quarta-feira, 23 de setembro de 2015

DÉDALO

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Margarida Cepêda, O Fio de Ariadne
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Há no exercício da escrita algo que te aquieta, te redime. As palavras, a princípio contraídas, vão-se libertando à medida que resolves o enigma do jogo de espelhos. E, qual milagre animado, cada uma parece ganhar vida própria dentro do todo. Um todo circunscrito, é certo, mas ainda assim um todo. Embora ínfimo. Sentes-te bem, a inquietação apaziguou-se. Mas a perversidade do labirinto apenas se esbateu. Amanhã, quando olhares o horizonte, vais voltar a sentir estreiteza na encruzilhada dos rumos.
Gostaria de te dizer que olhasses para as rosas, que absorvesses a arquitectura dos plátanos, mas a tua obsessão não me ouve. Precisas ser tu a descobrir.
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Maio de 2011
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sábado, 12 de setembro de 2015

ACERCA DA LUCIDEZ

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Margarida Cepêda, Acima do mar das nuvens
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Era assim desde que se conhecia: gostava de filtrar, de analisar, de lapidar. 
Quando se deu conta de que isso a afastava das pessoas, tentou várias formas de se olhar para lá do espelho, de resgatar sorrisos alheios. Em vão. Era assim porque sentia, profundamente, que era assim que deveria ser.
Hoje, cada vez mais ciente do seu lugar, os melhores poemas do seu jardim são absorvidos em partilha com os amigos. É nele que os recebe. Com aromas, com sabores, com afectos. Poucos, mas preciosos, verdadeiro sustentáculo duma delicada teia de cumplicidades.
Por mais que as estrelas, eternas sereias do resgate da alma, teimem em tecer loas em noite enluarada, a verdadeira essência da solidão não é, necessariamente, uma forma de navegar a solo.
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domingo, 6 de setembro de 2015

O CANTAR DA TERRA

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Imagem tirada daqui
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Na pequena aldeia, aconchegada no que de melhor o vale tinha, um leve rumor sobrepunha-se aos gestos de sempre. Não chegava a ser inquietude, mas destilava energia suficiente para despoletar discretos arremedos de sobressalto, pólvora seca em prados sedentos de água.
Nos campos faziam-se as derradeiras colheitas, com cheiro a maçãs e uvas maduras. Da serra, enfeitada de eólicas, assomavam nuvens carregadas, anunciando os estertores do mundo, acentuados pelo uivar dos cães em noite de Lua Cheia.
Avessa a fados e lamúrias, a Ti Laurinda, na sua velha casa de pedra, mais idosa que a soma das suas duas pernas, ensaiava nova quadra com que, episodicamente, presenteava as suas galinhas, ou quem mais a quisesse ouvir. A última até já as pedras de xisto a tinham entranhado.
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Olhar p'ra dentro, olhar p'ra fora
Não tem nada que enganar
Se a chuva estiver p'ra vir
Algo está para mudar.
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Enquanto comia as couves galegas, entremeadas com uma batatita e regadas com um pingo de azeite, uma nova quadra ia ganhando forma:
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Antes do vento chegar com força
Acautela a tua telha
Não serás sempre moça
Também um dia serás velha.
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Quando interpelada por alguém, acerca deste seu hábito, a Ti Laurinda sorria, sorria sempre, enquanto encolhia os ombros:
- Que quer, são cá coisas minhas...!
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