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(continuação)
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Margarida Cepêda, ...E o paraíso ali tão perto
.(continuação)
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Ali em cima, distanciado, as coisas pareciam-lhe mais claras, o pensamento discorria com outra fluidez. E o que antevia não era muito apaziguador.
A maioria das pessoas, passado o primeiro tempo de isolamento, continuava num registo de aguardar pelo sinal de regresso à normalidade, mas as coisas nunca mais seriam as mesmas. Aguardava-os um mundo periclitante, de escassez, em busca de novos equilíbrios, com profundas mossas provocadas pelo desvario duma ânsia de viver a vida numa embriaguês sem amanhã. A apreensão e o medo eram incontornáveis, com o espectro da pobreza a assomar.
Notava-se, contudo, com alguma nitidez, o movimento de certas pessoas que não se limitavam a aguardar. Numa vontade, forjada interiormente, de contribuir para apaziguar o presente e lançar sementes na construção do futuro, estabeleciam redes solidárias para fomentar equilíbrios, transformando o bem-estar dos outros no seu próprio bem-estar. Para além dos combatentes na primeira linha, fundamentais no estancar da ameaça, estas formiguinhas, longe das luzes da ribalta, teciam, a seu modo, pequenas bandeiras de esperança, encarnando aquilo que de melhor tem o ser humano.
Do meu poiso sinto que algo começa a toldar a luz. Olho para cima. Aproximam-se nuvens negras, óbvio sinal de que a chuva se anuncia. Levanto-me, apreensivo, enquanto visto o impermeável. Estava na hora de descer.
Aguardam-nos tempos difíceis, sem dúvida, mas os escolhos serão muito maiores para quem apenas se preocupou em ter. Esses, porventura, acabarão por achar que estão pobres.
Apresso o passo. A descer todos os santos ajudam, reza a sabedoria popular, e rapidamente chego ao sopé. Entro na zona das quintas, embalado pelo verde novo das árvores, e nem rasto do homem do tractor. Os pensamentos continuam a fluir, sem interrupção, e nem os primeiros pingos, a pedir passo ainda mais acelerado, conseguem travar a torrente.
Naquilo que nos aguarda, quem se esforça por ser livre, cultivando o espírito, acabará sempre por sobreviver. Essas pessoas têm bem ciente que o planeta passará bem sem nós. Se conseguirmos travar o paradigma que nos trouxe até aqui - e se, em vez de uma pandemia, estivermos a inaugurar uma era de pandemias?(*) - e quisermos chegar a porto seguro, é fundamental, para além de escolher melhor quem nos lidera, começar povoar a vida com mais luz, mais espaço, mais alma. Para além do profundo respeito pelo espaço em que habitamos, é preciso ser tudo em cada coisa, pôr quanto se é no mínimo que se faz, com a poesia sempre a tiracolo.
Quando entro nas ruas da cidade já a pausa da chuva se tinha instalado. Ao longe, um homem, de máscara, passeia o cão. Continuo. No quarteirão seguinte, junto a uma padaria, meia dúzia de pessoas, também munidas de máscara e a distância conveniente, aguardam, ordenadamente, pela sua vez. Galgo mais algumas ruas e chego ao habitualmente buliçoso centro da cidade. Nem vivalma. Apenas um ou outro carro, de forma tímida, ensaia algum movimento. Continuo a avançar, com a sensação de abandono a adensar-se, e chego à zona de escritórios. No outro lado da rua, guardando distância prudente, duas pessoas cruzam-se, com as máscaras a não conseguir esconder o olhar esquivo e desconfiado. Tiro o impermeável, dobro-o e prossigo. Junto do hiper, já a acusar algum cansaço, encontro, finalmente, algum movimento: um número considerável de pessoas, de carrinho na mão, encena um quase desfile de máscaras, configurando um perfeito cenário de filme de ficção científica. Enquanto prossigo, e sem pré-aviso, insinua-se na memória um título de antigas leituras: Um Estranho numa Terra Estranha.
Quando entro nas ruas da cidade já a pausa da chuva se tinha instalado. Ao longe, um homem, de máscara, passeia o cão. Continuo. No quarteirão seguinte, junto a uma padaria, meia dúzia de pessoas, também munidas de máscara e a distância conveniente, aguardam, ordenadamente, pela sua vez. Galgo mais algumas ruas e chego ao habitualmente buliçoso centro da cidade. Nem vivalma. Apenas um ou outro carro, de forma tímida, ensaia algum movimento. Continuo a avançar, com a sensação de abandono a adensar-se, e chego à zona de escritórios. No outro lado da rua, guardando distância prudente, duas pessoas cruzam-se, com as máscaras a não conseguir esconder o olhar esquivo e desconfiado. Tiro o impermeável, dobro-o e prossigo. Junto do hiper, já a acusar algum cansaço, encontro, finalmente, algum movimento: um número considerável de pessoas, de carrinho na mão, encena um quase desfile de máscaras, configurando um perfeito cenário de filme de ficção científica. Enquanto prossigo, e sem pré-aviso, insinua-se na memória um título de antigas leituras: Um Estranho numa Terra Estranha.
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(*) Interrogação do escritor italiano Paolo Giordano
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