reacção química desajustada
E o laboratório
Em receita eficaz
Apagou a ideia
Do perigoso purgatório
E a alma penada
Em código testado
Foi programada
No eficaz bem-estar
Do mundo formatado
(A ovelha
Sem alma
Sorriu)
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segunda-feira, 26 de julho de 2010

TEMPO

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Lutavas contra o tempo
Em sobressalto
Vendo as folhas cair
E não reparavas
Que a cor outonal
Era a satisfação
Dum desígnio cumprido
E que a queda
Suave
Era a chave
Do desvendar do segredo
Debatias-te
Angustiada
Na visão do espelho
E esquecias
O passo a dar
Para entender
A arquitectura do ciclo
Programada
Na palavra primitiva
Sentia-te a inquietude
Mas nada podia fazer
Para apaziguar o medo
De sentires
O vazio do abraço.
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Reedição
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LOVELY AND LOYAL AWARD

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Da Em@, do blogue com o mesmo nome, recebi o desafio de responder a algumas questões. Vamos lá então a isso.
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Porque é que criou um blogue e, quando o criou, tinha expectativas de que fosse popular?
Há algum tempo atrás, os professores portugueses viram-se, de repente, envolvidos na estratégia política do governo, com este a intoxicar a opinião pública com uma série de falsidades. Esta situação, porém, teve o condão de unir uma classe tradicionalmente dividida, ferida que fora na sua dignidade. Os blogues, nesta fase, tiveram um papel fundamental no esclarecimento das pessoas, e a sua consulta era recorrente. Na filtragem do entusiasmo e do ruído - há sempre muito ruído nestas coisas - seduziram-me as palavras de Isabel Fidalgo, professora de Português e brilhante poetisa, que comecei a seguir e a comentar no seu blogue Frutos de Mim e Mar. Um dia a Isabel questionou-me se eu não tinha um blogue, pois escrevia muito bem. E foi aí que, a pouco e pouco, se foi insinuando a ideia...
Quando criei o blogue (quase na clandestinidade) estava apenas preocupado em saber se era capaz. Acho que a coisa nem atava nem desatava. Foi então que a Isabel (eterna dívida!) me descobriu o rasto e comentou o primeiro post - e único, até à altura - criando algumas expectativas acerca do espaço. A partir daí tive que deixar de lado o medo de me expor e avancei. E ainda não me arrependi.
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Em que data exacta iniciou o blogue?
Basta consultar o início do blogue. O primeiro post, o tal passo a medo, foi feito em 28 de Agosto de 2009. Ainda não fez, portanto, um ano. Mas só avancei com convicção na publicação do segundo post, feita a 12 de Setembro. Como se vê, é tudo ainda muito recente.
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Nomeie cinco seguidores leais.
Durante vários meses o Interioridades esteve circunscrito a meia dúzia de seguidores, funcionando quase em circuito fechado. Essas pessoas foram importantíssimas para me convencer que o blogue era viável, e foram fantásticas no apoio. Assim, para além do Jorge e da Ana Paula, que não têm blogue, nomeio:
- Isabel Fidalgo, do blogue Frutos de Mim e Mar;
- JB, do blogue Em Tons de Azul , que assistiu a muitas hesitações e interrogações, e nunca faltou com o seu apoio. Muito pelo contrário;
- Zé Caldeira, do blogue portugalprofundo;
- Elisabete, do blogue Didascália;
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Entretanto, há pouco tempo, achei que tinha chegado a altura de levar o blogue a mais pessoas. E, de entre os novos seguidores, pessoas com quem tenho aprendido muito, escolhi, simbolicamente, alguém cuja lucidez e tranquilidade são referência:
- Gizelda, do blogue Desassossego.
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Apesar de só conhecer pessoalmente dois seguidores, tenho por todos a maior estima e carinho. O meu BEM-HAJA!
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sexta-feira, 23 de julho de 2010

VIOLETAS

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Já era tarde, mãe
E a translação
Em relógio solar
Deixava sulcos
Cavados e profundos
Na vontade
Do teu respirar
Ainda falavas
Com vontade
Da Maria menina e moça
Quando à tardinha
No fontanário
Em apelo de mulher
Trocavas olhares
Dissimulados
Com o príncipe aldeão
E as violetas
Deslumbradas
Davam as mãos
Na elaboração do cenário
Que formalizava
As razões do coração
O sol já se despedia
Para lá do monte
Mas ainda sentia
No teu olhar
O aroma das violetas
Que engalanou
Naquele fim de tarde
Com emoção e sem tino
O oráculo que descrevia
Num voar de cotovia
A luz do teu destino.
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Reedição
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terça-feira, 20 de julho de 2010

ASAS

.Margarida Cepêda, Sobre o rigor da geometria, o véu diáfano da fantasia
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Quando chegava o verão
Sentavas-te
À tardinha
Debaixo da figueira
Onde a brisa
Suave
Anunciava
O rumor das cotovias
Então pegavas
Delicada
Na minha mão
E contavas
Baixinho
Era uma vez um potrinho
Que adormecia
Feliz
A ouvir
As histórias do vento...
Sentia-te perto
E o tempo
Adormecido
No cantar do ribeiro
Parava
Enlevado
Para nos ver
Assim eram os dias
No tranquilo paraíso
Em que desenhavas
Minuciosa
O crescer das minhas asas
E eu sentia
Maravilhado
O vigor do teu voar.
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reedição
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sábado, 17 de julho de 2010

A COR DO SONHO

.Guilherme de Faria, Sonho do Pavão Misterioso
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Falavas convicta
Da cor do teu sonho
Como se a alma
Movimento profundo
Fosse tela manipulável
Adaptável
Em pano de fundo
Pegavas na paleta
Objecto comum
Circunspecto
E tentavas
Num impulso inocente
Pintar o sonho
Em rosa envolvente
Como tom predominante
Duma vida deslumbrante
Mas na intimidade
Sabia-te a pouco
E rebuscavas mais cores
Para misturar odores
No equilíbrio
Da tela desejada
Tentaste com verde
Dourado e turquesa
Mas ficava a incerteza
Da falta de leveza
Do sonho sem asa
Insististe com azul
Siena, borgonha
Branco floral
Mas não descobrias
A mágica proveta
Crucial e discreta
Para almejar
O tom essencial
Ficaste sozinha
Coração na mão
E então percebeste
Que a essência do sonho
Antes da cor
Carece de alma
Na sua dimensão.
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quarta-feira, 14 de julho de 2010

BRUMAS

.Imagem tirada daqui.
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Chegaste de mansinho
Quando a bruma
Asfixiante
Inundava o fundo do vale
E trazias contigo
Sem nada o prever
O aroma das madrugadas
Com o dia por resolver
O verde das faias refulgia
Com a claridade instalada
E a cotovia
Prenúncio de sinfonia
Galgava as alturas
Em ânsia ilimitada
Gostaste do teu papel
Forjado em conto de fadas
E a sorrir adormeceste
Mas esqueceste
A função primordial
(Deixaram de bater as asas)
Então o lume
Exigente na atenção
Lentamente esmoreceu
E a bruma
Expectante
Inundou de rompante
A razão do coração.
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Reedição
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segunda-feira, 12 de julho de 2010

O REENCONTRO

.Diana Huidobro, Marina
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..."Gosto das coisas simples, de sentir o ar que respiro..."
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Há anos que não se viam. A última vez tinha sido no almoço comemorativo do curso, já lá iam uns bons dez anos. O Pedro parecera-lhe bem mas, ao contrário do que acontecia frequentemente nos tempos em que eram dois estudantes ávidos de abraçar a vida, não conseguiram criar o clima propício a grandes conversas. Ele falara-lhe vagamente da filha, da escola onde trabalhava, e pouco mais. Nem sequer falara de pintura, a sua menina dos olhos de outros tempos. A vida tinha-os afastado, era notório. Longe iam os tempos em que se julgavam únicos e confidenciavam projectos, anseios, sonhos...
Quando o sistema de colocação de professores os separou, rasgaram ao meio uma nota de quinhentos escudos e cada um ficou com metade, para gastarem quando se reencontrassem. Porém, apesar desta espécie de promessa de amizade eterna, a pouco e pouco foram perdendo o contacto. Ainda se cruzaram algumas vezes, sempre disponíveis e confiantes, mas as novas pessoas e geografias com que se foram deparando acabaram por afastá-los irremediavelmente.
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Carlos costumava passar, quase todos os anos, uns dias numa praia lá bem a sul, onde as elevadas temperaturas e a luz dourada convidavam à moleza e ao desprendimento. Era o perfeito dolce fare niente, depois de um intenso ano de trabalho. Começara a ir para ali quando os filhos ensaiavam os primeiros passos, e eles deram-se bem com a suavidade daquelas ondas e a macieza do extenso areal. Entretanto cresceram, começaram a cortar os primeiros assomos de barba, mas ficou sempre o hábito de ir para aquele local protegido e afável. De vez em quando viajavam até outras latitudes, mas a ida para a luz do sul era sagrada.
No último Verão, sentado numa esplanada, ao deleitar-se com uma fresquinha enquanto passeava os olhos pelo jornal, Carlos foi surpreendido por uma voz que lhe pareceu familiar: era o Pedro. Engordara um pouco e os cabelos começavam a ficar grisalhos, que as marcas do tempo não esquecem ninguém, mas conservava o mesmo sorriso franco e aberto.
Que fazes aqui, como é que estás, senta-te...
O Pedro continuava a viver nas imediações do Montejunto, onde constituíra família. Enquanto os pais foram vivos ainda foi mantendo alguns laços com o torrão natal, mas depois da sua morte esses contactos esbateram-se por completo. Mas continuava a ter a Beira no sangue. Via à distância, com tristeza e desânimo, o esvaziamento cada vez maior do interior, e não entendia como é que, numa região tão depauperada e esquecida pelo poder político, as pessoas teimavam em não se unir num objectivo comum, preferindo dar guarida a vaidadezinhas e egos balofos. Às vezes sentia vontade de regressar, de respirar os cheiros dos lugares onde se fizera homem, de pagar a dívida ancestral, mas...
Continuaram a falar pela tarde fora, enquanto iam deglutindo os sabores de Verão em pratinhos bem guarnecidos. Lentamente a tampa do baú começou a abrir-se e, de forma natural, as memórias de acontecimentos, pessoas e paisagens começaram a esgueirar-se. A gargalhada tornou-se fácil, espontânea, e a cumplicidade de outrora insinuou-se.
No final, quando pediram a conta, puxaram da carteira e, com um sorriso estampado no rosto, cada um colocou, em cima da mesa, metade da velha nota de quinhentos.
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reedição
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sábado, 10 de julho de 2010

LAMENTO

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Costumavas vir
Pela vereda
Onde às vezes
À tardinha
Colhias amoras
Com que enfeitavas
Em devaneio
A harmonia dos dias
Esperava-te
No laranjal
Onde as mãos
Ansiosas
Absorviam o olhar
Com vestes de ternura
O tempo
Passava ao lado
E sentíamos
Na paixão das cigarras
A razão mais próxima
Da cumplicidade das estrelas
E até a brisa
Conciliadora
Espalhava no ar
O perfume das laranjeiras.
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Hoje não vieste
E só eu
Sem esteio
Senti a dor da tua ausência.
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quinta-feira, 8 de julho de 2010

MERGULHO

.Fernando Legatti, Espíritos Vegetais
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A jornada já ia longa. Olhava para trás e via tudo muito bem arrumado, tão bem que não deixava margem para o erro. E era isso que o inquietava. As certezas. Procurava as pontas dos nós, mas não atava nem desatava.
Quando, em pleno bosque, parou para descansar, extenuado, finalmente baixou a guarda. E sentiu-se, por momentos, invadido por um respirar diferente, alheio ao plano traçado. Procurou-se, tentando entender, mas a sensação não estava catalogada.
Ousou olhar, ousou sentir...
Quando toda aquela energia o possuiu, sentiu-se regredir aos primórdios. E soltou o choro inicial.
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terça-feira, 6 de julho de 2010

ANGÚSTIA

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Hoje a noite chegou de braço dado com a angústia. Trazia Kafka em contra mão, em busca do fio à meada num tratado de economia. Não houve metamorfose, pois o monstro há muito deitara a cabeça de fora, mas sentiam-se as garras da masmorra do castelo, em dimensão global. O negro da fome irrompia como cenário, mas o processo ainda estava incompleto. Na sombra, expectante, a besta esperava pelo seu momento, pronta a devorar qualquer resquício de utopia.
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domingo, 4 de julho de 2010

SINUOSIDADES

.Katia Almeida, Abstracto.
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Lias que a vida
Em sentido pleno
Estava nas coisas simples
Mas passavas
Sempre apressada
Sem tempo para estar
Sem tempo para ver
Em busca de tudo
Em busca de nada.
Procuravas-te
Em pilhas de livros
Conversas de bar
Pinturas criadas
No frenesim das palavras
(Às vezes gemias
Às vezes exultavas)
E com a luz fabricada
Traçavas cenários
A régua e esquadro
Da desejada verdade
Receita volátil
Sem sustentação
Castelos de cartas
Desfeitos no chão.
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Quanto mais ouvias
Mais depressa passavas
(Paliativo da dor)
E não reparavas
Num brinde à vida do pomar
Na sinfonia dos pessegueiros em flor.
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quinta-feira, 1 de julho de 2010

MURMÚRIOS

.Paul Klee, Jardim de Rosas
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Chamei-te. Queria partilhar contigo o voo das borboletas. Cansado de esperar que viesses, segui o rumo alado, efémera quimera de fim de tarde. No regresso, já feito lua, senti o perfume das rosas que levava ao teu quintal. Foi então que percebi a promessa do teu voo, enquanto murmuravas as palavras que encantavam a noite.
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