domingo, 31 de janeiro de 2021

DIÁRIO - 19

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Hoje, com todos os cuidados, houve visita do Miguel. Foi o suficiente para agitar a casa, em tons festivos, dando cor e substância a todos os recantos, com encantos e alguns cantos. Até eu cantei, entre múltiplas manifestações, aparentemente estranhas, que os adultos costumam adoptar com os bebés. Parecemos uns totós, mas sabe bem. 😊
A reboque também veio o Whisky, o cão arraçado de boxer, campeão de mimos e simpatias que insiste, numa manifestação muito própria, em querer brincar com um pau. De vez em quando, qual ambiente perfeitamente equilibrado, alguém lhe faz a vontade, em modo quanto baste. É claro que, com a sua presença, nunca mais ninguém viu o gato que teima em não sair daqui. Deve estar num observatório privilegiado, a ver como param as modas, à espera da melhor oportunidade para retomar o espaço que já sente seu. 
O Miguel, desta vez, não fica muito tempo, pois os pais têm que viajar para o Porto, por motivos profissionais, e não dispensam a sua presença. Enquanto puderem, e não depende só deles, querem ser pais a tempo inteiro, revezando-se no apoio, tentando conciliar o tele-trabalho de um com o trabalho presencial do outro. Por lá ficarão três dias, os necessários para dar vazão a um protocolo experimental, já bastante adiantado, com uma empresa do norte, ligada à investigação, e depois regressam à base. No fundo, e apesar das ausências, sinto-me grato por sentir, na prática deles, que é possível usufruir da qualidade de vida do interior e, em simultâneo, corresponder às exigências do mundo actual. Assim eles o queiram, assim as circunstâncias o permitam.
Aceno na despedida e, num modo muito íntimo, embora, de certa forma, egoísta, sinto que tenho tanto para lhe dizer, assim ele queira ouvir, acerca de equilíbrios, de olhares, de viagens, de afectos, da Natureza...! Ah, Miguel, meu amor, meu querido neto!
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sábado, 30 de janeiro de 2021

DIÁRIO - 18

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Margarida Cepêda, Procurando o princípio
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Eu sei que gostavas de, por mais que os sinais digam o contrário.
Eu sei que querias que, por mais que não te esforces por isso.
Eu sei que sonhas com, por mais que não dês corpo ao sonho.
Também eu gostava, também eu queria, também eu sonho. Mas, e tudo faço para saber o porquê, continuo por aqui. Para amparar, para sussurrar nos dias de vento, para desenhar cenários para lá do desassossego. E, qual eterna magia, a vida continua a desdobrar-se em apelos, deixando uma pista aqui, um sinal ali, um sorriso acolá.
Sabes, e por mais que a queiram vender assim, a vida não é moldada por catálogos, por ideias feitas,  por formatação de comportamentos. Isso é para os autómatos. A vida, acima de tudo, é para se viver de forma incondicional, desenformando as asas, gritando quando tem que se gritar, sorrindo quando tem que se sorrir, abraçando quando tem que se abraçar, chorando quando tem que se chorar. Porque nem tudo são rosas, disso sabes tu. Mas, se queres que as coisas façam algum sentido, está na altura de enfrentar os medos, de tentar dar corpo ao que a alma sente, de saberes que, sem ousares, tudo se resume a nada. A não ser ao dobrar dos sinos.
Salta, ousa, investe para o mundo. Se o fizeres, tenho a certeza disso, poderás levar só um pouco de mim - o que é tanto - mas muito de todos nós.
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sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

DIÁRIO - 17

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Após uma surtida lá por fora, para avaliação do terreno - a ficar densamente ervado, e com as árvores, principalmente as de folha caduca, em aparente apatia - regresso a casa com um esboço mental das próximas lidas a desenvolver. Sento-me à frente do computador, anoto tudo, com os apetrechos necessários para um bom desiderato, e dou uma volta pelos jornais on-line.
Percorro as páginas, na diagonal, pois tudo me parece mais do mesmo: pandemia, pandemia, pandemia... Bem sei que é preciso alertar, até porque, apesar da gravidade da situação, há gente que continua de ouvidos moucos, mas há que dar corpo a uma nova forma de estar na comunicação social, com a televisão em primeiro plano. Informar, sim, e sempre com transparência, mas procurar, em simultâneo, trazer à liça novas formas de estar, novas formas de olhar. Os problemas existem, são mais que muitos - a fome, o desemprego e outras maleitas não se devem esconder, já para não falar de outros que, com este surto, ficaram para segundo plano - mas para quê viver apenas disso, insistindo na cultura da desgraça? Por onde anda a objectividade e a seriedade do, até há pouco tempo, chamado 4.º poder? Eu tenho uma ideia acerca disso, mas hoje fico-me por aqui.
Ligo a máquina de café, sirvo-me e vou de novo lá para fora. Não vejo o gato. Deve andar à caça de algum rato campestre, operação que se quer silenciosa, e levanto os olhos para a Gardunha. Nuvens brancas povoam a encosta, ocultando os cerejais e os castinçais, mas deixando ver o recorte do cume num azul tímido, como que a prever mudança de cenário no horizonte. E, de facto, nuvens negras se aproximam, do lado oeste, empurradas pelo vento atlântico.
A pausa reconforta-me quanto baste. Regresso a casa, com um último olhar para as ervilhas, que continuam a prometer, e vejo um vídeo do Miguel, entretanto chegado, que me enche a alma, ao mesmo tempo que me desperta permanente interrogação: como é que um ser tão pequenino pode mexer connosco de uma forma tão intensa, suscitando pensamentos tão elevados? 
Sento-me de novo ao computador, ainda em modo incerto no que se segue, para tentar debitar mais umas palavras para o pretenso diário, a manter, até mais ver, até ao final do mês. Depois logo se vê, que há coisas que não que querem forçadas.
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quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

DIÁRIO - 16

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Já o tinha visto por aqui, aproveitando a ausência do cão. Rondava, olhava, mas não se aproximava.
Um destes dias chegou, de mansinho, como quem quer lavrar a terra, timidamente, num terreno cheio de ervas. Depois, aparentemente saciado num pires de leite, o gato baixou a guarda e espreguiçou-se. 
Mais um candidato a viver por aqui, no pequeno paraíso, sem ter que preencher qualquer papelada.
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quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

DIÁRIO - 15

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Depois do almoço gosto sempre de fumar um cigarro. Bem sei que não é muito saudável, mas um prazer é um prazer, embora não por inteiro, pois sinto sempre um certo grau de culpabilidade. Herança judaico-cristã, dizem-me, embora em modo superficial.
Hoje, após mais uma refeição, fui lá para fora - nunca fumo dentro de casa, é ponto assente - para dar vazão à minha costela epicurista. Enquanto fumegava, com o olhar atento à envolvência da paisagem, dou por mim a observar uma ave de rapina (um açor, um milhafre, um bufo, uma águia? Não consigo vislumbrar...) a planar, tranquilamente, não muito longe do local onde estava. O cérebro, esse eterno desconhecido nas suas múltiplas capacidades, focou-se, de imediato, vá lá eu saber porquê, na designação "ave de rapina". Que eu saiba, e desculpem-me a ignorância, essas deslumbrantes aves apenas se limitam a procurar alimento, e só o estritamente necessário. Quem rapina são alguns de nós, humanos, seres de humores muito variados, que não se coíbem de mamar numa teta até ela estar completamente seca. Sem se preocuparem com as consequências ou, como agora se diz, com os danos colaterais.
Tento fixar-me nas coisas boas do género em questão, que muitas há, e reivindico para a memória as pessoas que, de múltiplas formas, se esforçam, e de que maneira, por tentar que o mundo continue a girar, apesar da pandemia. Esses são os meus, os nossos, verdadeiros heróis.


terça-feira, 26 de janeiro de 2021

DIÁRIO - 14

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Imagem retirada daqui
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Aproveito uma pequena pausa da chuva e deambulo, lentamente, pela zona onde estão plantadas as ervilhas, espreitando sinais de algum crescimento. Sorrio com o que vejo. Aconchego a terra nalguns pontos, a recompor o que a água desfez, e remiro a geometria recomposta. 
De súbito, lá de longe, chega-me o badalar do sino duma qualquer aldeia, pausado e triste, inequívoco som do dobrar a finados. E, tal o efeito da herança cultural, afloram-me, espontâneamente, alguns laivos de contrição, qual convite à meditação sobre a vida e a morte.
A chuva regressa, embora timidamente. Enquanto me dirijo para casa, não deixo de cogitar: numa zona do país - o interior - em constante desertificação, onde ocorrem, claramente, mais óbitos que nascimentos, não seria de bom tom os sinos repicarem, de alegria, cada vez que uma criança nascesse, qual eterno hino à esperança?
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segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

DIÁRIO - 13

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Margarida Cepêda, Refúgio II
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Olhava em volta, inquieta, respirando a alteração das ondas. Mas só quando sentiu um arrepio, com a roupa molhada colada ao corpo, é que percebeu que tinha que se resguardar. 
Na velha casa de cores desbotadas, um velho búzio, para a acalmar, entoou-lhe uma canção milenar. Depois, de mansinho, murmurou-lhe ao ouvido que nunca é bom abraçar as tempestades.
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domingo, 24 de janeiro de 2021

DIÁRIO - 12

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Há uma fila que se estende, convicta, como que a querer vincar, bem fundo, e de voto na mão, as bases do rumo a seguir.
Parafraseando José Régio, e com a devida adaptação, não sabemos para onde vamos, mas sabemos que não vamos por ali. Assim seja, que os desafios, em modo de espera, são mais que mil.
Hoje, apesar dos dramas atrás da cortina, foi decretada uma pausa, qual satisfação, embora com riscos, do dever cumprido. Amanhã, que se faz tarde, tudo será mais premente, pondo à prova se é em vão, ou não, tudo aquilo que debitamos, em tempo soalheiro, acerca da cumplicidade e da solidariedade. Há que colocar em prática, pois é claro.
Quase sem me dar conta, assaltam-me, de mansinho, palavras duma canção dos Madredeus: haja o que houver, eu estou aqui. Enquanto depender da minha vontade, estarei sempre.
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sábado, 23 de janeiro de 2021

DIÁRIO - 11

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Em tempos de muita agitação, com muitas ondas de choque, se revisitássemos, como refúgio, a aldeia gaulesa de Astérix, seríamos levados a pensar, perante tal cenário, que o céu nos iria cair em cima. Mas daríamos luta, estou certo disso.
Entretanto, e para contrariar as aves de mau agoiro, chega-me o testemunho duma pessoa amiga acerca da resposta do neto, atento quanto baste ao momento que atravessamos, à clássica pergunta "que queres ser quando fores grande?".
O miúdo - com ar sério, coisa estranha nele - respondeu, de forma convicta:
- Quero ser médico para vencermos o coronavírus.
Podem soprar ventos contrários, mas há algo em nós que nos faz acreditar que tudo é possível. Temos é que, urgentemente, aprender a conhecer os nossos limites, que as vontades movidas a sonho nunca foram problema.
Lá fora, indiferente ao mundo dos humanos, a chuva continua a cair, numa cadência moderada, preparando a terra para a renovação da próxima estação, com particular satisfação das ervilhas plantadas no início  de Dezembro e que, para gáudio da "aldeia gaulesa", começam a sorrir.
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sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

DIÁRIO - 10

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Lá fora a chuva e o vento entrelaçam-se, em modo suave, enquanto o sol aguarda, pacientemente, por uma aberta para se mostrar. E, quando ele consegue um espacinho, tudo muda: soltam-se as cores, as aves cantam, os olhos brilham...
Enquanto a lareira crepita, tento debitar algumas palavras, que isto de enveredar por um diário começa a fazer-me comichão. Escrever por obrigação não é comigo, nunca foi, mas deixo o assunto para segunda análise.
Vou lá fora, bem apetrechado, e constato o quase inevitável. Na zona das frutícolas, duas laranjeiras, ainda jovens, e os dois limoeiros que plantei, com algum carinho, no último ano, acabaram por não resistir às temperaturas negativas que se fizeram sentir nos últimos tempos. Dói-me a alma, mas o sentido da vida passa por aí: um contínuo recomeço, assim o saibamos perceber. É por isso que, cada vez que recebo notícias do Miguel, que completa hoje seis meses, um sorriso aflora, espontâneo. O ser humano é mesmo assim, num constante carecer de esperança, como se de pão se tratasse.
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quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

DIÁRIO - 9

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Com o encerramento das escolas, finalmente os responsáveis deste país admitem o que já todos intuíamos: o controle da pandemia está a ser visto por um canudo. E se os números não param de escalar, com as eleições do próximo domingo eles vão subir ainda mais. Quinze dias de confinamento? É pouco, senhores, é pouco.
Haja testes, muitos testes, que a vida não pode parar. Por mais que doa, ela tem sempre pernas para andar. Assim acreditemos.
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quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

DIÁRIO - 8

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Num dia em que se bateram todos os máximos, no que à Covid diz respeito, refugio-me na figura do Miguel, sempre omnipresente, qual raio de luz a alegrar a minha existência. E, peço-vos, sejam clementes com as palavras que lhe dirijo, improvisadas na hora, em jeito de lengalenga, qual avô que, de tão babado, mal consegue esconder o sorriso. E isso é muito bom, podem crer. 
Um dia destes vou começar a soletrar-lhe a cantilena.
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Onde vai o Miguel
De cabelos cor de mel
Com um fio de cordel?
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Vai ao Cabo Espichel 
Munido dum farnel
Ver a onda e o batel.
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Onde está o amigão
Com sorrisos sempre à mão
Inundando o coração?
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Está no colo de sua mãe
A sentir o que é o bem
Que ela vai, mas sempre vem.
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Que é feito do menino
Sendo grande, é pequenino
E me faz fazer o pino?
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Foi fazer um soninho 
E sonhar c'um abracinho
Mãe e pai, nunca sozinho.
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Quem é o rei da brincadeira
Seja ao sol, seja à lareira
A rir de qualquer maneira?
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É o Miguel, podem crer
A sorrir e a comer
É o maior, é bom de ver.
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Não tenho visitado os blogues das pessoas que me são caras, é um facto. Está na altura de o fazer. Até já.
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terça-feira, 19 de janeiro de 2021

DIÁRIO - 7

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Hoje, por aqui, alguém aniversariou. A festa, obviamente, ficou adiada, mas, por entre telefonemas vários, sempre se festejou, simbolicamente, com pequenos mimos do nosso país, como que a querer lembrar que as coisas boas da vida estão mais próximas do que, por vezes, as vozes exteriores querem fazer crer: queijo da Serra (Beira Interior), presunto de porco preto (Alentejo), vinho Rovisco Pais (região de Palmela, Setúbal) e um bolo de confecção caseira, acompanhado com um licor de cereja da região. 
Temos que confinar, é certo, mas não temos que, longe disso, negar a nossa existência. É que a vida apela, sempre, ao que de melhor há em nós, jamais se compadece do cultivo de lamúrias.
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Adenda - Chegou, entretanto, via e-mail, o resultado do teste feito ao familiar em isolamento profiláctico: negativo, para satisfação de todos. Creio que vamos festejar mais um pouco. 
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segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

DIÁRIO - 6

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O Governo contorce-se, incapaz de acertar o passo entre uma dupla preocupação: a preservação da saúde pública e a salvaguarda económica. E, entre tanto titubear, a pandemia avança, qual bola de neve.
Eu sei que muito do que tem acontecido tem a ver com a incapacidade das pessoas em perceber o óbvio, por isso a solução nunca poderá passar por colocar paninhos quentes no problema. Ou se tenta resolver seriamente, doa a quem doer, ou então apenas semeamos para alimentar o choro e a desgraça. E o fado, reconhecido, felizmente, como património mundial (saravá, Carlos do Carmo, e tantos mais, onde quer que estejas!), não se deve cultivar desta forma. Merece muito mais elevação.
Chegam-me novas imagens do Miguel, qual poção mágica capaz de despoletar toda a esperança do mundo. Por ele, por nós, por toda a sua geração, e por todas as que se seguirão, vale a pena lutar. Obrigado pela luz que irradias, meu querido neto.
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domingo, 17 de janeiro de 2021

DIÁRIO - 5

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Por mais que a sentisse por perto, ela não disse nada. Eu também não.
Que fazer?
Considerei, obviamente, que se foi. Mas guardei-a, para sempre, num cantinho do meu coração.
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sábado, 16 de janeiro de 2021

DIÁRIO - 4

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Mudam-se os tempos e, ao contrário do que o grande Camões auspiciava, não se mudam as vontades. Muda-se, quanto muito, a cosmética, tal como constatou Tomasi de Lampedusa no seu magnífico romance "O Leopardo". Recomendo profundamente.
Chegam-me notícias dum familiar que esteve em contacto com um infectado com Covid-19. Há alarme geral, com algumas pessoas - poucas, felizmente - em comoção, como se a peste negra chegasse à família. A pessoa em questão já está em quarentena, apesar de, na altura do contacto, usar máscara (tal como o infectado) e de se ter mantido a uma distância prudente. Para todos os efeitos, dentro de dois dias vai fazer o teste. Em suma: por mais que nos mentalizemos das medidas certas a tomar, a irracionalidade tem sempre campo de manobra. Com efeitos colaterais, pois é claro.
A lareira crepita. Entretanto, para amenizar a coisa, chegam-me imagens do Miguel através duma vídeo-chamada. E então, qual mezinha abençoada, tudo fica para trás. O catraio está lindo, ávido de interagir, não se escusando à prova de novos sabores, para lá do leite materno: brócolos e cenoura. É verdade que, no início, ele estranhou, mas, tal como na genial frase de Fernando Pessoa aquando do lançamento, nos primórdios, da Coca-Cola em Portugal, depois ele entranhou. E, para terminar, por hoje, nada melhor que socorrer-me de Mestre Gil (Vicente), quando escreveu em título, publicando, que "E assim se fazem as cousas". Dito isto, e procurando analisar tudo o que surgiu de sopetão, deixo o teclado em repouso.
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sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

DIÁRIO - 3

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Mais um dia, com um despertar acompanhado de muita geada, mas o sol, qual herói de BD, irrompe a meio da manhã e, bem disposto, distribui algumas flores, pejadas de sorrisos, tentando-nos fazer sentir como gatos ao sol. Mas é ilusório convite.
Não estraguemos as boas intenções do astro, nem sempre virado para isso, pois também ele está sujeito à ditadura do tempo, e avancemos para um olhar panorâmico, qual minúsculo quintal perdido nos confins do universo. Há muito para lá, que nos ultrapassa, mas por ora cinjamo-nos ao que a vista alcança, que muito há por resolver. E a carecer de crença.
Os ecos do mundo dão a entender que a ordem pré-estabelecida está a ser colocada em causa, com a multidão de excluídos a levantar, cada vez mais, a sua voz. O "bichinho" não veio ajudar em nada, antes pelo contrário, e as rupturas são cada vez mais visíveis, abrindo portas aos cavaleiros da sombra, cultores do medo, e que, vá lá saber-se como, enriquecem cada vez mais à custa da desgraça alheia. E, com tudo isto, a questão ambiental fica para segundo plano, enquanto grassam, em simultâneo, ondas de frio e ondas de calor.
Felizmente, em contraponto, chegam-me novas duma homenagem, aqui perto, com as devidas salvaguardas, a Eugénio de Andrade, eterno poeta das essências, dos afectos, da procura da harmonia. Relembro, interiormente, algumas palavras do poeta...
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É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
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É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
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É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
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Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer. 
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quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

DIÁRIO - 2

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Continuam as noites friorentas, com o sol a assomar durante o dia com um brilho enganador. Só os gatos se deleitam, deitados nos muros, aproveitando para tranquilas cogitações de que só eles sabem.
No mundo dos homens, com opiniões diversas, debatem-se as regras de confinamento, com a generalidade dos sectores confinados a defenderem que deveriam fazer parte das medidas de excepção. Vai-se a ver, para agradar a todos, não haveria confinamento. Entretanto, nos hospitais e centros de saúde, o pessoal que lá trabalha desespera por uma pausa, enquanto o tal candidato presidencial continua a matraquear incessantemente, sussurrando para a parte irracional das pessoas. E vai vendendo, o diabinho.
Lá fora, com a terra em período de regeneração, as diversas sebes requerem a minha atenção, qual cabeleireiro de abas largas. É tempo de lhes fazer a vontade.
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quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

DIÁRIO - 1

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Lá fora caiu neve, qual eterna magia, mas esfumou-se, ao contrário do frio. A intensidade não foi muita, é certo, mas foi a suficiente para, por momentos, me desconfinar, sentir a linguagem do silêncio, pejada duma enorme tranquilidade, enquanto observava as árvores. Foi bom, mas breve. Talvez seja melhor assim, até porque um dos limoeiros novos, plantado com todo o carinho, parece ter ficado em risco.
Entretanto o frio continua, solicitando contínuo aquecimento, em simultâneo com a desfaçatez dum candidato presidencial que, de olho vivo, tudo aproveita para soprar ao ouvido os incómodos óbvios da vida, escolhidos a dedo, qual diabrete irreverente que tudo faz para dar nas vistas, enquanto se ri a bandeiras despregadas com a angústia das vítimas, incapazes de perceber a armadilha dum pretenso abraço envenenado. E, quanto maior o sorriso, maior a desgraça. Ah, pobre Portugal!
Lá fora, aparentemente indiferente a tudo, o cão teima em reivindicar companhia para as suas brincadeiras. Sem se aperceber, e sempre fiel à sua simplicidade de ver as coisas, acaba sempre por desencantar sorrisos nos reivindicados. Valha-nos isso.
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terça-feira, 5 de janeiro de 2021

RECEITA DE ANO NOVO

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Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)
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Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
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Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.
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Carlos Drummond de Andrade
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