sábado, 26 de setembro de 2020

GALGANDO O EQUINÓCIO, COM TERNURA

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Fotografias (com um intervalo de 2 minutos) de AC
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Volvido o equinócio, e já com a maioria dos frutos recolhidos, a natureza começa a recolher-se, num porto de abrigo muito próprio, arrastando nesse movimento tudo o que a envolve. O sol inclina-se, os animais recolhem-se, as sementes resguardam-se, e os solos, descansando, começam a revigorar.
Há, no entanto, uma panóplia de vida a emergir, quase em contramão, qual serviço mínimo para manter tudo em funcionamento: aves, como os tordos, que se vêm resguardar, mais a sul, da inclemência do frio setentrional, árvores que prometem frutos, como o diospireiro e a laranjeira, ou que simplesmente florescem, como a nespereira. E, enquanto nos vamos preparando para a estação fria, os milagres da vida, assim os queiramos observar, continuam a estar presentes, qual fio condutor duma vida aparentemente irregular, mas plena.
Por aqui, no meu pequeno paraíso, a passarada continua a debicar nos figos pingo de mel, dando corpo à expressão "chamou-lhe um figo". Mas, em amena convivência, e tal a abundância, sempre vou colhendo alguns para provar e, essencialmente, para fazer compota. É quanto me basta.
As amendoeiras já entregaram a carta a Garcia, mas os dois castanheiros que por aqui há ainda estão à espera de melhores dias - já não falta muito - para proporcionarem a sua oferenda. Até lá, e sem preocupações de maior, vou recolhendo os frutos dos tomateiros, que continuam a produzir, enquanto vou gerindo, conforme as necessidades, a colheita do alho francês, dos lombardos e da couve galega. As abóboras, já quase totalmente alaranjadas, começam a ficar no ponto, tal como as malaguetas, dum rubro tentador. As alfaces, duma maturação mais fácil, continuam a replantar-se, e sempre de satisfação plena. O feijão e as curgetes já lá vão, enquanto um ou ou outro pimento ainda se esforça por despontar. Olhando para o céu, bandos de garças começam a movimentar-se, em forma de >, como que a querer reconfigurar algo. Elas lá sabem.
Ontem, ao fim da tarde, e como os pequenos milagres, por aqui, estão sempre presentes, o sol resolveu presentear-me com um festival de cor, pleno de mensagens de copo meio cheio. Olhei, absorvi, registei, agradeci. E a conclusão surge, de forma natural: a vida, por maiores que sejam as dificuldades, e por mais que a queiram pintar de negras cores, continua a ser grata. Assim a queiramos ver e abraçar.
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quarta-feira, 23 de setembro de 2020

POR TERRAS DA MAÚNÇA

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AC, Serra da Maúnça
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O convite surgira, apelativo, e não havia como dizer que não. E lá fomos em busca da Serra da Maúnça, prolongamento geológico da Serra da Gardunha.
A partida foi dada no santuário de Santa Luzia, no Castelejo, padroeira dos olhos, situado num promontório com uma bela vista envolvente. Mas o projecto, sedutor, iria exigir mais, muito mais. 
As primeiras centenas de metros foram tranquilas, com passagem por vacarias e pomares de variada índole, com predominância de cerejais, de plantação recente. Mas logo o caminho se começa a inclinar, como que a lembrar que as coisas gratas exigem sempre um esforço suplementar.
Passámos por matagais, com predominância de urzes e giestas, que rejuvenesceram a zona, substituindo o pinheiro, após dramáticos e inquietantes incêndios. Mas, indiferente às cogitações dos visitantes, o caminho continua a inclinar. E a marcha torna-se mais lenta, enquanto as colmeias se tornam elemento habitual da paisagem, com um leve zunzunar como música de fundo.
Mais um esforço, um gole de água vem mesmo a propósito, e começam a surgir medronheiros e alguns castanheiros, com mais colmeias de permeio. Por aqui cultiva-se mesmo o mel.
Chegamos, finalmente, ao topo. Um ou outro pinheiro, sobreviventes de incêndios e ventanias, a fazer companhia aos aerogeradores eólicos que povoam o alto das montanhas envolventes. Estacionamos junto dum afloramento granítico, autêntica ilha em mar xistoso, e deixamo-nos transportar na paisagem, disponível num ângulo completo, quase diria mais que giro. A distância, consagrada em diferentes horizontes, cada um com a sua particularidade, convida a um sorriso discreto, mas de ampla satisfação. Os deuses estavam mesmo generosos quando configuraram a altitude e a latitude daquela  montanha.  Quantas perguntas refugiadas na penumbra, como se tudo fosse perceptível! Ali, perante o impacto da grandiosidade da envolvência, a repor cada um no seu verdadeiro lugar, ninguém ostenta rótulos, ali apenas se sente. Profundamente. 
Refeita a alma, havia que cuidar do corpo. E os acepipes, saídos das diversas mochilas, cumpriram bem a sua função, dando azo a uma conversa despreocupada, bem condimentada de risos e sorrisos.
Bem refeitos de corpo e espírito, e com a conversa em dia, percorremos o que restava do cume e começámos a descer, serpenteando até à aldeia do Açor, onde, por entre sorrisos, aproveitámos para adquirir alguns produtos locais: mel, aguardente de medronho - de produção do ano anterior - queijo de cabra e algumas romãs. Ainda houve quem invocasse as castanhas, mas essas ainda precisavam de mais um tempo de maturação. 
Um adeus, mais sorrisos, e a descida continua até à Enxabarda, terra de confirmada resistência às históricas invasões francesas, onde nos aguarda o transporte que nos levará de volta ao Fundão, de alma cheia e de bem com o mundo. Sem máscaras.
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sexta-feira, 18 de setembro de 2020

SÃO TOMATES, SENHORA, SÃO TOMATES

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Fotografia de AC
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Neste verão atípico, em que os abraços foram substituídos por acenos e ideias tontas (raios, quem se lembrou da cotovelada? Um adepto da inovação folclórica?), a horta, apesar dos percalços, acabou por fazer sorrir quem nela se empenhou.
- Que levas aí?
Foi a curiosidade que matou o gato, dizem, mas não é caso para tanto. As coisas estão bem à vista, sabiamente tecidas na incerteza, a testar a paciência dum qualquer santo dos bons velhos tempos, mas sem a máscara dos santos d'agora, que têm muitos fogos por apagar para salvaguardar a dízima.
- Que levas aí?
A criatura não desiste, a insistência corre-lhe nas veias, e invoca calamidades e desgraças pré-definidas. Parece a testemunha trampada duma seita, seja ela qual for, que só se afasta com uma qualquer assinatura num papel, com letras ou em branco, de preferência no píncaro das alvuras. Aleluia!
- Que levas aí?
Olho, condescendente, para o papel representado, qual moderna intérprete shakespeariana adaptada aos novos tempos, a superlativar o tom dramático. Não evito um sorriso, mas convoco, de forma dissimulada, uma pausa: convido a criatura para me ajudar a fazer doce.
- Que levas aí?
Perante tanta insistência, e para que um suposto sagrado não se confundisse com o profano, tive mesmo que evidenciar.
- São tomates, senhora, são tomates.
Titubeando, a criatura retirou-se. Para minha satisfação e de toda a zona envolvente, nunca mais voltou a passar por perto.
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sábado, 12 de setembro de 2020

HÁ UM LUGAR...

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Fátima Marques, Utopia
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Há um lugar onde as praças se povoam, à noite, para beber as palavras que contam, enquanto os sorrisos contagiam. Mas eu não sei onde.
Há um lugar onde as escarpas se povoam, à noite, para ver a lua reflectida nas águas, enquanto as estrelas fazem coro. Mas eu não sei onde.
Há um lugar onde os velhos contam histórias, ao fim da tarde, enquanto os meninos reinventam os sonhos. Mas eu não sei onde.
Há um lugar onde as pessoas cantam, quando o sol nasce, enquanto cada um ocupa o seu lugar. Mas eu não sei onde.
Há um lugar onde as pessoas se olham, olhos nos olhos, durante todo o dia, enquanto asseguram o amanhã. Mas eu não sei onde.
Há um lugar onde as crianças nascem, durante todo o ano, para um mundo desenhado à sua medida. Mas eu não sei onde.
Há um lugar onde os seres vivos se respeitam, de forma natural, enquanto as cascatas se transformam em musas. Mas eu não sei onde.
Há um lugar com que todos sonham, mas a chama vai-se consumindo na aridez do caminho. Até morrer.
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terça-feira, 8 de setembro de 2020

ELAS

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Margarida Cepêda, A forma é o invólucro da pulsação
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Começaram por, sendo muito, ser pouco mais que nada.
Resistiram como rocha para lá de tântrica, indestrutível na resiliência, intuindo sempre a melhor saída para contornar a força máscula.
Foram, a pouco e pouco, ganhando espaço, principalmente em meios onde se cultivava a lucidez, a inteligência e o bom senso, para o qual investiram de forma discreta. Continuavam a ser olhadas como acessórios, mas começavam a fazer sentir a sua voz. E, aproveitando uma aberta aqui, outra ali, começaram a votar, a frequentar universidades, a escalar cargos de responsabilidade, provocando ondas de choque que abalaram ideias feitas.
Hoje, libertas de amarras, elas chegam-se à frente no assumir dos novos desafios globais e, apesar das resistências, começam a rir-se das competências dos seus comparsas do género oposto, eternos meninos mascarados de guerreiros, à boleia duma condescendência de séculos.
Eles, em momentos de desafio, costumam encher o peito, como se a honra se medisse em testosterona, mas já há muito, de forma subtil, que perderam o confronto. Desta forma, jamais jantarão o coração delas.
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É urgente outra via, eu sei. Eles que cresçam e... talvez se almocem e se jantem mutuamente. O mundo agradece.
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sábado, 5 de setembro de 2020

OLHAR DO ALTO DA MONTANHA

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Margarida Cepêda, Procurando o principio
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Pareciam vir de longe, mas já se tinham instalado há muito. Trouxeram, consigo, novas formas de ser, novas formas de estar, irrompendo nos preconceitos de quem estava. 
Houve embate, houve controvérsia, mas, após algumas desavenças, as novas gerações, de ambos os lados, acabaram por selar a concórdia. E criaram novas canções, novas danças, novas histórias...
Em nome da união, preciosidade a defender, prescindiram de subir às montanhas para ver ao longe, não se abeiraram do mar, a grande mãe, para perceber melhor a profundidade das coisas. E seguiram, muralhando-se. Hoje, unificada a forma de estar, continuam a olhar para quem chega como um corpo estranho, sujeito às mais variadas provas para ser aceite. No fundo, apesar de se considerarem na senda certa, continuam a ser uma ilha, sujeita às mais diversas intempérie de tudo o que é desconhecido. 
Cometendo os mesmos erros de outras eras e de outras latitudes, crêem-se donos da verdade. Mas, por mais defesas que criem, por mais demagogos que elejam, o mundo irá sempre ter com eles, derrubando muros de papel. É que, para lá de palavreados fáceis, a nova filosofia, a irromper, discreta, mas com a força do inadiável, precisa de todas as cores para se multiplicar e assentar. Talvez, então, entendidas as crenças de todos os lugares, com um especial olhar sobre as coisas naturais, consigamos discernir o melhor rumo para o nosso futuro.
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terça-feira, 1 de setembro de 2020

ETERNAMENTE

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Luísa Sobral, Dois namorados
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Cresceram juntos, num mundo limitado por serras e preconceitos, e começaram a olhar-se, olhos nos olhos, num maio especialmente florido e perfumado.
Quando quiseram partilhar o encanto que os unia, fecharam-se portas e janelas. E eis que, em pleno drama, alguém é impelido a partir, ela, e o outro que fica, ele, mas a prazo, e novas teias se foram tecendo na vida dos dois. 
Ela, passado um tempo, já noutro cenário, casou com outro, com filhos de permeio, mas ele nunca mais a esqueceu. E guardou-se para ela.
A roleta do tempo girou, os filhos cresceram, dando novas braçadas na vida, ela acabou por ficar viúva. Dele, nem rasto.
Um dia, num daqueles acasos manipulados pelos deuses, cruzaram-se num jardim. Ela sorriu, ele sorriu, e nunca mais se separaram daquela sensação dum maio florido, tornando-a permanente. E, para gáudio dos deuses, continuam a sorrir, com a luz própria dos predestinados. 
Os filhos dela, rendidos, acabaram por aplaudir a eternidade daquele amor.
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