segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

BRECHAS

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Fotografia de AC
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O frio, cenário de eterno conflito entre inibição e conservação, tolhe o movimento das asas da borboleta, surgida não se sabe de onde, aproveitando, talvez, uma brecha nos humores dissonantes da natureza. A manhã, bem agasalhada, já vai bem alta, mas o sol que rompe, ainda que com laivos de timidez, é mais que suficiente para atear a volúpia da vida. Um poisar aqui, outro mais além, mas sem a desenvoltura dos gloriosos dias de verão.
A brisa, vinda dos lados da Estrela, não aconselha grandes devaneios. E a borboleta, apesar das brechas, fiel às fiáveis leis da criação, recolhe o seu voo, para parte incerta, para fenecer ou, quem sabe, à espera que o milagre se perpetue em novos laivos de luz.
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domingo, 14 de dezembro de 2014

RABISCOS DE NOVOS NATAIS

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Hélio Cunha, Em Nome do Filho
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Todos os dias se levantava à mesma hora. Deixava-se envolver pelo jacto de água fria, fazia a barba, preparava um café instantâneo e comia uma fatia de pão barrada com planta. Depois, cuidadosamente, pegava nos anúncios de jornal, já devidamente sublinhados, e mergulhava no purgatório, quantas vezes inferno, do lado negro da vida.
O seu currículo era ele próprio, o parco dinheiro não era NOS nem MEO, era seu. Medido ao cêntimo, diga-se, habituado que estava ao senhor Negaleva. Mas insistia.
Por mais que se esforçasse, por mais que sorrisse, a filosofia Negaleva parecia a verdade suprema, tatuada nos mil rostos da urbe, sonâmbulos sem qualquer causa, a não ser a sobrevivência. E, quase sem se dar conta, começou a soçobrar, a render-se a evidências, prescritas em receitas, por quem vive para lá do muro. A culpa era sua, diziam, e começava a acreditar.
Num fim de tarde, já quase sem fôlego, refugiou-se nas escadas dum qualquer centro comercial. Não via nada, não ouvia, apenas lhe batia à porta o desespero, a vontade de desistir. Ainda tentou esbracejar, invocando as palavras de Torga...
De seguro,
Posso apenas dizer que havia um muro
E que foi contra ele que arremeti
A vida inteira.
Não, nunca o contornei.
Nunca tentei
Ultrapassá-lo de qualquer maneira.
A honra era lutar
Sem esperança de vencer.
E lutei ferozmente noite e dia,
Apesar de saber
Que quanto mais lutava mais perdia
E mais funda sentia
A dor de me perder.
...mas a dor era demasiado funda, a dignidade esvaía-se.
De repente, rompendo as densas camadas de nevoeiro que o envolviam, uma voz delicada, despida de artifícios, fez-se ouvir:
- Mãe, aquele senhor parece perdido. Não vês?
As palavras podem ter múltiplas facetas, mil e um rostos, mas naquele momento, para ele, eram as palavras certas. Levantou-se, sorriu para o miúdo e piscou-lhe o olho. Depois, com gestos cuidados, sacudiu o pó das calças, ajeitou o casaco e seguiu. Tal como dizia o poeta, a honra era lutar, mesmo com pouca esperança de vencer.
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domingo, 7 de dezembro de 2014

TEMPERAR AS PAUSAS, SOPRAR AS NÁUSEAS

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Fotografia de AC
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A manhã, ainda a contas com um arremedo de geada, descobriu-nos a subir uma das muitas encostas da Estrela. Éramos três, sem qualquer familiaridade com a trindade, o que nos movia não era o verbo. Bastava-nos, ínfimos que somos, a partilha da terra, das árvores, do ar que se respira por ali. 
O pretexto, desta vez, para palmilhar parte da serra, eram os cogumelos silvestres, a que, por aqui, apelidamos de míscaros, e nada melhor que procurá-los nos pinhais, seu natural poiso. 
O terreno, íngreme, parece arquitectado para desencorajar os menos avisados, mas nada que perturbe a coesão do grupo. A manhã é para se fruir, sem pressões, estamos ali para sentir, ainda que por momentos, a harmonia do local.
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 Fotografia de AC
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Os cogumelos, experimentadíssimos no jogo das escondidas, vão retardando o natural desenlace, dando mais cor ao sentido da procura. E quando, de caras com o descobridor, ultrapassam o instante da surpresa, é impossível não se associarem ao júbilo da descoberta, gravado em efémeras exclamações. 
A cesta, pacata testemunha dum jogo milenar, acolhe-os, propiciando diálogos alheios a bípedes criaturas. E a manhã, sorridente, vai dando guarida a leves e naturais anseios, quase de criança, como se, por momentos, o tempo dos homens se tivesse aquietado.
Um copo de Reguengos, a meio do desenlace, mais acentua a apaziguante sensação. E, como se não fosse pouco, à saída do santuário, ainda que de forma esquiva, a aparição dum casal de perdizes ajuda a apaziguar a alma.
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domingo, 30 de novembro de 2014

DEMANDADA, DE MÃO DADA

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Margarida Cepêda, Acima do mar das nuvens
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Contornavas, num jeito que te vestia a pele, as palavras de curto alcance, com a morte anunciada, e seguias. Não te entendiam, não viam o que tu vias, apontavam-te o dedo. Doía-te, mas sorrias. E continuavas.
Hoje, quando olho para a tua visão abrangente, saúdo o teu sorriso, cada vez mais depurado, a tua ousadia em ler os olhos de Minotauro, o abraçar da solidão do querer saber, do querer ser.
Eu sei que só olhas para baixo nas pausas, nos momentos de arrumar o que transportas, talvez, quem sabe?, na esperança de vislumbrar cumplicidades. São paragens necessárias, o lamber de feridas, a descontrição das opções. Depois, saciada a bolsa de afectos, é o universo que te espera. 
Quanto mais mergulhas, mais pequena te sentes, tamanho é o mistério daquilo que nos envolve. E rejubilas. Mas, por mais que mergulhes, continuas a sentir a ausência do calor nas mãos.
5xA_1-hDdPd-fp2.
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domingo, 23 de novembro de 2014

QUANDO AS LÁGRIMAS SABEM A MEL

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Fotografia de AC
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Hoje lembrei-me de ti, do jeito como sorrias, da forma como transformavas o fel em mel. Era por isso que, na tua abrangência, todos te procuravam.
Descobriste cedo que, se nos entregarmos ao fatalismo, a vida pode ser dura, agreste, canto choroso sem vislumbre de janelas. Mas, na tua infinita vontade de cantar e de abraçar, até as janelas eram pouco para ti. No teu espírito, avesso a fronteiras, aspiravas à ausência de paredes, que todos se olhassem olhos nos olhos. E, com a força da partilha, temperada num constante sorriso, foste derrubando os muros que te cercavam.
Hoje, no comemorar do aparente fim de certos muros, não há nada que se te iguale. Tu derrubaste construindo, abriste sorrindo, o calor do teu abraço, tão único, aconchegava para lá da esperança.
Hoje lembrei-me de ti, da forma como sentias, da forma como sorrias. É por isso que, imbuídas do teu legado, certas lágrimas têm o sabor do mel.
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domingo, 16 de novembro de 2014

CRONIQUETA DUMA MANHÃ DE SÁBADO

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Imagem tirada da Net
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A chuva, imune a injustas reclamações, conjuga o verbo persistir. 
Espreito, por detrás da vidraça, uma aberta, uma pequena folga que seja, e dirijo-me para o lado dos pinheiros. As gotas que escoam dos ramos, a dar o melhor delas, ainda me piscam o olho, mas falta-lhes o delicado toque solar, caleidoscópico porto de embarque para outra dimensão. Não, hoje não há milagres, as botas teimam em resmungar contra o terreno demasiado mole.
Tu bem perguntas para onde vou, mas raramente sei para onde. Não, hoje não há milagres, apenas sobram pequenas certezas. Hoje, com a tal música como pano de fundo, vou dialogar com a lareira.
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domingo, 9 de novembro de 2014

DELONGAS NO ESVOAÇAR DE VERDADEIRAS ASAS

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Tarde de domingo. Rompendo por entre as nuvens, um raio de sol ousa temperar o frio, que já se faz sentir nos ossos, mensagem amiga para retardar o acender da lareira.
Tinha acabado a faina que envolveu sal, alho, louro, orégãos e cascas de citrinos, retoque final na conserva de azeitonas retalhadas. Com o ar de satisfação das coisas feitas, passo ao lado da nespereira, árvore com obscuro contrato primaveril, e ouço as abelhas. Sustenho a respiração. Dentro de mim dispara a tecla da sempiterna maravilha.
Volto atrás para me socorrer da máquina, procuro-as, mas elas são esquivas. No cerimonial do seu labor, um intruso é sempre um intruso.
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Insisto, envolto por inteiro na perfeita laboração. E, de tanto me imiscuir, dou-me conta que me legaram um labirinto.
Sorrio do óbvio. Quando olhamos para o que nos rodeia, e por mais que argumentemos com a nossa inteligência, a ignorância, ainda que por vezes aveludada, é o que melhor nos caracteriza.
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Fotografias de AC
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sábado, 1 de novembro de 2014

ACERCA DO DEPURAR DAS TEIAS

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 Hélio Cunha, Antemanhã


Há um círculo onde te resguardas, tecido na linguagem das letras, quase sempre no breu, com ténue vislumbre dum raio solar.
Há um silêncio que perdura nos livros que guardas, fogo latente até à eternidade.
Há algo em ti, por mais que labirintes, que me leva a chamar-te amigo.
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domingo, 26 de outubro de 2014

ETERNO FEITIÇO EM QUARTO CRESCENTE

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Margarida Cepêda, Lua crescente
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Quando a noite
eterno e sedutor mistério
envergava as melhores vestes
hálito frio de inconfessáveis temores
aconchegava-te a mim
consagração palpável do fruto
e esconjurava gigantes e duendes
bruxas e princesas
heróis e vilões.
Sentia cada movimento do teu corpo
cada alteração do respirar
almofada visceral
em eterno confronto 
com o humor das ondas.
Quando acordavas
sol intenso adornado de flores
o teu olhar era o filtro do mundo
o teu sorriso o meu sorriso
breve trégua de apertado coração.
Depois
quando já soletravas sol e lua
comecei a levar-te para o quintal
e aí
teatro mágico de mil cenários
continuei a enfeitiçar-te
em incondicional rendição
às teias da minha voz:
era uma vez...
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domingo, 19 de outubro de 2014

DESCOBERTA

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Margarida Cepêda, Descoberta
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Mergulho repetidamente ao mais fundo de mim, pretensão fotográfica do turbilhão das águas. Tento captar o movimento, a densidade, mas em vão. Não há configuração, o padrão refaz-se a cada momento. E surge a constatação. Não sou onda, não sou mar, apenas ínfima gota à deriva.
Olho em volta e respiro o debater de outras gotas com o mesmo anseio. E então percebo. A realidade não é o resultado de um olhar, mas o somatório de muitos, unidos na mesma vontade. Temperado, de preferência, com esperança.
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Dezembro de 2010
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domingo, 12 de outubro de 2014

A CADEIRA

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Hélio Cunha, O anjo e a musa diante das ruínas da Europa
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Mantivera-se sempre à distância. Quando, por fim, se abeirou do cais, os barcos já enfunavam as velas, os porões prenhes de esperança. Não participara nos debates, não vira a construção das naus, não partilhara cuidados e sorrisos. Perdera o bilhete para a viagem.
Aguardou, clamoroso, de braço dado com o tempo, por sinais vindos do horizonte. Em vão. No cais, já carcomido pela ausência de sonhos, até as gaivotas pareciam reféns da velha tela perdida no sótão. Apenas a cadeira denotava algum brilho, apurado pela quente familiaridade do roçar das calças.
Quando vieram os turistas, entre algaraviares vários, ainda permitiu duas ou três fotos, mas há muito que perdera o rasto da alma. Por bom preço, acabou por vender a cadeira.
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sábado, 4 de outubro de 2014

MURMÚRIOS

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Fotografia de AC
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As nuvens e os homens teimam em repetir-se, em ciclos levemente retocados, ópera bufa de aparentes vontades várias.
Nos murmúrios do poeta, a solidão devia servir-se com asas.
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sábado, 27 de setembro de 2014

ÁGUAS

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Margarida Cepêda, Olhando para dentro
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 Os rios teimam em correr
acenando às árvores
alheios a cogitações de águas furtadas. 
Na barcaça
em contracorrente
ouve-se a velha canção:
todo o santo tem um passado 
todo o pecador tem um futuro.
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domingo, 14 de setembro de 2014

REGRESSO

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Não vou dissertar sobre as pausas, mas elas são necessárias. O que importa é que estou de volta.
Obrigado a todos os que perguntaram.
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sábado, 19 de julho de 2014

O PERFEITO IMPERFEITO

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Pintura de Margarida Cepêda
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Ainda me lembro, mãe, quando, nas manhãs de nevoeiro, insistias em desfolhar malmequeres. As flores, em carícia permanente, eram auscultadas em gestos cerimoniais, cada pétala que tiravas era um pouco de névoa que se ia. E continuavas, em gestos de eterno perfil, até os medos se desprenderem. Era então chegada a hora de libertar os barcos, de soprar as velas que enfunavam os sonhos.
Quando partiste, em perfeito alinhavado com o imperfeito, ainda era a delicadeza dos gestos que bordava o esboço do teu eterno desfolhar. Só eu via, mas tu continuavas a sorrir.
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domingo, 29 de junho de 2014

SUSTENTÁVEL LEVEZA

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Hélio Cunha, Vestígios de Um Mar Inexistente
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Sentias o fogo latente, o corpo a reclamar. A chama, incandescente, conduzia-te os sonhos, o peito era escudo onde tudo resvalava. Sentias a poesia na descoberta da noite infinita, na magia do despertar da aurora, na terra onde tudo continuava por lavrar. Intuíste novas palavras, novas linguagens.
Quando aprendeste a pousar, suavemente, no aroma das alfazemas, já sabias que tudo continuava por fazer. Mas passaste a sentir, quase sem te dares conta, o sereno sinal que da alma emana.
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domingo, 22 de junho de 2014

CIGARRADA EM TOM INCERTO

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Fotografia de AC
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Do alto do promontório, em olhar mil vezes ensaiado, as ilhas pareciam cada vez mais ilhas. Ali por perto, em caminhos de contramão, o velho amolador teimava em fazer-se anunciar pelo som da sua gaita. Ninguém o ouvia, mas algo o impelia a continuar. Talvez um dia, quem sabe, alguém parasse para ouvir das suas andanças...
Em grande écran, em esforço para cavalgares a onda, deslizavas, sorridente, por entre as brumas da nossa inquietação. Escolhias a música, sentias-te bem, não desafinavas. Não sabias que, do teu rodopiar, apenas emergia o vazio da origem das brumas.
Clic!
O tempo pára, nada se move. Incidindo sobre a tela, um leve feixe de luz começa por sugar as brumas, a seguir o promontório, por fim o amolador. Um invisível mestre de cerimónias parece emitir um sinal de aprovação.
Clic!
Cavalgas a onda, confiante, enquanto as máquinas disparam. À noite, antes de te deitares, apenas uma dúvida: Lexotan ou Prozac?
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sábado, 7 de junho de 2014

SALTO ALTO NA CALÇADA

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Paula Rego, Swallows the poisoned apple 
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Lias que a vida
Em sentido pleno
Sorria nas coisas simples
Mas passavas
Apressada
Sem tempo para estar
Sem tempo para ver
Em busca de tudo
Em busca de nada.
Procuravas-te
Em pilhas de livros
Conversas de bar
Pinturas criadas
No frenesim das palavras
(Às vezes gemias
Às vezes exultavas)
E com a luz fabricada
Traçavas cenários
A régua e esquadro
Da desejada verdade
Receita volátil
Sem sustentação
Castelos de cartas
Desfeitos no chão.
Quanto mais ouvias
Mais depressa passavas
(Paliativo da dor)
E nem reparavas
Na delicada sinfonia
Dum brinde à vida
Das cerejeiras em flor.
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Junho de 2010
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sábado, 31 de maio de 2014

CASTINÇAIS

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Fotografia de AC, Castinçais da Gardunha
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Inebriados pela exuberância da catedral verde, os deuses adornaram o caminho com fetos, musgos e restos de folhas secas, pintalgando, aqui e ali, uma abrótea, uma cravina, uma flor das sete-sangrias...
Fingia que te procurava mas, verdadeiramente, era por mim que ansiava. Convocava as minhas partes, sorria-lhes, mas havia sempre uma que se esgueirava por entre os castinçais...
Um pouco mais acima, por entre os penedos, o melro-azul, indiferente a humanas cogitações, continuava a tecer loas à vida.
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castinçais - rebentos de castanheiro
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sábado, 24 de maio de 2014

OS MUROS DO NOSSO (DES)CONTENTAMENTO

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Fotografia de AC
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A terra, as plantas, a água que, por vezes, apenas se insinua.
Entre o ir e ficar, uma vontade. Dentro da vontade, o desejo de fazer bem. Cumprido o preceito, dialogar. Com elas, connosco.
Com o tempo, imbuídos na alegação, elas vão argumentando, nós vamos cuidando vendo crescer. E também crescemos, apesar dos muros.
O fruto, corolário do envolvimento, é sempre sentença inacabada.
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domingo, 18 de maio de 2014

FELISMINO

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Fotografia de João Sargo
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Cabisbaixo, sentado frente ao lume, Felismino ouvia o silêncio. Do curral vinha o eco quase imperceptível de meia dúzia de cabras que, para além da companhia, proporcionavam ao velho o leite necessário para fazer um ou outro queijo.
Às vezes sentia falta de dois dedos de conversa, mas habituara-se à solidão dos montes e à companhia dos animais. Os últimos habitantes da aldeia tinham partido ia já para cinco anos, e desde então vivia ali sozinho. Queriam à viva força que fosse com eles, que havia de se arranjar jeito de ficar num lar, mas ali era a sua casa. Ali nascera e ali haveria de morrer. Nunca chegara a casar, e não havia nada fora daquele mundo que chamasse por ele.
Tirou da panela o caldo acabadinho de fazer, encheu uma malga e esperou que arrefecesse um pouco. Lá fora ouvia-se agora o ladrar dos cães, mas não ligou. Era bicho, com certeza, pois ali não passava vivalma, a não ser um ou outro caçador.
Bastava-se da horta e não precisava de muito. Uma vez por mês ia até à vila para receber a parca reforma e, entre dois copos na tasca do Pinto, aproveitava para se abastecer de arroz, açúcar, sabão, umas latitas de conserva e pouco mais.
Há dois anos chegara a ter a companhia duns alamães que para ali vieram viver, à espera de encontrar não se sabe bem o quê. No princípio pareciam entusiasmados, mas fora sol de pouca dura. Conforme chegaram, assim partiram. Não estavam preparados para aquilo, o bicho homem precisa da companhia de outros homens.
Quando acabou de comer foi até lá fora. A noite estava fria e adivinhava-se geada. Apertou melhor o casaco e foi espreitar as cabras, aninhadas no curral. Estavam sossegadas. Depois puxou da onça e começou a enrolar um cigarrito, companhia solitária de todas as noites.
A morte não o preocupava. Sabia que tinha que ir um dia, já vivera o suficiente para aceitar o inevitável. Queria deixar os ossos naquele ermo, onde os animais nasciam e morriam de acordo com a ordem natural das coisas. Era assim que entendia o mundo.
No céu via-se o brilho duma ou outra estrela. Os cães, sentindo algo no ar, abeiraram-se dele à procura dum afago. Na rua deserta era chegada a hora das sombras dos antigos habitantes ensaiarem a sua dança lúgubre.
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Reedição
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sábado, 10 de maio de 2014

FRAGRÂNCIAS DE MAIO

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Fotografia de AC, Gardunha
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Descia a rua, enlevado, refém da fragrância das flores de Maio.
Quando passava à tua porta, epicentro do mundo, a varanda era o local dos milagres por acontecer. Sentia-te por perto, sabedora dos meus passos, o viço dos manjericos era o sorriso que perpetuava o perfume dos sentidos.
O coração, rendido, teimava em ficar, mas continuava a descer a rua trauteando ária interior. As papoilas já se insinuavam na seara, em breve chegaria a época do trigo maduro.
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sábado, 3 de maio de 2014

UMBIGUICES

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Hélio Cunha, Hiroxima, meu amor
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Socorrias-te dos oráculos, mas eles apenas te segredavam o que querias ouvir.
Improvisavas danças ao luar, tentavas descodificar as nuvens, mas a plateia apenas aplaudia, comedida, até justificar o convite e a ceia.
Lançavas as cartas, tentavas ver para lá do espelho, sobressaltavas-te com o despertar dum gato preto. Querias entender, ter tudo ao alcance da mão. Desesperavas.
Hoje, quando acordaste, quiseste ajustar contas com o mundo. Hoje, como sempre, esqueceste-te de olhar para lá de ti. E, inacreditavelmente, a vida continuava.
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sábado, 26 de abril de 2014

PELE

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Margarida Cepêda, Entrada no Labirinto
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A tua pele é única, segredo alquímico forjado na tentativa de compreensão dos segredos mais simples e profundos.
Sabe das virtudes do ninho, mas respira ao ritmo dos voos em liberdade, em que a linha do horizonte é reformulação permanente.
Sente o apelo do longe, mas o amor que destila carece de se envolver no percurso, de sentir a saliva que hidrata as sensações.
Afasta o ruído das palmas fáceis, pois sabe que a recompensa é matéria delicada.
E as flores vão despertando...
A tua pele não é de ninguém, a tua pele é do mundo.
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Fevereiro de 2011
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sábado, 19 de abril de 2014

VARIAÇÕES COM CAROÇOS DE LARANJA

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Pintura de Kazuo Wakabayashi
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Para lá do templo, onde tudo se vende, no vale se cultiva, no mar se afere, na montanha se infere. 
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sábado, 12 de abril de 2014

ETEREAMENTE

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Enquanto subia foi afastando as urtigas, comichão impertinente, e sentou-se no alto da colina, resguardado de efémeros brilhos. 
Aconchegou-se nas estrelas, dimensão maior de todas as pegadas. O tronco do pinheiro onde se recostara era o elo de ligação ao lugar, base inglória de dados ao desvario. Esboçou a montagem do puzzle, ébrio na multiplicação de rotas sem fim, apenas respirava a intuição. Quase sem se dar conta - eterno navegante em busca de porto de abrigo - começou a procurá-la na imensidão, a dar guarida às memórias...
O apelo das estrelas redimensiona o olhar, dá-lhe lustro, mas é no pó que tudo começa, que tudo se forja. Quando voltar a subir a colina, em noite estrelada, as mãos estarão sujas de moldar o barro.
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sábado, 5 de abril de 2014

A LINGUAGEM DO SILÊNCIO

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Fotografia de AC
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Sentavas-te na varanda, à tardinha, mesmo em frente ao laranjal. Pouco falavas, era o silêncio que te conduzia, embalada na cantilena da água a cair no fundo do quintal.
Maio estava em pleno, o odor perfumado das flores insinuava todas as possibilidades. Os pássaros, em pleno festim de vida, pareciam falar contigo, vinham comer à tua beira. Não resistias, esboçavas duas ou três palavras, os pássaros voavam para longe.
Hoje, quando te inundas de mar, ainda procuras as palavras certas, a tela perfeita que te preencha a alma. Mas, sabes agora, algo ficou para trás, perdido no som ritmado daquela fonte, quando os pássaros pareciam falar contigo. As tuas palavras não tinham asas, ainda não entendias a linguagem do silêncio.
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sábado, 29 de março de 2014

NOME SEM NOME

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Hélio Cunha, Memórias do Absoluto
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Deram-te um nome, número identificador dum qualquer exterior. Lá dentro, contudo, no mais recôndito de ti, habita algo único, que te caracteriza, que verdadeiramente te identifica. Isso é a tua força, aquilo que tu és, substância sem nome de que nem sempre te dás conta.
Cultiva-a, dá-lhe brilho. Na tua ânsia de respirar, tenta dar forma a esse nome sem nome.
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sábado, 22 de março de 2014

ETERNA ESCALADA

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Margarida Cepêda, Solo mineral para violino
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Quando começaste a enfrentar a montanha, jovem potro em constante esquiva,  ainda não domavas o vigor que te atravessava a pele. Tudo parecia eterna primavera.
À medida que subias foste aprendendo a olhar, a bordar espaços recônditos da alma. Não bordavas, tu sabias, limitavas-te a abrir, ainda que a medo, pequenas gavetas com chaves para outras gavetas.
Quando pensavas que o topo estava logo a seguir à próxima curva, descobrias que, afinal, tudo parecia mais longe. Mas teimavas, havia sempre uma gaveta por abrir.
Às tantas, sem fim à vista, sentiste que já não podias recuar. Nem querias, já tinhas entrado noutra dimensão. E, quase sem te dares conta, começaste a reparar na forma das pedras, na força do vento que as moldava. 
As gavetas, embora existindo, esbateram-se. Começaste a sentir cada músculo, cada pingo de sangue, cada molécula de oxigénio. As raras flores que ias encontrando, banhadas pelo mesmo sentir, eram a negação das gavetas com que iniciaste a subida.
Continuaste. Não sabias o que vinha a seguir mas, pela primeira vez, sentias que estavas preparado.
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domingo, 16 de março de 2014

PISCAR DE OLHO - 2

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Margarida Cepêda, Catedral Verde 
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A nespereira sentia-se abandonada. Exibia a promessa de futuros frutos mas, apesar do seu esforço, a terra em volta continuava por cavar. E amuava.
Hoje a nespereira entrou em festa. Toda a terra circundante foi remexida, num aparato repleto de afectos. A terra mostrou o seu seio, retiraram-se as ervas daninhas, o estrume e a água mimaram quem merecia.
O sol, forte para esta altura do ano, faz lembrar ancestrais ensinamentos, preventivos de constipações: é preciso cuidado com a exposição ao astro nos meses com "r" na sua denominação. Sobram Maio, Junho, Julho e Agosto, mas aí já estamos noutra dimensão, mais amiga da sesta. E o chapéu, de aba larga, afasta para longe a preocupação.
As duas amendoeiras, ali perto, já estão a perder a flor, os pessegueiros começam a dar sinal de vida, as figueiras começam a rebentar, as cerejeiras ostentam os últimos dias de gravidez do branco redentor. Abelhas e pássaros banqueteiam-se, as borboletas aparecem não se sabe de onde, o rosmaninho, aqui e ali, começa a ganhar força...
Dou um jeito ao chapéu. O apelo à pausa é constante, há tanto a chamar por mim. E, quanto mais me envolvo, mais sei que pouco ou nada sei. Neste inebriar de sensações, é cada vez maior a percepção do equilíbrio e da delicadeza de qualquer planta, de qualquer ser vivo...
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sábado, 8 de março de 2014

PISCAR DE OLHO

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Pintura de David Galchutt
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Os sábados, por aqui, são sempre dias especiais, envolvidos em naturais condimentos.
Para hoje estava programada a plantação de duas laranjeiras e um damasqueiro, e assim se fez. O tempo, quando em plena comunhão com a vida, ganha outra dimensão. Se tivesse que dar explicações, como justificar as quatro horas que demorei a plantar as três árvores? Como explicar, a quem quer que fosse, que cada momento - cavar, separar as ervas daninhas, estrumar, tapar, regar, atar... - requer atenção, carinho, sensibilidade?
O almoço, sem tempo, é sempre experiência gastronómica à mercê dos ingredientes disponíveis. Acautelados, é claro.
A seguir, como em quase todos os sábados, é tempo de escrita. Normalmente a coisa flui, espontânea, qual jorro em permanente ebulição. Mas hoje, quase sem me dar conta, o olhar começa a prender-se nos livros que me envolvem. São muitos, sem dúvida - cada um veio aqui parar num contexto muito próprio - mas há muito que não lhes pego. Não é por falta de carinho, garanto, continuo a sentir o seu envolvimento, mas, após um passado de múltiplas leituras, o apelo da natureza, lá fora, continua a ser mais forte.
O tempo, em comunhão com as coisas, é alheio a gráficos e balancetes. Frui-se, naturalmente, e, no final do dia, quando os pássaros regressam aos ninhos, sente-se, de forma muito peculiar, a poesia a piscar o olho à filosofia. É nessa altura, mais que em qualquer outra, que as linhas do horizonte encontram o seu exacto lugar.
Percebem, agora, porque é que os meus livros sentem a minha ausência? Contudo, qual almofada em permanente aconchego, eu continuo a sorrir-lhes.
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sábado, 1 de março de 2014

(IN)VENTAR

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Margarida Cepêda, Ela, o violino e vagas
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Forjar a dignidade é tentar construir, camada após camada, alicerces capazes de lograr o vento. Tarefa ingrata, nunca acabada. Enquanto nos contorna, ele vai tecendo, pacientemente, as linhas da nossa imperfeição.
No final parece ficar apenas o discreto rasto da nossa ilusão, mas há sempre algo que a resgata, há sempre alguém que teima em prosseguir. Os ventos da nossa indignidade, por mais que se vangloriem, jamais terão descanso.
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sábado, 22 de fevereiro de 2014

QUASE CANÇÃO DE EMBALAR

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Margarida Cepêda, Lua Crescente
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Ouve, meu amor, não deixes que o medo te alcance com as suas garras. Se lhe virares as costas, qualquer tempo de espera será de desespero. Não renovarás a alma com as cerejeiras em flor, receando a geada; não sentirás a volúpia da fruta madura, temendo o granizo; ficarás, eternamente, na margem errada do ribeiro, suspeitando das suas águas.
Meu amor, se fitares bem os olhos do medo, ele adormecerá como qualquer nevoeiro.
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sábado, 15 de fevereiro de 2014

A FOLHA AMARROTADA

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Desenho de Luiza Maciel Nogueira
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Li, algures na blogosfera, algo acerca duma folha amachucada. A partilha deu nisto.
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Tempo de escola. Os dias têm sido de intenso trabalho, pois não existe melhor forma de cimentar aprendizagens. E nós, como qualquer profissional que se preze, primamos nessa intenção: incentivamos, exigimos, insistimos...
A hora do recreio, para eles, é de libertação, pois existe por ali muita energia contida a necessitar de se libertar. Só que a chuva, persistente, não tem ajudado, e o tempo de intervalo acaba por se desenrolar dentro da sala de aula, onde os constrangimentos, para quem se pretende soltar, são vários. E os conflitos tornam-se mais frequentes, às vezes quase sem se saber porquê, preocupando quem tem o dever de educar.
Ontem à tarde, quando lhes distribuí uma folha branca, a maior parte pensou, com agrado, que iriam desenhar. E estranharam, é claro, quando lhes disse para amarrotarem a folha. Perante o olhar interrogativo e expectante, repeti o convite. E mais: podiam amarrotá-la, mas com uma condição, não a podiam rasgar. 
Olhavam uns para os outros, ainda incrédulos com tal convite, mas o som do amarrotar das folhas começou a fazer-se ouvir. Timidamente, no início, mas lá os convenci que aquilo era mesmo a sério. E incentivei-os ainda mais. Se quisessem, até podiam pisar a folha, mas sempre com a condição de não a rasgar. 
Alguns começaram a soltar-se, amarrotando com prazer. E riam. Às tantas, soltas as amarras, o som do amarrotar dominou a sala, mas nem todos se atreveram a pisar a folha, apenas três ou quatro o fizeram.
Passada a euforia, disse-lhes para tentarem colocar a folha como lhes tinha sido entregue. Sem a rasgarem, reforcei.
Desdobraram, alisaram, mas as folhas nunca ficavam direitas. Voltaram a tentar. E, por mais que se esforçassem, a folha ficava sempre engelhada. Foi então que lhes disse que a folha era como uma pessoa, podia muito bem ser um deles. Silêncio na sala. E disse-lhes mais. Quando magoamos alguém, quando ofendemos, quando gozamos, essa pessoa fica amachucada, cheia de marcas, tal como a folha que tinham à sua frente. Podíamos tentar remediar a situação, mas as coisas nunca mais seriam as mesmas, as marcas ficavam para sempre.
O silêncio era agora maior. Um ou outro ainda titubeou, mas eles começavam a interiorizar. E perceberam.
No final, perante a questão do que fazer com as folhas, disse-lhes que tínhamos que as aproveitar, pois a vida tem que continuar. E, mais que nunca, o seu semblante foi de aprovação.
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sábado, 8 de fevereiro de 2014

EU, TU E O OUTRO

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Hélio Cunha, A Montanha Mágica
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Interiorizou a urgência da demanda. Vasculhou, incansavelmente, pedra atrás de pedra, em busca dos novos deuses. Nem por um momento lhe ocorreu olhar para dentro de si, para dentro dos outros.
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sábado, 1 de fevereiro de 2014

CONFIGURAÇÕES EM TELA ESTELAR

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Van Gogh, Noite Estrelada
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Quando, à noite, me refugio dos caprichos do vento, as estrelas ainda reflectem as promessas do teu olhar. Cedo à tentação e descubro-te ali, quando sorrias da minha esforçada forma de cozinhar, para te impressionar, vejo-te mais além, quando, ao crepúsculo, as ondas nos vinham acariciar os pés...
As noites continuam frias, mas os dias já anunciam o despertar das mimosas. Enquanto esperas pelo ecoar dos meus passos, eu anseio pelo florescer das cerejeiras, pelo delicado aroma da flor dos pessegueiros.
Quando a harmonia se instalar, talvez as estrelas propaguem a conjugação do nosso olhar...
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sábado, 25 de janeiro de 2014

TORGANDO

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Nasceu na severidade do granito, a acreditar na honra, temperado na discreta tonalidade da urze.
A alma, movida a inquietude, era tão grande que mudou de lugar. E quis saber, indagar, questionar.
Depressa percebeu que, na severidade dos muros, tudo era pequeno, no espaço e nas intenções. Nas areias movediças da vida ressentiu-se da omissão do  espelho dos olhos, da ausência da simplicidade de respirar. Para manter a dignidade à tona esbracejou, gritou, recusou pactuar. Até ao fim.
Ciclicamente regressava à urze, ao simbolismo da força das raízes da torga. Desistir, nunca, a força da terra-mãe nunca o abandonou. E, entre o cá e o lá, foi forjando convicções, alimentando afectos, por mais raros, preciosidade em paisagens humanas inspiradas em cata-ventos.
Vi-o passar. Era dos que deixava rasto. As portas que se fechavam, apesar das ferroadas, apenas inchavam o peito de dignidade.
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sábado, 18 de janeiro de 2014

(RE)ENCONTROS

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Hélio Cunha, O Reencontro dos Amantes
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Elevas-te nas palavras, invocas químicas sem rasto na memória, o teu eco inunda a aurora de desenhos, alados nas intenções, muitas pontas por (des)atar.
Oiço-te, nem sempre entendo. Mas também há dias, forjados na tua imensidão, em que dás guarida ao que te envolve. É quando te deslumbras no brilho das estrelas, quando te deixas inundar pelo perfume das violetas. Nessas alturas, quando dás voz ao silêncio, tudo parece fazer sentido.
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sábado, 11 de janeiro de 2014

COMETA

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Hélio Cunha, Porta do Infinito
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Eterna crisálida, suor nos esporos, navega na vertigem, asas renovadas em cada inspirar. Alheia a portos e abrigos, não sabe para onde vai, apenas sente, a cada volteio de asa, que desenha mais um ponto na carta do universo.
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sábado, 4 de janeiro de 2014

MELODIA

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Margarida Cepêda, Semente
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Olhas, deslumbrada, para o voo dos pássaros, mergulhas na geografia tecida nas subtilezas do que se respira, do que se é.
Não voas, mas sentes. E soltas o riso e o choro, enquanto as mãos aquecem no desvendar de outras mãos.
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