sábado, 27 de fevereiro de 2010

A PARTIDA

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A nave tinha acabado de partir. O comandante, cumprindo o acordado, orbitou o decrépito planeta fumegante, onde as chuvas ácidas e as elevadas temperaturas se tinham tornado um hábito. Durante muito tempo, alguma opinião pública bem tentou pressionar os políticos no sentido de se enveredar por outro caminho, mas a ganância fora mais forte, e tinha-se chegado a um beco sem saída. Já pouco havia a fazer por aquela carcaça malcheirosa, com população a mais e os recursos praticamente esgotados, e onde o saudoso verde apenas podia ser observado nos registos de outrora.
Era ele pouco mais que menino de colo e já se lembrava de ouvir o pai, ao serão, a falar da necessidade de se encontrar uma solução para a Terra. Nessa altura os problemas já eram tantos, que a única saída para o homem era recomeçar tudo num qualquer outro ponto do universo. A vida, dizia ele, é o resultado dum número sem fim de recomeços, e este seria apenas mais um. Mas isso era com as futuras gerações.
Fora devido a essa visão que o pai tudo fizera para que ele se especializasse em biologia, mineralogia espacial, física, química... A ida para o espaço era a grande esperança de sobrevivência de toda a humanidade e, quando o Conselho aprovou o plano de saída, tinha sido dos primeiros a ser escolhido. E agora ali ia ele em direcção a Utopia, um planeta com as mesmas características da Terra, descoberto noutra galáxia, e que tinha sido profundamente estudado. Fazia parte de uma equipa que ultrapassara rigorosíssimas provas para testar a sua capacidade, e a sua tarefa era dotar o planeta das condições mínimas para receber os primeiros colonos da Terra.
A órbita já tinha sido completada, e a nave rumava agora para o futuro. Para trás ficava um planeta desesperado, cheio de problemas de toda a espécie, mas esperançado numa nova oportunidade. Que seria apenas para alguns.
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terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

SEMENTES

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O concílio dos deuses
Em olímpico desdém
Assistia de longe
Ao ruir da ideia
Caduca e sem tino
Do imolar da alma
Por trinta dinheiros
Em palácios de frio
E a multidão enjaulada
Sem a almofada
Da bengala-cifrão
Sentia a atracção
Fatal e desgraçada
Do grande buraco negro
Temperado na ilusão
(Economia do vazio).
A esperança rareava
Na multidão sem freio
Definhando nas trevas
Em medo animal
Sem qualquer anseio.
Mas aqui e ali
Acendia-se a luz
E uma ideia nova
Pulando o muro
Semeava a esperança
Passando a mensagem
Da reinvenção do futuro.
Foi lançada a semente
Em toque de gente
No sentir colectivo
E abraçada a certeza
Com cariz profundo
De olhar em volta
E sentir a magia
Da perfeita harmonia
Do pulsar do mundo.
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quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

O REGRESSO

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À medida que o carro galgava os últimos quilómetros, sentia apoderar-se de si uma ansiedade pouco usual. Tinha saído da aldeia natal com tenra idade, e sempre procurara guardar a memória dos sítios onde crescera em feliz despreocupação. Pela sua mente desfilavam recordações e acontecimentos, resquícios de um passado quase irreal, emergindo dum tempo em que a vida se regulava pelo ciclo das estações.
Quando dobrou a grande curva da Volta, o casario, até aí escondido pelas colinas, surgiu-lhe de truz. Parou o carro e saiu lá para fora, deixando-se invadir pelo forte aroma dos pinheiros. Como em muitas outras aldeias do interior, as velhas casas de outrora foram submergidas por dezenas de vistosas vivendas, consequências do sonho emigrante, regressado ao velho torrão de origem para passar uma vida tranquila, sem mais preocupações que o cuidar da imprescindível horta. Ao centro era bem visível a altaneira torre da igreja, cujo repicar de sinos continuava a ser o marco regulador da vida daquelas gentes.
Entrou na aldeia, com o carro em marcha lenta, percorrendo a estrada que acompanhava o percurso da ribeira, vinda dos lados da Estrela. Os seus olhos indagavam velhos lugares, cenários onde, há muito tempo, um pequenote atrevido sorvia a vida num espaço resguardado pela geografia dos montes e pelas leis dos mais velhos. Passou junto à ponte medieval, cenário das primeiras tentativas de pescador, onde, toscamente munido duma linha de costura e de um alfinete a servir de anzol, tentara em vão a sua primeira captura, para gáudio dos próprios peixes. Logo a seguir surgia o lameiro, uma zona plana e ervada na margem direita da ribeira, palco de alguns conflitos, nas grandes tardes das férias grandes, entre as lavadeiras e a garotada irrequieta: aquelas porque precisavam do espaço para secar a roupa, estes porque não havia sítio mais maneirinho para a disputa de intermináveis jogos de futebol. Ao fundo via-se o açude, cujas águas represadas proporcionavam grandes banhos retemperadores nas tardes cálidas de Verão. Era ali, no Portal do Meio, que todas as gerações da aldeia aprendiam a nadar, num estilo pouco vistoso mas eficaz.
Continuou a marcha e subiu a rua que levava à igreja, que se desenhava, lá em cima, de forma opulenta. A meio da rua virou à esquerda, em direcção ao bairro onde nascera. Passou pela renascentista capela das Almas, com um amplo largo onde muitos santos foram festejados ao som da Banda Filarmónica local, e chegou ao velho fontanário da Fonte de Cima, que agora só servia para um ou outro burro se dessedentar. A rua que o vira crescer ficava logo a seguir, e decidiu deixar ali o carro.
Quando se apeou olhou em volta. Uma velha de lenço preto espreitava a uma janela, mas na rua não se via vivalma. Apenas um rafeiro curioso dava sinal de si, rosnando, desconfiado, para aquele intruso. A ruína de algumas casas era evidente, mas deixando ainda resquícios dum viver que se esvaíra demasiado depressa. Longe ia o tempo em que os dias decorriam, buliçosos, marcados pela azáfama do cultivo dos campos. Havia sempre muita terra para esgravatar, que a sobrevivência das famílias, com muitas bocas para alimentar, assim o exigia. Os mais novos começavam cedo a ajudar, e dividiam o tempo entre a escola, as brincadeiras e a iniciação à aprendizagem dos trabalhos agrícolas.
Quando chegou ao local da sua demanda, em vão procurou a casa onde nascera, onde o balcão de xisto era referência de toda a rua. Sentiu um aperto no peito, e virou costas a um mamarracho de janelas de alumínio que tinham construído no seu lugar. O encantamento tinha-se desvanecido com aquela visão. Ainda tentou preservá-lo, metendo pelo caminho do Ribeiro, cenário onde os irmãos mais velhos o tinham iniciado nos segredos das descobertas dos ninhos (Eu sei um ninho de melro! - gritou ele, na primeira descoberta) mas já não se conseguiu recompor.
Quando entrou no carro sabia que nunca mais voltaria. Já ali não pertencia. Mas iria continuar a conservar dentro de si, qual tesouro de incalculável valor, a imagem da casa de balcão de xisto com uma varanda de madeira, onde o velho Luís, ao serão, lhe contara tantas histórias de encantar.
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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

DESESPERANÇA

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Na letargia dos dias
Amargurados em nevoeiro
Já nem O Desejado servia
Para atenuar a agonia
Dum povo sem timoneiro.
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domingo, 7 de fevereiro de 2010

A PENHA

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O sábado decorria, pachorrento, longe da agitação de mais uma semana de trabalho. Enquanto tomava café, chegavam até ele as conversas das mesas vizinhas, quase todas elas versando o mesmo: a malfadada crise.
Tentou alhear-se do rumor, não porque fosse indiferente ao que diziam, mas não gostava da forma. Todos se preocupavam com o seu quintal, com as suas mordomias, mas recusavam-se a ir mais além na compreensão do fenómeno. Perspectivas!
Saiu para a rua e encaminhou-se para o quiosque dos jornais. Os pensamentos insinuavam-se em catapulta, mas a pouco e pouco foi pondo ordem nas ideias.
- Olá, Henrique! Estás bom?
Absorto nos seus pensamentos, nem dera conta do Tiago, velho compincha de outros tempos.
- Olha o Tiago! Dá cá um abraço, homem!
O Tiago trabalhava em Lisboa numa multinacional, e vinha de quando em vez ao torrão natal matar saudades duma infância feliz. Não gostava do ritmo de vida da capital, demasiado desumanizado para quem tinha crescido em convívio de vizinhos.
- Amanhã, bem cedinho, vou até à Gardunha. Queres ir comigo?
Passados tantos anos, a serra continuava a ser a guardiã do faz de conta de menino, o recanto imaculado dos sonhos intactos guardados dentro de si. Lá no alto o Tiago sentia-se rejuvenescer, e sempre que vinha ao Fundão não dispensava uma ida à Gardunha.
O Henrique, outro incondicional da serra, só podia dar uma resposta.
- A que horas?
Perto das oito da manhã já o carro atravessava Alcongosta, estacionando minutos depois no largo fronteiro à Casa do Guarda. Depois de contemplarem, durante algum tempo, a policromia dos familiares campos da Cova da Beira, colocaram as mochilas a tiracolo e iniciaram a subida até às antenas, onde a vista alcançava mais longe. Chegados ao alto, percorreram o caminho desenhado no cume em conversa amena e despreocupada, longe das preocupações que os aguardavam lá em baixo. A certa altura, mesmo à sua frente, duas perdizes levantaram voo, incomodadas com aqueles dois seres palradores e sorridentes.
Um pouco mais à frente viraram à esquerda, em direcção à Penha. Quando chegaram à enorme massa granítica nem pararam para descansar. Ignoraram a pequena gruta, situada na base - onde, segundo a tradição, viveram frades eremitas - e instalaram-se no alto do penhasco.
A vista dali era fabulosa, com uma panorâmica de 360º. Viraram as costas à Estrela e concentraram-se na vertente sul, na direcção de Castelo Branco. Em baixo, quase ao alcance da mão, espraiava-se o casario de pedra da aldeia histórica de Castelo Novo. Um pouco mais além, para lá da Soalheira, o sol espelhava-se nas águas da Barragem da Marateca, conferindo à paisagem um toque mais aconchegante e harmonioso. Mais à esquerda, para leste, desenhava-se Monsanto, a nave de pedra de mil e uma histórias e lendas...
Durante algum tempo não falaram, absorvendo o espírito do local. Naquele recanto de lendas e encantamentos, conseguiam alhear-se das pequenezas da vida, dando dimensão aos pensamentos mais íntimos. Tiago, em esboço de deslumbramento, sentia-se a criança de outrora, como se estivesse no último reduto das investidas duma vida de concessões. A seu lado, em plena comunhão com o local, Henrique mergulhava num estado de quase levitação, amparado na cumplicidade duma Natureza sempre pródiga em revelações...
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terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

VIRTUALIDADE

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Ligava a corrente
Ali mesmo à mão
E na investida
Por demais facilitada
Surgia o convite
Para viajar sem limite
Nas tentadoras rotas
Da grande evasão.
Navegava sem regra
Em sustentável leveza
Pleno de certeza
Enquanto teclava
Sedento do contacto
Premente e urgente
No alcançar do reino
De Pigmalião.
Lobrigava paisagens
Recebia mensagens
E em todo o percurso
Sem longe nem perto
Não havia deserto
Que contrariasse
A tremenda vontade
Da sua ilusão
(Parecia real).
E quanto mais via
Mais insistia
Na receita usada
Sempre alicerçada
No teclar infernal.
Só quando acordava
Com a profunda amarra
Do cordão umbilical
Eterno refém
Dum contexto banal
Percebia a ilusão
De tudo ter à mão
Na armadilha
Do mundo virtual
Longe da recompensa
Sofrida e suada
Da lição de vida
Por muitos temida
(E por poucos tentada)
Do sortilégio
Da paisagem real.
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