sábado, 21 de janeiro de 2023

HÁ (E HAVERÁ) EM JEITO DE MANIFESTO

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Margarida Cepêda, No coração da rosa

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Há um sorriso que se abre, permanente, conjugando a conexão.

Há um fogo que arde, persistente, em constante maturação.

Há uma vida que se assume, consequente, dando lastro à razão.

Há um abraço que emerge, abrangente, dando voz ao coração.
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terça-feira, 17 de janeiro de 2023

A AVÓ TITA

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AC
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Viera da grande cidade, sem dar cavaco a ninguém, ocupar a casa dos pais, gente de posses herdadas  noutras eras. Os filhos já nasceram na grande cidade, mas ela por ali dera os primeiros passos e, apesar de cedo dali sair, ficaram, para sempre, gravados na sua alma, os recantos, os sons e os aromas daquela xistosa aldeia, no sopé da serra, com uns laivos de granito, banhada por uma ribeira que, nos seus verdíssimos anos, lhe parecia um enorme rio.
Indiferente à modorra do lugar, ela passava, desconcertante, umas vezes a pé, outras de bicicleta, desafiando tabus e conveniências.  O ramerrame não era com ela, isso era garantido, indiferente ao apontar do dedo de vetustas tradições. E, quanto mais a apontavam, mais ela prosseguia. E sorria. Em modo tranquilo, diga-se, tal como a grande tília que, no fundo da propriedade, adornava o morro que circundava o espaço sobranceiro à casa, aparentemente satisfeita com o toque paisagístico que dava ao tom geral da construção. Agitava os ramos, na ventania, mas não passavam de ligeiras cócegas que sorriam, docemente, para quem sabia ver e ouvir, tal era a sua robustez e a forma com que se agarrava à terra, apesar de algumas raízes à mostra, que atraíam, sobretudo, ingénuos fotógrafos, para lá duma diversificada classe de passarada. E, contra tudo e contra todos, ela lá permanecia.
À noite, depois do jantar, quem passava perto ouvia, vindas da casa, algumas notas de piano, as suficientes para adensar a quase lenda daquela personagem. E dizia-se isto, dizia-se aquilo. Mas, lá no íntimo, começavam a admirá-la.
Um dia, sem qualquer pré-aviso, a casa inundou-se de vozes alegres, descomprometidas, que davam nova vida ao lugar. Os netos, em férias escolares, finalmente vinham visitar o velho rincão da avó Tita, que tantas vezes, de soslaio, ela mencionara antes de lhes ler qualquer história. Um mero aperitivo, mas tão sentido pela narradora que, sem se darem conta, lhes ficara tatuado na alma.
Os dias passavam, alegres, ou não fosse verão. De manhã, com toda a gente já bem desperta,  ensaiavam-se umas escapadelas até aos terrenos da família, que o ti João tratava com desvelo. A avó Tita, sempre de olhos brilhantes, aproveitava o momento para "puxar" pelo Ti João acerca daquela árvore, daquela rocha ou daquele pássaro, e o velho não se fazia rogado: discorria, compenetrado, acerca de tudo o que o rodeava, transformando o momento numa envolvente aula ao ar livre, com calorosa participação da pequenada, ávida de descodificar tudo aquilo que a rodeava.
Embalados pelo ar campestre, não lhes faltava apetite ao almoço. E, por entre risadas, depressa os pratos ficavam vazios, perante a satisfação da matriarca.
Depois do almoço, após cada um lavar o seu prato, toda a gente tinha direito a uma pequena pausa para o que lhe aprouvesse. Depois, qual maré iluminada pelos olhos da avó, sempre omnipresente, promoviam-se sessões de leitura, com alguma solenidade, e animados ensaios de uma peça de teatro, onde cada um descobria pormenores dos outros que, até aí, desconhecia.
A meio da tarde, com o sol já mais tolerante, a incursão à ribeira, mais por exigência deles, era obrigatória. E nadavam, riam, pregavam partidas uns aos outros... Imersos na sua espontânea alegria, nem se apercebiam que o seu entusiasmo provocava sorrisos de contentamento nos velhos habitantes da aldeia, alheios que estavam ao canto ingénuo do desabrochar da vida.
Já recolhidos, e após plena satisfação de apetites, a avó Tita reunia a "tropa" na varanda e, quase num murmúrio, reivindicava silêncio. Chegara a hora de, num ancestral ritual, o astro se despedir, por entre os montes, com um eterno piscar de olho, todo melado, como que prometendo, aos crédulos observadores, que o amanhã seria ainda melhor. E eles, imbuídos daquele mágico esplendor, ainda que efémero, acreditavam.
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domingo, 8 de janeiro de 2023

O AMOLADOR

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Num tempo em que o normal era medido, por precaução, em ressonâncias de múltiplos espelhos, fossem eles o que fossem, calhou um dia em que, nas calibragens de espera do faz de conta que é a vida, as têmporas dum santo parecessem azuis. E as pessoas, desidratadas de interrogações, socorrem-se do mais básico que a sobrevivência lhes proporciona: ai Jesus, que lá vem isto, ai meu Deus, que lá vem aquilo.
Estava-se nisto, num compasso de nem enferrujar nem desenferrujar, quando, um dia, na aldeia avessa a mudanças, apareceu por ali um velho amolador sorridente, muito sorridente. E, para lá do entoar da tradicional gaita, desembrulhava ditos de fazer sorrir, ancorados em vislumbres de visões para lá do horizonte.
Os velhos olhavam, desconfiados, mas as crianças, eternamente viradas para o mundo, seguiam-no com avidez, não fossem perder algo para lá do ramerrame. E o amolador, sentindo que tinha público, embora não pagante, começava a contar histórias de antanho, todas com um denominador comum: apesar das intempéries, coisas de deuses caprichosos, as personagens acreditavam que tudo poderia ser vencido pelo engenho e pela arte, pela vontade e perseverança. Festa, a haver, só no final dum bom desiderato.
Tal como surgiu, e após um ou outro serviço com uma moeda a tilintar, assim o velho sumiu, com um último trinado a refugiar-se nas pedras das casas. E, vá lá saber-se como, sabia, qual dever cumprido, que as crianças da aldeia jamais o esqueceriam.
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