sábado, 28 de janeiro de 2012

TECELAGEM

.
António Tapadinhas, Biblioteca
.
.
.
Gostas de saber, gostas de perceber, gostas de mergulhar fundo mas, por ora, as palavras da tua caixa negra ainda são indomáveis. Não te conformas, ainda bem, e tentas, a pouco e pouco, filtrar o que te é possível.
As paredes quase nuas dessa interior construção são frias, sabem-te a pouco, e nada melhor que convocar teorias aconchegantes para as adornar. São esculturas inacabadas, em permanente reformulação, geradoras de cenários tentadores, cada vez mais credíveis. É a tua rede de protecção, que vais tecendo, cada vez mais, com maior perfeição.
Entretanto, sem te aperceberes, foste construindo amarras, doces amarras. E quando o vento, zangado com algo que só ele sabe, soprou com mais força, as paredes voltaram a despir-se.
Choraste, mas não paraste. Percebeste que o teu destino é um contínuo recomeço.
.
.
.

sábado, 21 de janeiro de 2012

INSTANTE

.
Cotovia, Fotografia de J. Romãozinho
.
.
.
Sentia por perto a envolvência das águas, promessa de refrigério, mas os rochedos que ladeavam as margens eram temperança indesejada no anseio maduro.
O grito do milhafre, lá no alto, despertava os acordes da prudência. Entre o ficar e o ousar, dilema dum seguro de mão cheia de nada com o sonho de grata recompensa, persistiu a vontade de alcançar a dimensão da lição das areias, ainda que em esboço menos que perfeito.
Para lá da curva, no estrebuchar da reinvenção de novos caminhos, a fragrância da giesta insinuou-se na envolvência do canto da cotovia.
.
.
.

sábado, 14 de janeiro de 2012

ACERCA DOS NOVOS VENTOS

.
Margarida Cepêda, Prendendo e libertando
.
.
.
A jornada fora dura, entrecortada de ventos fortes com breves e serenas aragens.
Vencido o desafio das múmias, e ainda combalido, ignorou as urtigas, mero desafio para iniciados com cinto sem segurança, e deixou que o filtro da intuição o impelisse para aquele lugar. Aproximou-se, cauteloso, e sentou-se no muro que circundava o aparente jardim de todas as esperas. 
A fragrância insinuava-se, tentadora. O vento transfigurara-se, como que acenando com janelas para outra dimensão. A fonte, no centro do jardim, parecia irradiar apelos irresistíveis, tinha a forma de mil nuvens, brotando essências esculpidas por mil artesãos. Em volta, neste cenário sem aparente regra, hologramas de pessoas gargalhavam...
Uma névoa, quase sem se dar conta, ia-se insinuando para lá do brilho. E, lentamente, começava a apoderar-se de tudo. Então viu. As almas dos homens, moldadas no brilho efémero das coisas, encolhiam-se na pequenez do medo, tagarelando sem nexo. Percebeu que, por ora, a sua demanda se circunscrevia às sementes da lucidez e da coragem, pois sabia há muito que as mais preciosas flores nasciam nos lugares mais adversos. E, ficando, partiu em busca de olhos que vissem para lá da névoa. Tinha chegado a hora de, de braço dado, se começar a moldar um novo tempo.
.
. 

sábado, 7 de janeiro de 2012

PALAVRAS

.
Hélio Cunha, O Pescador de Pérolas
.
.
.
Gostas das palavras, dos seus desenhos, que enfeitas com cores de rola galante. E encantas. Mas não te iludas, o canto da sereia é tentação permanente. Sem te dares conta, as palavras começam a ficar gastas, sem essência, desvanecem-se em nada. E o frio sobrepõe-se à envolvência do abraço.
Liberta-te, solta-te da sedução das suas amarras. Depois, sem pressa, pinta cada palavra com aquilo que realmente sentes. Vais ver que, a pouco e pouco, elas ganham sentido por si, mas em função de ti.
Quando elas se soltam és tu que te soltas, és tu que ganhas asas.
.
.
.