sábado, 31 de janeiro de 2015

PULSAR

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Fotografia da Isabel, do blog Palavras Daqui e Dali
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Há um pulsar que te habita, te conduz os gestos, resistente às madrugadas de frio.
Procuras o calor, apesar de insistires nas vestes da saudade. O teu canto, adornado com pingentes de delicado gelo, suspira discretamente pelo que foi, pelo que podia ter sido. Mas ainda anseia.
Há um eterno pulsar que te habita, te envolve, te impele. Por mais escuro que seja o teu vestido, ficará sempre bem com uma rosa vermelha.
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sábado, 24 de janeiro de 2015

NÓS

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Fotografia de AC
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Sinto-te absorta no mar como já antes fizeras com as pessoas, com as árvores, com as pedras. O semblante, para os menos atentos, parece ter mudado, mas a indagação é a mesma. Rabiscas, interrogas-te, mas a harmónica relação teima em não ser clara.
Aos homens, na sua ascensão, foi-lhes dado lastro sem sustentação. Agora, com demasiadas pontas soltas, tudo questionam, o passado e o futuro tendem a ser ciência oculta. Mas tu sabes que não é assim, e continuas a teimar. Não te rendes. Um dia, quem sabe, talvez as pontas encontrem o seu verdadeiro lugar.
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terça-feira, 20 de janeiro de 2015

PORMAIORES

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Fotografia  de AC
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O ser humano, eterno nómada em busca da compreensão, transporta, dentro de si, uma mala de insatisfações, bordada de desassossegos. Valem-lhe, no refrigério dos caminhos, os apeadeiros, que são, no fundo, os miminhos das pequenas coisas com que vai adoçando o seu percurso, assim ele tenha engenho ou arte.
Ontem, a caminho da escola, o olhar descortinou, a alma sentiu, a máquina captou. A vida, para além do ruído das grandes parangonas, é, em muito, feita do somatório das pequenas coisas que nos aconchegam e fazem cócegas à alma.
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sábado, 17 de janeiro de 2015

ONDINHA VAI, ONDINHA VEM...

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Margarida Cepêda, Ela, o violino e vagas
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As ondas, com maior ou menor amplitude, parecem emanar todas do mesmo filtro, ter o mesmo padrão. Mas não. À superfície denotam cor, impulso e, mesmo na mansidão, ousadia quase indomável. É nos bastidores, contudo, que fermenta aquilo que verdadeiramente as impele, ordem ancestral filtrada no imaculado pêndulo da conjugação de todos os factores, imune a rezas, invocações e crendices. Apenas as acções contam. 
Quando chegaste, promessa de onda avassaladora de todas as muralhas, tudo se parecia conjugar para a perfeita arquitectura. Espantavas enquanto envolvias, prometias novas telas, novas encenações. Esqueceste, no entanto, o essencial: até para admirar é preciso inventar espaço para respirar.
Ondinha vai, ondinha vem...
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sábado, 10 de janeiro de 2015

(DES)CAMADAS

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Lembras-te, meu amor, daquela música? Sorríamos quando a ouvíamos, ainda sorrimos, apesar de sabermos que não existe a tal canção, ela apenas faz cócegas nalgumas das muitas camadas com que vamos adornando a compreensão das coisas. 
Já falámos disso tantas vezes e continuamos a falar. Umas ao final da tarde, a olhar para a multifiguração dos tons alaranjados, outras à lareira, aconchego ancestral tecido em partilha, em pequenas confidências. Esculpimos, no soprar do mais fino pó, que cada pessoa vai acumulando, ao longo da vida, camadas e mais camadas de segredos, ligados por pequenos filamentos, que são a complexa estrutura, quase invisível, do seu edifício.
Disseste-me, às tantas, que não te querias limitar à descoberta das tuas camadas, querias ousar descobrir as minhas e as tuas, onde convergiam ou se despediam.
Sentias que, na concordância, o meu sorriso era espontâneo. Também eu te queria dar as mãos.
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sábado, 3 de janeiro de 2015

VISLUMBRE

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Fotografia de AC
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Quando, após uma tarde de diálogo com a terra, se fotografaram as ervilhas, os alhos e as favas que sobraram da faina de cultivo, já o sol começava a beijar as eólicas da Maunça, dando amplitude ao rasto dos aviões que riscavam o céu.
Os dias são o que são, tela multidimensional onde navegamos quase às cegas, transpondo portas de azáfama, quase sempre por caminhos bifurcados, mas ao fim da tarde eles têm o condão de se enfeitarem, de desenharem, nas vestes alaranjadas do render da guarda, discretos rabiscos da arquitectura do tempo. É como se, por brevíssimos momentos, num ritual tão velho como o mundo, se abrisse a caixa de pandora, mas apenas o suficiente para dar um pouco mais de côr à ânsia de saber, de sentir, de perceber...
Os dias, em final de tarde, são um vislumbre dos deuses que há em nós. 
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Fotografia de AC
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