domingo, 28 de novembro de 2021

A INICIAÇÃO

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Foto de AC
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Foto do João, com 6 anos e meio
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Gosto de pinhais. As razões para isso são difusas, mas talvez o facto de ter nascido numa aldeia rodeada por eles tenha o seu impacto. Não sei se isso explica tudo, mas sempre senti naqueles espaços o prolongamento das histórias que ouvia à lareira, num encantamento proporcionado pelos mais velhos. Na sequela dessas narrativas desenhava mouras encantadas, imaginava cenários de lobos de pôr os cabelos em pé, achados mirabolantes de tesouros, qual recompensa para o mais sagaz. Em suma, a memória ficou, para sempre, povoada de sensações de que, naquele território, tudo era possível.
Mas voltemos ao presente. O domingo passado acordou acinzentado, pouco convidativo, com o sol a fazer birra, mas com a bênção do vento a dormitar. Tendo em conta a vontade dos convocados, todos familiares, havia, está mais que visto, condições para uma incursão ao pinhal, no sopé da Estrela, em busca de míscaros. Na ementa, para além da vontade de cada um em respirar e vasculhar o ambiente único do pinhal, sempre presente a partir da convocatória, desta vez havia um suplemento extra: cerimoniar a iniciação do João, a caminhar dos seis para os sete anos, como novo membro nestas andanças. É assim, todos o sabemos e sentimos, que é com o constante rendilhar e acariciar dos afectos e das atitudes convergentes que o sentido de família se cultiva e se perpetua.
Os míscaros não abundavam, é certo, até porque a chuva, condição essencial para o seu eclodir, tem estado ausente. Problema sério que se adivinha, todos o sentem. Mas, apesar disso, sempre ia surgindo um aqui, outro ali, numa tendência mais que suficiente para manter incólume a magia da pesquisa.
O João, o nóvel iniciado, tentava manter as expectativas em alta, mas, sempre sob o olhar atento dos mais velhos, só lhe surgiam cogumelos venenosos. Quando descobria um inquiria, expectante, e os outros elucidavam, pacientemente. E, notava-se, o que ele queria era descobrir o pote de ouro, como todo e qualquer iniciado, seja no que for. Às tantas, perante tanto cogumelo venenoso, e apesar da descoberta dum ou outro comestível, o João começou a "agredir" os cogumelos "inimigos".
- Que estás a fazer, João?
- Estou a destruir os cogumelos assassinos.
Nova paragem, pretexto para nova lição. Há cogumelos que não se devem comer, mas que poderão ser úteis, por exemplo, para medicamentos. Mais perguntas, esboço de novas respostas, as suficientes para incutir o devido respeito em tudo o que observávamos, em tudo o que nos rodeava, que nos abençoava.
A pausa surge, benfazeja, para um reforço alimentar. E, à mesa, já se sabe. As histórias soltam-se, o riso alastra, cultiva-se a cumplicidade, até porque o vinho e o presunto serrano eram bons. E o João, deglutindo o seu Bongo, chegou à conclusão de que, por hoje, o melhor era pedir a Canon ao tio para ver o pinhal com outros olhos, a fim de complementar, e documentar, a sua iniciação. Vontade satisfeita, pois é claro, enquanto afrontávamos o pinhal para nova investida. E, desta vez, o João não destruiu, apenas documentou.
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quinta-feira, 11 de novembro de 2021

DANÇANDO NA SUBTILEZA DAS PINHAS

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AC
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Por mais que o tempo passe, e se ele passa!, nunca sei como estas coisas acontecem. Só sei que ela chegou, com a luz a iluminar o pinhal, conjugando o verbo apanhar nas pinhas que íamos metendo no saco. Estavam fechadas, é certo, reagindo ao frio que abalroou os dias da passada semana, mas nada que amordaçasse a convicção de que, em ambiente ameno, elas voltariam a abrir.
Encheu-se um, encheram-se dois, depressa se almejaram os três sacos. E por ali ficámos, no abrigo do silêncio do pinhal, respirando mil e uma estórias com sonho e substância. As pinhas, cúmplices, sentindo a sintonia, aconchegaram-se no sono dos justos, sabendo que, em hora própria, iriam ter o seu grande momento. A lareira podia esperar.
Ela foi, de mão estendida, as pinhas ficaram. Só irá voltar, eu sei, quando as pinhas, na lareira, começarem a crepitar.
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