segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

BRECHAS

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Fotografia de AC
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O frio, cenário de eterno conflito entre inibição e conservação, tolhe o movimento das asas da borboleta, surgida não se sabe de onde, aproveitando, talvez, uma brecha nos humores dissonantes da natureza. A manhã, bem agasalhada, já vai bem alta, mas o sol que rompe, ainda que com laivos de timidez, é mais que suficiente para atear a volúpia da vida. Um poisar aqui, outro mais além, mas sem a desenvoltura dos gloriosos dias de verão.
A brisa, vinda dos lados da Estrela, não aconselha grandes devaneios. E a borboleta, apesar das brechas, fiel às fiáveis leis da criação, recolhe o seu voo, para parte incerta, para fenecer ou, quem sabe, à espera que o milagre se perpetue em novos laivos de luz.
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domingo, 14 de dezembro de 2014

RABISCOS DE NOVOS NATAIS

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Hélio Cunha, Em Nome do Filho
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Todos os dias se levantava à mesma hora. Deixava-se envolver pelo jacto de água fria, fazia a barba, preparava um café instantâneo e comia uma fatia de pão barrada com planta. Depois, cuidadosamente, pegava nos anúncios de jornal, já devidamente sublinhados, e mergulhava no purgatório, quantas vezes inferno, do lado negro da vida.
O seu currículo era ele próprio, o parco dinheiro não era NOS nem MEO, era seu. Medido ao cêntimo, diga-se, habituado que estava ao senhor Negaleva. Mas insistia.
Por mais que se esforçasse, por mais que sorrisse, a filosofia Negaleva parecia a verdade suprema, tatuada nos mil rostos da urbe, sonâmbulos sem qualquer causa, a não ser a sobrevivência. E, quase sem se dar conta, começou a soçobrar, a render-se a evidências, prescritas em receitas, por quem vive para lá do muro. A culpa era sua, diziam, e começava a acreditar.
Num fim de tarde, já quase sem fôlego, refugiou-se nas escadas dum qualquer centro comercial. Não via nada, não ouvia, apenas lhe batia à porta o desespero, a vontade de desistir. Ainda tentou esbracejar, invocando as palavras de Torga...
De seguro,
Posso apenas dizer que havia um muro
E que foi contra ele que arremeti
A vida inteira.
Não, nunca o contornei.
Nunca tentei
Ultrapassá-lo de qualquer maneira.
A honra era lutar
Sem esperança de vencer.
E lutei ferozmente noite e dia,
Apesar de saber
Que quanto mais lutava mais perdia
E mais funda sentia
A dor de me perder.
...mas a dor era demasiado funda, a dignidade esvaía-se.
De repente, rompendo as densas camadas de nevoeiro que o envolviam, uma voz delicada, despida de artifícios, fez-se ouvir:
- Mãe, aquele senhor parece perdido. Não vês?
As palavras podem ter múltiplas facetas, mil e um rostos, mas naquele momento, para ele, eram as palavras certas. Levantou-se, sorriu para o miúdo e piscou-lhe o olho. Depois, com gestos cuidados, sacudiu o pó das calças, ajeitou o casaco e seguiu. Tal como dizia o poeta, a honra era lutar, mesmo com pouca esperança de vencer.
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domingo, 7 de dezembro de 2014

TEMPERAR AS PAUSAS, SOPRAR AS NÁUSEAS

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Fotografia de AC
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A manhã, ainda a contas com um arremedo de geada, descobriu-nos a subir uma das muitas encostas da Estrela. Éramos três, sem qualquer familiaridade com a trindade, o que nos movia não era o verbo. Bastava-nos, ínfimos que somos, a partilha da terra, das árvores, do ar que se respira por ali. 
O pretexto, desta vez, para palmilhar parte da serra, eram os cogumelos silvestres, a que, por aqui, apelidamos de míscaros, e nada melhor que procurá-los nos pinhais, seu natural poiso. 
O terreno, íngreme, parece arquitectado para desencorajar os menos avisados, mas nada que perturbe a coesão do grupo. A manhã é para se fruir, sem pressões, estamos ali para sentir, ainda que por momentos, a harmonia do local.
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 Fotografia de AC
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Os cogumelos, experimentadíssimos no jogo das escondidas, vão retardando o natural desenlace, dando mais cor ao sentido da procura. E quando, de caras com o descobridor, ultrapassam o instante da surpresa, é impossível não se associarem ao júbilo da descoberta, gravado em efémeras exclamações. 
A cesta, pacata testemunha dum jogo milenar, acolhe-os, propiciando diálogos alheios a bípedes criaturas. E a manhã, sorridente, vai dando guarida a leves e naturais anseios, quase de criança, como se, por momentos, o tempo dos homens se tivesse aquietado.
Um copo de Reguengos, a meio do desenlace, mais acentua a apaziguante sensação. E, como se não fosse pouco, à saída do santuário, ainda que de forma esquiva, a aparição dum casal de perdizes ajuda a apaziguar a alma.
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